O amor,
quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar... 1928 Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de
Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).
- 92.
http://arquivopessoa.net/textos/1318
Análise do poema "O amor,
quando se revela"
Sendo o poema em questão um
poema que toca o tema do amor, não se pode certamente considerar como um poema
de amor. Isto porque, como é hábito em Pessoa, muitas das vezes os temas mais
simples são processados, refinados, intelectualizados, de maneira a que a mais
simples exposição de ideias nunca é apenas uma exposição de sentimentos.
Isto nota-se ainda mais
quando são poemas ortónimos, escritos em nome de Fernando Pessoa ele próprio,
porque sem artifícios ou máscaras transparece frágil e sem cor o sentimento de
estar perdido no mundo, de fragilidade, de incapacidade e tristeza - marcas
indeléveis do carácter do poeta e que encontravam na sua poesia o escape
natural.
A análise do poema clarifica
o que dissemos anteriormente.
"O amor, quando se
revela, / Não se sabe revelar. / Sabe bem olhar p'ra ela, / Mas não lhe
sabe falar."
Vejamos como é curiosa a
maneira como Pessoa olha para o amor. Em vez de elogiar o amor, Pessoa fica
perturbado pela maneira como o amor se revela em si mesmo. É a incapacidade de
sentir, ou de pelo menos de transmitir, de comunicar o sentimento, que é o
verdadeiro tema deste poema, e não o amor, o sentimento.
Não sabemos até que ponto a a
interpretação de Pessoa pode ser uma interpretação Universal do amor. Pensamos
que não é, que é uma interpretação tão íntima que muito nos diz da maneira como
o poeta sentia as coisas e nada mais do que isso. Por isso mesmo quando ele diz
"Fala: parece que mente / Cala: parece esquecer" Pessoa fala do seu
ponto de vista particular. É ele que parece não ser sincero quando tenta ser
sincero - é a sua dor interna que impede a sua sinceridade, a sua ligação
sincera a um outro ser humano.
Pessoa disse que o amor é a
altura em que nos confrontamos com a existência real dos outros - e esta é uma
frase determinante para entendermos este poema. Uma frase dramática, mas
determinante.
É a presença sufocante do
outro que impede o poeta de falar o que sente. Por isso ele nos diz que
"quem sente muito, cala; / Quem quer dizer quanto sente / Fica sem alma
nem fala, / Fica só, inteiramente!".
O seu desejo maior seria que
o seu amor ouvisse este poema mas sem o ouvir, que adivinhasse no seu olhar o
sentimento, sem que houvesse necessidade de falar. Há aqui também um pouco de
medo de que o ideal decaia quando se torna real, mas essencialmente o medo é de
ser humano, o medo é medo de ligação com o outro, a perda de controlo do
"eu" em favor do "outro".
Se de alguma coisa este poema
fala, não é então de amor, mas antes do que o amor pede, em termos de
sacrifícios para o "eu". O amor pede o máximo sacrifício, que é a
perda da individualidade máxima, a perda do egocentrismo, do culto da
personalidade própria: a perda do controlo sobre a realidade, em favor do caos
alheio.
O poema tem a seguinte
estrutura:
3 quadras e uma oitava, sendo
que a divisão lógica do mesmo, quanto a mim será a seguinte:
as duas primeiras quadras
introduzem o tema do poema, que de certo modo é a incapacidade de amar a oitava
desenvolve o tema, de modo dramático, sendo que o sujeito poético desenrola
para si mesmo o drama que decorre dentro de si - o amor por ela - e a maneira
como esse drama o perturba. Ele sente intensamente a dor que é não conseguir
falar desse amor a ela, não conseguir revelar o amor publicamente. a quadra
final serve de conclusão. Uma conclusão indefinida, porque o sujeito poético
deseja que o seu amor o ouça sem que ele tenha de falar, mas mesmo assim uma
conclusão.
