Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas1 altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta –
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...
Álvaro
de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2002
___________
1 sacadas (verso 5) – varandas pequenas
Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas
respostas aos itens que se seguem.
1.
As sensações do sujeito poético são determinantes para a construção de
uma certa ideia de quotidiano feliz.
Identifique duas
sensações representadas nas quatro primeiras estrofes, citando elementos do
texto para fundamentar a sua resposta.
2.
Caracterize o tempo da infância tal como é apresentado na terceira
estrofe do poema.
3.
Explique a relação que o sujeito poético estabelece com os «outros» nas
seis primeiras estrofes do poema, fundamentando a sua resposta em referências
textuais pertinentes.
4.
Relacione o conteúdo da última estrofe com as reflexões apresentadas nas
duas estrofes anteriores.
Explicitação de cenários de resposta.
(As respostas
podem contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados
relevantes.)
1. Nas quatro primeiras estrofes do
poema, encontram-se representadas sensações visuais e auditivas, através dos
elementos seguintes:
–
«que já vi mas não vi» (v. 3) – sensação visual;
–
«As crianças, que brincam às sacadas altas, / Vivem entre vasos de flores» (vv.
5-6) – sensação visual;
–
«As vozes, que sobem do interior do doméstico, / Cantam sempre» (vv. 8-9) –
sensação auditiva.
2. Na terceira estrofe do poema, o
tempo da infância é caracterizado:
–
por um ambiente de despreocupação feliz, sugerido pelo ato de brincar («As
crianças, que brincam às sacadas altas, / Vivem entre vasos de flores» – vv.
5-6);
–
pela não consciência da passagem do tempo («Sem dúvida, eternamente.» – v. 7).
3. A relação que o sujeito poético
estabelece com «os outros» nas seis primeiras estrofes é marcada pela diferença:
–
os «outros» são felizes, como se deduz dos elementos referidos no texto –
alegria aparente (v. 2 e v. 4), brincadeira (v. 5), flores (v. 6), canto (vv. 8
a 10), festa (v. 11);
–
o sujeito poético considera-se à parte e diferente deles – «São felizes, porque
não são eu.» (v. 4), «Que grande felicidade não ser eu!» (v. 14).
4. A dor e o vazio expressos
na última estrofe, particularmente no verso «Um nada que dói...» (v. 26), decorrem
das reflexões desenvolvidas nas duas estrofes anteriores.
O
sujeito poético questiona-se quanto aos «outros» (v. 15) e aos seus
sentimentos, concluindo que:
–
cada outro é um eu (v. 16); só é possível sentir enquanto «eu» ou «nós»
(vv. 21-24);
–
não se pode saber o que eles, os «outros», sentem (vv. 17-20); existe uma
incomunicabilidade essencial entre os seres humanos, de que resulta a
consciência individual separada de cada eu.
Fonte: Exame Nacional
do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova
Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2011, 1.ª Fase
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- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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