domingo, 1 de junho de 2025

Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos




Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos, Contemporânea n.° 8, 1923




I -  QUESTIONÁRIO

 

1. O poema divide-se em cinco momentos a seguir indicados de forma aleatória. Organize-os logicamente e indique os versos respetivos.

Recusa da cultura moderna.

Recusa dum certo passado mítico.

Niilismo corrosivo.

Reafirmação da individualidade

Recusa dos outros.

 

2. Escolha a resposta correta:

2.1. Pela leitura do poema, pode-se dizer que o poeta

A. recusa-se a aceitar os valores que a sociedade tenta inculcar-lhe.

B. encontra na morte a única solução para os problemas.

C. tenta tornar-se uma outra pessoa, para agradar a todos.

D. sente-se solitário e, por essa razão, almeja fazer parte da companhia.

E. aparta-se da sociedade, para desenvolver sua arte.

 

2.2. Os dois últimos versos do poema revelam

A. a conscientização do poeta em relação a seus problemas e à breve solução que lhes dará.

B. a irritação do poeta com aqueles que pretendem ajudá-lo em seus problemas.

C. a vontade do poeta de poder compartilhar da paz que outras pessoas sentem.

D. o desejo do poeta de manter-se afastado e isolado das pessoas.

E. a inquietude gerada na alma do poeta, em virtude da sua solidão.

 

2.3. A forma verbal macem, destacada no poema, significa

A. desprezem.

B. importunem.

C. ofendam.

D. maltratem.

E. abandonem.

 

2.4. O eu-lírico pretende que as pessoas distanciem-se dele. Isso, em alguns momentos, é marcado pela forma exaltada de expressão, como se pode comprovar em

A. "Não: não quero nada,"

B. "A única conclusão é morrer."

C. "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributá-vel?"

D. "Que mal fiz eu aos deuses todos?"

E. "Vão para o diabo sem mim,"

 

2.5. A penúltima estrofe do poema permite considerar que o eu-lírico sente

A. uma saudade carinhosa da infância, pois em Lisboa ainda pode viver bons momentos.

B. uma mágoa de Lisboa, pois lá passou uma infância vazia e sem sentimentos.

C. um medo de revisitar Lisboa, pois a cidade nunca lhe proporcionou boas lembranças.

D. uma mágoa de sua cidade (Lisboa), pois ela tirou-lhe todos os bons sentimentos.

E. uma saudade melancólica da infância, pois trata-se de uma época remota e irrecuperável.

 

3. Refira a perspetiva do poeta acerca do passado, presente e futuro.

4. Identifique quatro características modernistas presentes no poema.

 

Chave de correção do questionário:

1. Niilismo corrosivo. (1-4)

Recusa da cultura moderna. (5-16)

Recusa dos outros. (17-27)

Recusa dum certo passado mítico. (28-33)

 

2.  A – D – B – E – E (Fonte: Ufscar 2001. Disponível em: https://www.curso-objetivo.br/vestibular/resolucao-comentada/UFSCar/2001/1dia/UFSCar2001_1dia.pdf)

 

3. Presente: o sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte; abismo. Futuro próximo: estar sozinho (enquanto tarda a chegada do Abismo).

 

4. Características modernistas presentes no poema:

Liberdade de expressão.

Incorporação do quotidiano, do prosaico: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável”.

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares).

Inovações técnicas:

- O verso livre e sem rima;

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintáticos, preposições, conjunções, etc. são eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Por exemplo: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase.

Fragmentação / pluriperspetivismo / simultaneísmo:  a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo.

 

Monsanto, Lisboa, 01-06-2025



II – COMENTÁRIO DE TEXTO

 

Faça um comentário global do poema transcrito, baseando-se no plano fónico, morfossintático e semântico da linguagem e orientando-se pelos seguintes aspetos:

·         tema;

·         estrutura lógica do discurso;

·         insatisfação corrosiva perante toda a realidade;

·         sentido de evasão;

·         intertextualidade pessoana (interação dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano);

·         características modernistas.

 

 

Tópicos para resolução do comentário de texto:

 

INTRODUÇÃO 

Álvaro de Campos é o heterónimo de Fernando Pessoa que melhor se integra na estética modernista. 

O poema «Lisbon Revisited», versão de 1923, integra-se na 3ª fase/face de Álvaro de Campos: a intimista / pessimista. 

 

TEMA 

Conflito realidade/poeta:

-          cansaço existencial, náusea

-          estranheza da realidade, solidão, isolamento

-          dissolução do Eu

 

ESTRUTURA LÓGICA DO DISCURSO 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4)

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16)

dos homens (17-27)

e mesmo dum certo passado mítico (28-33)

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35).

 

INSATISFAÇÃO CORROSIVA PERANTE TODA A REALIDADE 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4) 

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso,

Não: não quero nada.

 

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16) 

nos imperativos,

Venham, tragam, falem, Tirem, apregoem, enfileirem...

na significação dos verbos, em que se opõe

o sentido pejorativo e de recusa da cultura moderna

 

Tirem, apregoem, enfileirem, macem,

à afirmação do Eu

Sou, sê, ouviram, Quero

na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase

por ex. 3a. estrofe

num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos),

 

na enumeração

 

ou ainda na interrogativa retórica;

 

 

dos homens (17-27)  

esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir.

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade

Vão para o diabo sem mim,

Não me peguem no braço!

Essa relação contundente (agressiva e ofensiva) patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo,

 

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35). 

terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

 

SENTIDO DE EVASÃO

recusa dum certo passado mítico (28-33) 

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

 

INTERTEXTUALIDADE PESSOANA (Interacção dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano.): 

Presente: O sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte.

 

CARACTERÍSTICAS MODERNISTAS: 

Incorporação do quotidiano, do prosaico: Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável. 

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares). 

Inovações técnicas: 

- O verso livre e sem rima. 

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintácticos, preposições, conjunções, etc. São eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Ex.: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase. 

Fragmentação / Pluriperspectivismo / Simultaneísmo: a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo. 

CONCLUSÃO: 

Álvaro de Campos caracteriza-se pela frase: «eu sinto tudo e canso-me», sendo este poema expressão de um cansaço e esgotamento de uma vida sentida em excesso.

 "Campos é Pessoa mais nu deixando correr à solta a torrente da angústia que o sufoca, fazendo o processo da sua abulia, outorgando-lhe uma dimensão de fábula, dilacerando-se com um patetismo e uma raiva dementes, em suma, elevando ao sentimento da sua existência (e da existência em geral) como absurdo radical, a única epopeia que a poesia moderna pode conceber, uma epopeia do negativo e da negação" (Eduardo Lourenço)

 Com Álvaro de Campos desaparece a confusão entre a poesia popular (também cultivada por Pessoa) e linguagem falada.

 

O poema parte dum niilismo corrosivo até uma reafirmação da fundura ôntica da solidão, passando pela recusa da cultura moderna, dos homens e mesmo dum certo passado mítico.

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso, nos imperativos, na significação dos verbos, na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase (Cf. por ex. 3a. estrofe), num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos), na enumeração ou ainda na interrogativa retórica; esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir. Essa relação contundente patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo, terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

Entre o otimismo exaltado e a depressão (real ou fingida, como artifício estético) poderão ser citados múltiplos poemas de Álvaro de Campos.

(in EN 1989 – 1ª fase, 1ª chamada)

 

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