Quanto aos recursos
estilísticos:
Há grande uso de antíteses,
para evidenciar a oposição entre sentir o amor e conseguir falar dele à pessoa
amada. Há uso de anáfora (repetição de "fica" no início de alguns
versos seguidos) Versos 7 e 8, quanto a mim é um hipérbato, com troca da ordem
das palavras. "Ouvir o olhar": trata-se de uma invulgar figura de
estilo chamada sinestesia.
Mas se tivesse de destacar o
uso de um recurso, seria obviamente a antítese o mais marcante neste poema.
A cantora brasileira Adriana Calcanhotto está em Portugal e por cá ficará até junho, como professora convidada da Universidade de Coimbra. O que a traz ao nosso país? Uma paixão antiga: a poesia
Adriana Calcanhotto e a poesia portuguesa – uma paixão escutada na rádio
Largas dezenas de pessoas estão concentradas junto ao Auditório Nobre da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Espera-se por alguém. “Cruzei-me mesmo há pouco com ela e nem conseguia acreditar”, assegura uma jovem, falando em português do Brasil a um amigo. Passam cinco minutos da hora marcada. As portas abrem. A sala, imponente, parece minúscula para tantos curiosos. Ela – a responsável pela enchente – senta-se. Serena. Sorridente. Fazem-se os agradecimentos e as apresentações habituais em cerimónias académicas. Ela não precisa de muitas. Toma a palavra. “Isso aqui não é uma aula. Eu não sou uma professora”, avisa, desde logo, Adriana Calcanhotto, enquanto todos a ouvem atentamente. Em silêncio, para sorver cada palavra, porque se vai falar de poesia no seminário “Uma Incerta Melodia”.
Cantora, compositora, escritora, ilustradora e antologista brasileira. Assim é ela, Adriana – a que os mais novos juntam, na memória, a alcunha artística Partimpim. Está em Portugal desde fevereiro e vai ficar até junho, como professora convidada da Universidade de Coimbra durante um semestre. O motivo que traz a artista de música popular brasileira até ao nosso país e esta quarta-feira a levou a palestrar para aproximadamente uma centena de pessoas na FLUP é simples: a poesia. Essa paixão pela musicalidade das palavras, surgida na sua vida de uma forma bastante espontânea e que a levou a tornar-se “embaixadora” da obra de Mário de Sá-Carneiro no Brasil. Mas como é que tudo começou?
Não foi na escola. “Tal como grande parte das pessoas da minha geração, eu larguei o colégio muito cedo. Nem cheguei à faculdade. Eu costumo dizer que a música me escolheu. É melhor do que dizer que abandonei os estudos”, brinca a cantora ou escritora de canções de 51 anos. O pai, Carlos, era baterista de jazz, bossa nova e possuidor de um restrito gosto musical. “O meu pai era daqueles que não tinha vergonha de dizer que os Beatles estragaram tudo”, recorda Adriana. A mãe, Morgada, era uma bailarina e coreógrafa, amante de um leque musical variado, onde cabiam Pink Floyd, Miles Davis ou Elis Regina.
Por isso mesmo, a música acompanhou a artista desde cedo, mas a paixão pela melodia das palavras surgiu quase à revelia da família. A ouvir rádio, onde tanto podiam passar as músicas mais badaladas das telenovelas como, minutos depois, ecoarem canções de Caetano Veloso, Chico Buarque ou Maria Bethânia.
“Um dia, o meu pai chegou a casa mais cedo e encontrou-me a ouvir rádio popular, música estragada e ruim para ele. Ficou apavorado, pensando que isso ia interferir na minha formação musical. O que, de facto, aconteceu”, admite, entre risos. “Foi aí que eu percebi que essa divisão entre alta e baixa cultura é uma perda de tempo. Até porque, naquele momento, a tropicália já existia”, sustenta Adriana, referindo-se ao célebre movimento musical que agitou, no final dos anos 1960, um país ainda acorrentado a uma ditadura militar.
