sábado, 11 de setembro de 2021

Lição sobre a água, António Gedeão


 

Lição sobre a água

 

Este líquido é água.

Quando pura

é inodora, insípida e incolor.

Reduzida a vapor,

sob tensão e alta temperatura,

move os êmbolos das máquinas que, por isso,

se denominam máquinas de vapor.

 

É um bom dissolvente.

Embora com exceções mas de um modo geral,

dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.

Congela a zero graus centesimais

e ferve a 100, quando à pressão normal.

 

Foi neste líquido que numa noite cálida de verão,

sob um luar gomoso e branco de camélia,

apareceu a boiar o cadáver de Ofélia

com um nenúfar na mão.

 

António Gedeão, Poemas Escolhidos, 12.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2010, p. 62.

 

 

Notas:

êmbolos (verso 6) – discos ou cilindros com movimento de vaivém dentro dos tubos de um motor ou de uma máquina a vapor.

gomoso (verso 14) – que destila ou contém goma; viscoso.

Ofélia (verso 15) – personagem de Hamlet, peça de William Shakespeare; após ser rejeitada pelo príncipe Hamlet, e ao saber que este matou o seu pai, Ofélia enlouquece; cai num ribeiro, enquanto apanha flores, e, cantando, deixa-se ir a flutuar ao sabor da corrente, até morrer afogada.

nenúfar (verso 16) – planta aquática flutuante, com grandes flores, geralmente brancas.

 

Questionário:

1. Estabeleça uma relação entre o título do poema e o discurso do sujeito poético nas duas primeiras estrofes.

 

2. Indique duas características que diferenciam a terceira estrofe das estrofes anteriores.

 

3. Proceda à análise formal do poema, no que respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima.

 

4. Releia a última estrofe do poema de António Gedeão e a nota sobre Ofélia. Em seguida, observe a reprodução do quadro de John Everett Millais.

No poema e no quadro, o fim trágico de Ofélia é representado de modos distintos, pondo em evidência aspetos diferentes.

Justifique esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.


John Everett Millais, Ophelia, 1851-1852, Tate Britain, in www.tate.org.uk (consultado em 09/11/2020).

 

Chave de correção do questionário sobre o poema “Lição sobre a água”:

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A relação entre o título do poema e o discurso do sujeito poético nas duas primeiras estrofes pode ser estabelecida a partir dos aspetos seguintes:

− a reprodução de um modelo de apresentação escolar, tradicionalmente associado à transmissão de conhecimentos em contexto de aula;

− o uso de linguagem científica (objetiva e impessoal), com a intenção de descrever as propriedades da água (num enunciado com valor aspetual genérico).

 

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

As características que diferenciam a terceira estrofe das estrofes anteriores são as seguintes:

− o aparecimento de uma personagem literária com uma conotação trágica («o cadáver de Ofélia» – v. 15), que diverge da neutralidade impessoal predominante nas estrofes anteriores;

− a presença do discurso metafórico («sob um luar gomoso e branco de camélia» – v. 14), por oposição ao discurso científico e objetivo das duas primeiras estrofes;

− a mudança de tempo verbal (do presente do indicativo, nas duas estrofes iniciais, para o pretérito perfeito do indicativo, na última estrofe), que assinala a passagem de um modo expositivo para um modo narrativo.

 

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes.

No que respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima, o poema:

− é constituído por uma primeira estrofe com sete versos (sétima), uma segunda estrofe com cinco versos (quintilha) e, por fim, uma terceira estrofe com quatro versos (quadra);

− apresenta rima interpolada, rima emparelhada e versos brancos.

 

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Os aspetos diferentes postos em evidência na representação do fim trágico de Ofélia, nas duas obras, são os seguintes:

− no poema de António Gedeão, a morte de Ofélia é inserida num ambiente noturno, em que se destaca a referência ao luar (que acentua o carácter trágico e simbólico do episódio aludido); no quadro de John Everett Millais, a luz do ambiente diurno revela os pormenores do meio natural em redor de Ofélia;

− no poema, não ocorrem referências a traços físicos de Ofélia; no quadro, é possível observar a beleza e a juventude de Ofélia;

− no poema, Ofélia é descrita «com um nenúfar na mão» (v. 16), o que reforça a importância simbólica do meio aquático; no quadro, Ofélia é representada tendo na mão (direita) algumas flores que colhera.

 

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa, Prova 734, 2.ª Fase, Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade, 2021. Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho. Prova disponível em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-LitP734-F2-2021_net.pdf e critérios de classificação em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-LitP734-F2-2021-CC-VD_net.pdf

 



 

Texto de apoio | Depoimento

 

Só conseguimos gostar do que conhecemos.

À entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão (1906-1997), Lição sobre a água.

O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena. 

Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho, que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família, dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?) de Hamlet, na peça homóloga de Shakespeare. 

A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain. 

Carlos Fernandes

https://viciodapoesia.com/2017/10/12/licao-sobre-a-agua-poema-de-antonio-gedeao/

 




CARREIRO, José. “Lição sobre a água, António Gedeão”. Portugal, Folha de Poesia, 11-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/licao-sobre-agua-antonio-gedeao.html


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