domingo, 28 de julho de 2024

A rainha de Kachmir, Gomes Leal

 



A RAINHA DE KACHMIR

O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir1
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado2!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir3
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince4!...
Nenhuma vista, nenhum
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias5,
Leque de rendas e sândalo6...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para amimar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.

Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura7 e arminhos8,
Não rojava9 nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio muleque10.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
Esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido,
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.

Quem era o moço viajante
Que fez turbar11 a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante,
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!...

 

Gomes Leal (1848-1921)

 

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Notas: 1. Região da Índia. 2. Terraço, terreno. 3. Asceta indiano. 4. Desvende. 5. Nobres. 6. Madeira perfumada. 7. Tecido vermelho usado pelos nobres. 8. Pele branca e rara. 9. Arrastava. 10. Rapaz africano (da Núbia, Norte do Sudão). 11. Perturbar.

 

Leitura

O poema "A Rainha de Kachmir" é um texto lírico de Gomes Leal, um poeta português do século XIX e início do século XX, cujo estilo é marcado pelo simbolismo e pelo romantismo tardio.

Desde o início, o poema destaca a opulência e a beleza do vestido de noivado da rainha de Kachmir, bordado com diamantes, comparado a "luar num terrado" e ao "céu estrelado". Essa imagem estabelece um contraste entre a riqueza material e a fragilidade emocional que será explorada posteriormente. As descrições detalhadas dos acessórios e do vestuário da rainha - leque de rendas e sândalo, manto de púrpura e arminhos, sapatinhos de cor da lua - sublinham a estética visual, criando um cenário de grande esplendor e requinte. A repetição de frases e palavras-chave, como "O vestido de noivado" e "Levava, nas mãos patrícias", cria um efeito hipnótico e sublinha a importância desses elementos no contexto do poema. A repetição serve também para enfatizar a constante presença do passado e da dor emocional, que persiste apesar das circunstâncias presentes.

O clímax emocional do poema ocorre com a entrada do "moço estrangeiro", que interrompe a celebração da boda. Essa personagem, revelada posteriormente como o primeiro amante da rainha, simboliza o retorno de um passado não resolvido. A reação da rainha, descrita com detalhes sensíveis como "a vista baça" e o pranto que enche "a taça" e "os anéis", sugere uma dor profunda e um conflito interno entre o dever presente e os sentimentos passados.

A saudade é um tema central no poema, manifestada através do pranto da rainha que "encheu de pranto o vestido" e os "anéis". A presença do antigo amante reaviva memórias de um amor perdido, contrastando com a opulência do presente. O poema enfatiza que mesmo os bens materiais mais preciosos não podem suprimir a dor de uma perda emocional. O último verso, "Saudades de amor quebrado / Fazem lágrimas cair!", contém a essência melancólica do poema, refletindo a inevitabilidade do sofrimento amoroso.

 


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