FERNANDO PESSOA É UMA “POPSTAR” NO BRASIL E PARA ALGUNS TEM AR DE BAIANO
A forte ligação à poesia não chegou, assim, ao folhear livros. Chegou por intermédio das ondas de rádio. “Ali era uma música de palavra, com canto”, enaltece a artista. “Um dia, eu ouvi a Maria Bethânia a dizer Fernando Pessoa. Aquilo foi para mim uma iluminação. Foi assim que a poesia entrou na minha vida”, afirma a cantora que, em 1990, se estreou com o álbum “Enguiço” e, em 1994, editou o trabalho discográfico “Fábrica de Poemas”.
Ainda sobre Pessoa, Adriana explica que o autor é uma autêntica “popstar” no Brasil, muito por força do trabalho de divulgação feito por Bethânia. “Toda a gente sabe quem é. Algumas pessoas acham que ele é baiano”, conta, provocando o riso generalizado na plateia. “É impressionante o quanto ele está vivo no Brasil”, frisa Adriana Calcanhotto, acrescentando que “as pessoas aprendem Pessoa através da música”.
Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar ou Florbela Espanca foram outros dos poetas que a rádio lhe apresentou, todos eles sublimados pela voz do cantor Raimundo Fagner. Já mais tarde, na década de 1990, quando a poesia já era uma paixão séria na vida de Adriana, é editada no Brasil a obra completa de Mário de Sá-Carneiro. A editora convida-a, inesperadamente, para participar num sarau de apresentação. Dizem-lhe para fazer o que quiser. “O meu problema”, explica a cantora, “é que digo ‘sim’ e depois é que vou ver”. “Eu não tinha ideia da vastidão da obra de Sá-Carneiro”, reconhece.
“Fiquei absolutamente fascinada, conhecendo o poeta, a vida dele, a relação com o pai, os problemas com ele mesmo e a forma como passa aquilo para a poesia”, frisa a artista brasileira, rendida a “uma poesia daquele tamanho, daquela altura, que nos encanta a todos até hoje”.
Desde então, e à semelhança da relevância de Maria Bethânia na democratização da obra de Fernando Pessoa no Brasil, também Adriana acabou por se transformar, “de forma natural”, diz, numa “embaixadora” de Mário de Sá-Carneiro. São já vários os poemas do poeta da geração d’Orpheu musicados pela artista, como “Vislumbre”, “Roupagem” ou “7”, este último gravado por Calcanhotto com o nome “Outro”.
Ao longo dos anos, outros poetas portugueses foram sendo acrescentados à lista de favoritos de Adriana Calcanhotto, como são disso exemplo Alexandre O’Neill, David Mourão Ferreira, Adília Lopes ou Ana Luísa Amaral. Conta que, sempre que vem atuar a Portugal traz “uma mala enorme vazia, só para depois a levar cheia de livros” que lhe oferecem. “Quando recebemos de um português um livro de poesia, aquilo significa: ‘Este é o nosso legado’”, explica a intérprete, fascinada ainda com outra particularidade da cultura portuguesa. “O Dia de Portugal é o dia de um poeta. Não acredito que isso exista noutro país do mundo. Não é um general, um guerreiro, um metalúrgico… é um poeta! Isso impressiona-me imenso”, assevera.
“O NOBEL É QUE GANHOU BOB DYLAN”
O que a encanta na poesia é, sobretudo, a musicalidade das palavras, motivo pelo qual adora o fado, estilo musical que descreve como uma “maravilha” e no qual se pode “colocar qualquer poema”. Fala de Amália como quem descreve um gigante e destaca o papel da fadista quando decidiu cantar Camões. “Ela podia fazer o que quisesse. Amália conseguia tirar o melhor dos poetas, porque a poesia não é só para estar nos livros”, considera.
Daí até fazer referência à polémica instalada aquando da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan foi um pequeno salto. “Discute-se muito o facto de o Bob Bylan ter ganhado o Prémio Nobel da Literatura… Ou melhor, o Prémio Nobel é que ganhou o Bob Dylan”, atira a brasileira, relembrando que “na Grécia era assim, transmitia-se a poesia através da música” e “o que hoje temos da poesia arcaica são, na verdade, fragmentos de letras de músicas”.
