Menino do Bairro Negro
Olha o sol que vai
nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai
nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há de um dia cantar
Esta canção
“Menino do Bairro Negro”
(1963)
Letra e Interpretação:
José Afonso
Outra
canção de Zeca Afonso que também teve uma dimensão por falar da realidade do
país foi Menino do Bairro Negro. Lançada em 1963, como parte do disco Baladas
de Coimbra- mesmo álbum em que foi gravada a canção Vampiros, essa
canção tem grande importância pelo fato de ter sido praticamente aquela que
marcou sua 'rutura' com o 'fado tradicional',
e traz características comuns das canções de resistência: a desigualdade e
esperança. Ao mesmo tempo em que há uma indignação quanto ao momento presente,
a esperança serve como um alento para a população e principalmente para uma nova geração que está por
vir, mostrando na canção, as crianças ("meninos") como o
sujeito principal.
Zeca
Afonso revela78 que uma das inspirações para o refrão dessa canção foi
uma das obras do brasileiro Josué de Castro, "Geopolítica da
Fome", lançada em 1951, que trata sobre a questão da alimentação e
desigualdade no mundo. Ele ressalta que o adjetivo "negro" descrito
no refrão em "Negro
Bairro Negro" não tem relação com a cor
da pele dos meninos, mas sim com a condição deles de 'exploração', vistos na
obra de Josué de Castro. O "Bairro" se refere a um dos bairros
da Ribeira, região típica da cidade do Porto, local em que Zeca Afonso
costumava ir para visitar alguns de seus amigos - e a primeira vez que foi à
cidade, chegou à noite, e ficou surpreso ao ver a dura realidade e a desigualdade
que havia no local e em seu país.
O início
e o término da canção são marcados pelos sons de pássaros que dão a impressão
de liberdade e condizem com a vida dos "meninos" que vão
"correndo, ver o sol chegar". No restante da música, o som do violão
se faz presente, sempre acompanhando a voz de Zeca Afonso. Nessa canção também
se apresentam outros elementos da natureza, tais como o sol, o mar e a terra.
A canção
possui onze quartetos, dos quais quatro são repetição de estrofes anteriores, e
a maioria dos versos são classificados como redondilha maior, especialmente os dois primeiros versos
de cada estrofe, ao passo que o refrão é intercalado em redondilha menor e
tetrassilábico. As rimas são alternadas e cada estrofe contém terminações diferentes
- nove rimas diferentes no total - apresentando assim, uma grande variação no esquema
sonoro da canção. O poema, mesmo contento onze estrofes e divisão métrica diferentes,
apresenta uma simetria em relação ao seu formato, como podemos ver exposto abaixo,
mostrando a ordem das estrofes, começando pela primeira em azul e seguindo abaixo,
obedecendo a ordem das setas:
A quadra
mais relevante do poema é a primeira, pois há a repetição dela na sexta e
décima-primeira estrofes, sendo o início, o meio e o término da canção, como
ilustrado em azul. Os versos dessas estrofes são heptassílabos (redondilha
maior) e pentassílabos (redondilha menor), e as rimas intercaladas (ABAB).
Ainda em relação a essas estrofes, há a presença de uma rima rica
("mar", "chegar") e pobre ("nascendo",
"correndo") e o substantivo mais importante é o "sol'', que
revela a chegada de um novo dia, e a alegria com que as crianças veem a chegada
desse novo ciclo. Esse recomeço pode revelar uma esperança, uma ansiedade por
dias melhores sendo descritos na imagem do sol e também dos meninos (crianças),
que podem revelar uma nova geração, uma geração que traz uma mudança para a
humanidade. Ainda há a presença de dois verbos no imperativo ("olha",
"anda'', do português europeu), e pode apresentar uma 'ordem' ao ouvinte,
aos adultos: "olha o sol que nasce", "anda a ver o mar".
As
segunda, terceira,
quinta, sétima, oitava e
décima estrofes são equivalentes, sendo os dois primeiros versos classificados
como redondilha maior; os terceiros versos são hexassílabos e os quartos e
últimos versos são tetrassilábicos. As
rimas são todas intercaladas, com
exceção da oitava quadra,
sendo ABBB.
Já o
refrão, apresenta versos pentassilábicos (redondilha menor) e tetrassilábicos, havendo
uma intercalação entre eles. Esse
refrão é caracterizado pelas repetições dos adjetivos "negro", do substantivo "bairro"
e do advérbio de negação "não", acentuando uma situação
cíclica e sem uma aparente mudança, sendo evidenciado também pelos verbos no
tempo presente.
