À la carte
IX
Um frio quieto toma conta
das pálpebras quando para lá do mar
o olhar se perde
Pouca coisa o pensar do longe
remedeia ou consola
quando das ilhas do sul
não se acha nunca horizonte
para prumo do pensamento
Uma espessura de sal retorna e petrifica
e algo se quebra na cegueira de tanto olhar.
E o mar e tudo o que nele cabe
que nos perde e nos salva.
***
XI
Isto de fazer versos
tem o seu quê. A mais das vezes
não tem porquê. E se, lestos,
nas palavras achamos prazeres,
volúpias ou assombro de mistérios,
é porque delas os afazeres
não são mais que tristes remédios.
***
O lugar dos caminhos
XIX
São muitas as vezes em que
Sentado no sofá me distraio
A olhar as prateleiras com livros
Na parede em frente.
Não é que me dê algum prazer especial
Olhá-los do sofá em que me sento
Apenas me limito a olhá-los
E distraidamente salto de um
Para outro livro. E não me detenho
Em nenhum deles em particular
Às vezes demoro um pouco mais o olhar
Num ou noutro. Ou é a lombada ou
O título curioso que têm
Deve ser isso.
Mas não me demoro muito.
Tempos houve que juntava
Ao olhar o pensamento de os ler
Não sei se por cansaço
Ou porque o olhar tem mais força que o pensar
Fico-me pelo olhar das prateleiras com livros
Na parede em frente
Deve ser por isso
Fernando Martinho Guimarães, é o mar e tudo o que nele cabe. Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2023 (Coleção 12catorze, n.º 67). Disponível aqui: https://edicoeshumus.pt//index.php?route=product/product&product_id=1524
Fernando Martinho Guimarães |
Modos de fazer mundos ou crónica do poeta pasmado
O poema XIX pertence à terceira parte (“O lugar dos caminhos”) do livro é o mar e tudo o que nele cabe (2023), de Fernando Martinho Guimarães.
Nele, o sujeito poético detém-se numa situação recorrente do quotidiano: o facto de ficar parado a contemplar os livros no que eles têm a oferecer à superfície: “Fico-me pelo olhar das prateleiras com livros”.
O Eu reconhece com alguma nostalgia que, ao olhar as prateleiras com livros na parede à sua frente, não sente mais o mesmo prazer de antes, mas mesmo assim contenta-se em olhá-los de maneira distraída, saltando de um para outro livro.
Essa imagem ligada à ideia de cansaço com que o sujeito poético procura justificar, evoca uma sensação de impotência diante da dificuldade de concentrar-se num livro em particular. Por isso, o eu lírico diz “Tempos houve que juntava / Ao olhar o pensamento de os ler”.
Se, por um lado, o poema é marcado por este (aparente) sentimento de resignação e conformismo, como se o sujeito poético tivesse aceitado que a idade o impede de fazer o que fazia antes; por outro lado, essa mesma idade trouxe a sabedoria que permitiu ao sujeito poético apreciar a beleza e a importância do ato de observar sem julgamentos ou expectativas. Isto é, ao contentar-se em olhar os livros, o Eu mostra que aprendeu a apreciar os livros de uma forma mais simples e direta, tão à maneira de Alberto Caeiro.
Essa dicotomia entre o cansaço da idade e a luz da apreciação direta do mundo pode ser vista como uma reflexão sobre a passagem do tempo e a maturidade. À medida em que envelhecemos, enfrentamos limitações e desafios, mas também podemos experimentar com assombro uma renovada forma de enxergar o mundo.
"Deve ser por isso"
E assim termina o poema, sem ponto final, numa encenação humorada de quem adormece, por exemplo numa poltrona, a olhar os livros da estante em frente
Fernando Martinho Guimarães |
Fernando Martinho Guimarães (1960)
Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80.
De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflete essa duplicidade.
Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.
CARREIRO, José. “é o mar e tudo o que nele cabe, Fernando Martinho Guimarães”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 03-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/e-o-mar-e-tudo-o-que-nele-cabe-fernando.html
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