terça-feira, 10 de junho de 2025

Suspiros inflamados, que cantais, Camões


 

Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Lete, vos percais.

Escritos para sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos co dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,

dizei-lhe que os servistes muitos anos;
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.

 

Luís de Camões, Lírica completa - II [Sonetos], org., pref. e notas de Maria de Lurdes Saraiva, 2.ª ed., revista, Lisboa: INCN, 1994, p. 105

 

Azulejo, Marinha Grande, Portugal



O SONETO COMO PREÂMBULO CONFIDENCIAL NA POESIA CAMONIANA

[…]

Na última composição qualificada como de carácter prologal, “Sospiros inflamados, que cantais”, é exequível apreciar com clareza o propósito de se apresentarem aos leitores as criações próprias como experto aviso acautelado. Trata-se de uma nova palinódia poemática com alguns traços pertencentes ao subgénero soneto-prologo em que o amante, como manifesto responsável da escrita dos textos na qualidade de autor implicado, se arrepende dos seus antigos erros passionais e solicita que o resto das peças sejam compreendidas de uma perspectiva exemplar e instrutiva102. Numa altura em que a morte já não está longe como remédio da doença amorosa, neste caso o emissor lírico dirige-se aos seus versos com a apóstrofe sospiros inflamados, dizendo-lhes que o seu destino há-de ser ficar neste mundo como ilustração perante outros dos males que a vivência o amor origina. Desta maneira, lendo uns escritos em que se patenteiam os prejuízos que causa um sentimento falso, eles conhecerão as manobras traiçoeiras do Amor e da Fortuna sofridas por uma experiência alheia103:

“Sospiros inflamados, que cantais
a tristeza com que vivi tão ledo!
Eu mo[u]ro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar d[o] Lete, vos percais.
Escritos p[e]ra sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos com o
dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que, pera aviso(s) de outros, estejais.
E em quem virdes falsas [e]speranças
do Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
deze[i]-lhe que os servistes muitos
anos,
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão
enganos.”104

 

A primeira quadra abre-se já com uma apóstrofe enfática referida aos próprios versos, «Sospiros inflamados, que cantais / a tristeza com que vivi tao ledo!», em que através de uma expressão paradoxal de natureza conceituosa é revelado o tempo pretérito, quando o emissor lírico vivia feliz no meio das mágoas. A ponto de morrer, indica-lhes que não o irão acompanhar na viagem que está prestes a fazer, porque tem medo de que desapareçam no transe de passarem o rio Lete105. A oportuna alusão mitológica lembra, efectivamente, o perigo ameaçador das águas de tal rio para a memória, capaz de fazer perder todas as lembranças. Porém a intenção do emissor lírico é precisamente que não se esqueça o passado, de tal jeito que o seu testemunho poetizado possa ficar para sempre como mostra desesperada diante dos leitores106. É na segunda quadra que se exprime essa vontade de dar às criações próprias a oportunidade de não partir deste mundo, pois assim terão fama servindo de magnífica lição da desilusão e da dor amorosa.

Nos dois tercetos, interligados sem nenhuma pausa, surge o convite do amante aos suspiros acesos que nascem dos seus males, isto é, aos versos que brotam da sua pena, a fim de ensinarem aos que moram ainda no engano, cuidando ingenuamente que as desgraças são boas venturas, que o Amor e a Fortuna só consentem esperanças incertas. Em suma, cumpre que declarem com firmeza, a partir do exemplo que procede do submisso trato individual do emissor lírico com o Amor e a Fortuna durante muito tempo, as falsidades e as mudanças que estes fornecem107. […]

 

Xosé Manuel Dasilva, “O soneto como preâmbulo confidencial na poesia camoniana”, Actas da VI reunião internacional de camonistas. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, pp.173-216. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/11944, DOI: 10.14195/978-989-26-0569-2_15

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Notas:

102 Não obstante isso, Wilhelm Storck julgou que, em vez de prólogo, o soneto poderia ser melhor contemplado como um epílogo poético, composto de caso pensado para fechar a colecção de peças amorosas criadas por Camões. Cfr. Storck, ed., Camões, Sammtliche..., t. II, p. 383. Em certa forma, é possível ligar essa consideração do erudito alemão com o seguinte juízo de M.ª Vitalina Leal de Matos em volta do texto: «Soneto “testamentario”, por assim dizer, ja que, perante a situacao de morte iminente, se dirige a obra em conjunto, impondo-lhe um sentido ultimo, e, para alem deste sentido, a encarrega de uma mensagem» (Leal de Matos, O canto na poesia..., p. 501).