De acordo
com o esquema a seguir, o menino e a (falta de) condição dele são vistos como a
mensagem central do poema:
Presente |
Futuro |
|
Atmosfera |
Menino |
Esperança |
Sol nascendo,
chegando
Não há pão
Não há sossego |
Meninos correndo
Menino sem condição
Irmão de todos os
nus (todos são iguais,
porém, a desigualdade presente na terra faz com que alguns tenham mais que
outros)
Menino do mal
trajar
Menino pobre (é) o
teu lar (elipse)
|
Tira os olhos do
chão, vem ver a luz
Um novo dia vem
Quem souber cantar
virá também
Há de um dia cantar
esta canção
Um dia hás de
aprender
Toda a terra sorri
|
O poema
reforça a ideia da desigualdade perante os homens, mas traz a esperança de que,
um dia, esses meninos conseguirão
ser felizes, visto que o ambiente se apresenta na canção mostrando 'esperança':
o sol nasce para todos,
a terra sorri [prosopopeia], e por isso, um dia, os
meninos haverão de sorrir e cantar também. O
poema enfatiza que o lugar
é um bairro (que
sabemos por Zeca Afonso que ele se refere a um bairro situado no Porto), porém
pode ter relação com qualquer lugar do mundo em que a desigualdade esteja
presente, cabendo, dessa forma, uma crítica ao problema social do mundo em geral - inclusive de Portugal.
Essa desigualdade faz com que falte o "pão" necessário, referindo-se
metonimicamente a qualquer tipo de alimentação que deveria ser adequada para
todas. No restante do refrão "onde não há pão/não há sossego" cabem duas leituras: a
primeira, sem a presença do pronome relativo "onde" na frase "não há sossego", como escrito abaixo:
"onde não há pão não há sossego",
Com essa
leitura o local representado pelo "bairro"
revela a impossibilidade de haver paz e tranquilidade uma vez que não são
todas as pessoas que têm uma chance de ter alimentação adequada. Na segunda
leitura, - caso tenha ocorrido um zeugma com a omissão do
"onde", ficaria assim descrito:
"Onde não há pão,
"(Onde) não há sossego"
No caso
acima, o "bairro" apresenta dois grandes problemas: além de
não haver alimentação adequada para todos, também não há "paz", podendo
fazer alusão à Guerra Colonial, já iniciada nesse período, indicando a falta de
paz das famílias ao saber que seus filhos ou maridos estariam combatendo nas
províncias ultramarinas.
Ao mesmo
tempo em que o poema apresenta as dificuldades de Portugal - e do mundo por extensão - ele também mostra uma
forma de se ter esperança nos versos em que fala da natureza e da necessidade
de os homens tomarem alguma providência, descrita na "condição": "Se não é fúria a razão; se
toda a gente quiser" e "Se até
dá gosto cantar; se toda a terra sorri". O poema também pode ser uma
chamada para que todos "cantem" contra a injustiça, e que os cidadãos possam
utilizar suas vozes como arma contra governos e regimes opressores, como se
percebe nos versos: "queira ou não queira o papão, há de um dia cantar
esta canção". Aqui o "papão" é uma metonímia de "governo" ou daqueles que se enriquecem às custas do outro, provocando uma
enorme desigualdade econômica e social no país. O poema contém uma anáfora ao
iniciar, pelo menos por quatro vezes, um verso com a conjunção "se":
Se até dá gosto
cantar/ se toda a terra sorri; se não é fúria a razão/ se toda a
gente quiser, mostrando
que depende da população uma mudança em relação à realidade apresentada no
poema.
Embora o
poema fale de um espaço e
momento específicos, ele
dá margens para ser utilizado em contextos e épocas distintas, sendo, portanto, tão atual e presente nos dias de
hoje. Pensando à época em que o poema foi
feito, durante a Guerra Colonial, o "bairro" também poderia ser interpretado como uma das províncias
ultramarinas, atribuindo toda a desigualdade em que lá existia (e ainda existe)
em relação a outros países desenvolvidos.
Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais
ordena",
Ludmila Arruda.
São
Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016
_______
Nota:
78 Como visto
no website da Associação José
Afonso: http://www.aja.pt/verso-dos-versos/
CARREIRO, José. “Menino
do Bairro Negro, Zeca Afonso”. Portugal, Folha de Poesia, 17-10-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/menino-do-bairro-negro-zeca-afonso.html
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