A RAINHA DE KACHMIR
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir1
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado2!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir3
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince4!...
Nenhuma vista, nenhum
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!
Levava, nas mãos patrícias5,
Leque de rendas e sândalo6...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para amimar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura7 e arminhos8,
Não rojava9 nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio muleque10.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
Esse brinde, em língua estranha!
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido,
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.
Quem era o moço viajante
Que fez turbar11 a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante,
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fez turbar a rainha.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!...
Gomes Leal (1848-1921)
____________
Notas: 1. Região da Índia. 2. Terraço, terreno. 3. Asceta
indiano. 4. Desvende. 5. Nobres. 6. Madeira perfumada. 7. Tecido vermelho usado
pelos nobres. 8. Pele branca e rara. 9. Arrastava. 10. Rapaz africano (da Núbia,
Norte do Sudão). 11. Perturbar.
Leitura
O poema
"A Rainha de Kachmir" é um texto lírico de Gomes Leal, um poeta
português do século XIX e início do século XX, cujo estilo é marcado pelo
simbolismo e pelo romantismo tardio.
Desde o
início, o poema destaca a opulência e a beleza do vestido de noivado da rainha
de Kachmir, bordado com diamantes, comparado a "luar num terrado" e
ao "céu estrelado". Essa imagem estabelece um contraste entre a
riqueza material e a fragilidade emocional que será explorada posteriormente.
As descrições detalhadas dos acessórios e do vestuário da rainha - leque de
rendas e sândalo, manto de púrpura e arminhos, sapatinhos de cor da lua -
sublinham a estética visual, criando um cenário de grande esplendor e requinte.
A repetição de frases e palavras-chave, como "O vestido de noivado" e
"Levava, nas mãos patrícias", cria um efeito hipnótico e sublinha a
importância desses elementos no contexto do poema. A repetição serve também
para enfatizar a constante presença do passado e da dor emocional, que persiste
apesar das circunstâncias presentes.
O clímax
emocional do poema ocorre com a entrada do "moço estrangeiro", que
interrompe a celebração da boda. Essa personagem, revelada posteriormente como
o primeiro amante da rainha, simboliza o retorno de um passado não resolvido. A
reação da rainha, descrita com detalhes sensíveis como "a vista baça"
e o pranto que enche "a taça" e "os anéis", sugere uma dor
profunda e um conflito interno entre o dever presente e os sentimentos
passados.
A saudade
é um tema central no poema, manifestada através do pranto da rainha que
"encheu de pranto o vestido" e os "anéis". A presença do
antigo amante reaviva memórias de um amor perdido, contrastando com a opulência
do presente. O poema enfatiza que mesmo os bens materiais mais preciosos não
podem suprimir a dor de uma perda emocional. O último verso, "Saudades de
amor quebrado / Fazem lágrimas cair!", contém a essência melancólica do
poema, refletindo a inevitabilidade do sofrimento amoroso.
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