103 Nas anotações que Faria e Sousa dedica a este poema, pode-se ler um surpreendente trecho em que o editor seiscentista e escritor desvenda a sã inveja com que examina em muitas ocasiões o alcance estético da obra camoniana. Assim, em clara lisonja à categoria literária do Poeta, Faria e Sousa confessa, a propósito de “Sospiros inflamados, que cantais”, que se trata de um texto que o obriga a aceitar as suas próprias carências artísticas como criador literário: «Yo siempre estoy confessando que si a caso se alguna cosa, lo devo a este Monstro de ingenio, de estudio, y de juizio; pero a toda verdad el me lo descuenta bien, porque por otra parte me esta siempre martirizando; porque si el no ubiera nacido, o, ya que naciesse, no obrara tanto, yo no estubiera siempre rabiando de embidia; y este Soneto me la haze de modo que me como las manos. Pero si el divino Apolo assi lo quiso, no ay sino tener paciencia: mas no se yo que la pudiesse tener sino con no aspirar a ser Poeta» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., pp. 147-148).

104 Azevedo Filho, Lirica de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 913.

105 «Tal coza como esta nadie penso dezirla jamas. Yo, suspiros mios (dize) me estoy muriendo; y no quiero llevaros conmigo al otro mundo, porque tengo miedo de que os perdays al passar el rio del Olvido, en cuyo passaje perecen todas las memorias; y quiero que las aya siempre de vosotros; por tanto quedaos aca, para que siempre, como immortales seays oidos. Quiere dezir que si bien el ha de morirse, no se moriran jamas sus Poemas, y singularmente estos de sus amorosas tristezas» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., p. 148).

106 O desejo de alcançar fama póstuma através da poesia, um motivo temático que, embora esteja também sugerido na imagem mitológica do esquecimento que provoca o rio Lete, aparece presente nesta composição principalmente nos vv. 5-6, constitui um tópico de proveniência horaciana com ampla influência na literatura dos séculos XVI e XVII. O modelo primigénio bem pode ser a Ode IV-3 do autor latino, em que agradece muito satisfeito à Musa o favor de lhe ter outorgado a fama como poeta (Manuel Fernández-Galiano; Vicente Cristóbal, eds., Horacio, Odas y Epodos, Madrid, Cátedra, 1990, p. 328):

“Quem tu, Melpomene, semel
nascentem placido lumine videris,
illum non labor Isthmius
clarabit pugilem, non equus impiger
curru ducet Achaico
victorem, neque res bellica Deliis
ornatum foliis ducem,
quod regum tumidas contuderit minas,
ostendet Capitolio:
sed quae Tibur aquae fertile praefluunt
et spissae nemorum comae
fingent Aeolio carmine nobilem.
Romae principis urbium
dignatur suboles inter amabilis
vatum ponere me choros,
et iam dente minus mordeor invido.
O, testudinis aureae
dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,
o mutis quoque piscibus
donatura cycni, si libeat, sonum,
totum muneris hoc tui est,
quod monstror digito praetereuntium
Romanae fidicem lyrae;
quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.”

107 Como um exemplo apropriado das tentativas que com diversos critérios pretenderam fixar a cronologia dos poemas camonianos, é conveniente registar que “Sospiros inflamados, que cantais” foi considerado por Maria de Lurdes Saraiva, do ponto de vista temático, um soneto de composição tardia em função do tom pessimista e dramático que revela. Vid. Saraiva, ed., Camões, Lirica..., vol. II, pp. 87-88. Contrariamente, Azevedo Filho julga que a data do texto, de acordo com fundamentos métricos, teria de ser em princípio menos tardia, porquanto nele são ainda perceptíveis encontros vocálicos da natureza arcaizante: «Tal hipótese [Maria de Lurdes Saraiva] e provavel, mas encontra uma dificuldade metrica na ocorrencia de encontros vocálicos arcaizantes, ao contrario do que se ve nos sonetos do ciclo de Dinamene, sonetos de plena maturidade poetica, onde o regime dos encontros vocalicos, normalmente, obedece ao uso moderno. Por isso, se o soneto pode ser um dos ultimos, tambem pode ser um dos primeiros, pois e sabido que os poetas jovens tambem cantam desenganos amorosos e pensam na morte, prematuramente, deixando a sua obra e a sua experiencia para meditacao postuma» (Azevedo Filho, Lirica de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 930).

 


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