De volta à arte de versejar em língua portuguesa, Adriana Calcanhotto é da opinião que “quem hoje se arrisca a escrever poesia em Portugal ou no Brasil, precisa de ler muito”. “Tem de saber o que está a fazer. Tem de ler tudo o que está para trás. Só o facto de alguém ler tudo isso, já lhe dá o direito de escrever”, considera a artista brasileira.
“É assim a minha relação com a poesia portuguesa. Uma relação apaixonada”, finalizou, motivando um demorado aplauso.
Adriana Calcanhotto: "Estou na Universidade de Coimbra para ensinar coisas que não se ensinam"
Ela diz que têm sido uns meses sossegados, com tempo para ler, sem ser constantemente interrompida com concertos e viagens. Para não perder o fio à música, nos intervalos das aulas que tem dado no âmbito da sua residência artística na Universidade de Coimbra, Adriana Calcanhotto anda a aprender a tocar guitarra elétrica. Por isso, na biografia da senhora da voz e do violão, a cidade portuguesa ficará para sempre ligada ao amplificador. Também já escreveu um livro sobre a história da Universidade de Coimbra para ser lido por crianças brasileiras. A entrevista não podia ter decorrido num local mais literário, a Quinta das Lágrimas.
O que é, no seu entender, ensinar?
Ensinar, para mim, é aprender. Durante este semestre na Universidade de Coimbra tenho a possibilidade de ouvir professores a falar com paixão, seja sobre Química ou sobre Literatura. E ouvir uma pessoa que fala sobre Eça de Queirós com um brilho nos olhos ou outra que se transforma quando discorre sobre Camões são experiências que não se esquecem. Como tenho dito, quase como um refrão, estou aqui para ensinar coisas que não se ensinam.
E que são sobretudo a sua forma de ver o mundo?
Por sugestão da universidade, nas aulas também tenho incluído a minha experiência pessoal. Começo na poesia arcaica, na poesia clássica, e, depois, vou indo pelos trovadores. Tudo isso é a minha forma de ver, é o modo como aqueles temas me apaixonaram, as relações que fui fazendo de maneira completamente autodidata. Na primeira aula que dei, muitos professores, muitos lentes, me disseram que, para eles, era incrível uma educação assim, não formal, não organizada, que foi seguindo a intuição.
Esta residência artística em Coimbra não se trata de um regresso à faculdade, mas de um começo, aos 51 anos?
Pensei ser astronauta e arquiteta. Treinei para ser tenista e, como a minha mãe era bailarina, tive aulas de ginástica rítmica e de dança. A música, porém, não me deixou chegar à universidade porque andava a ouvir as pessoas cantarem e tocarem o repertório de Lupicínio Rodrigues pelos bares de Porto Alegre e, depois, de manhã, não acordaria para ir às aulas. Naquele meio da boémia gaúcha, eu era um bebé, que tentava absorver toda aquela informação, experiência e sensibilidade.
O que é que tem feito em Coimbra?
Aqui, os professores dizem: vou ali dar uma aula e já volto. Eles têm experiência e, mesmo que uma aula nunca seja igual a outra, é preciso ver que eles têm os esqueletos das lições. Não é que goste muito de ensaiar e de ficar presa a um roteiro, mas eu não sou professora e, por isso, preciso de preparar as aulas, trabalho-as até ao minuto em que vão começar.
Segue um fio condutor ou, pelo contrário, costuma perder-se?
Perco-me imenso. Há assuntos que não são vetoriais, funcionam como uma malha. É o caso do Parangolé Pamplona, de Hélio Oiticica [o tema principal da masterclass do passado dia 19 de abril]. Aquilo tem resquícios do pensamento antropofágico, de acordo com o qual a arte brasileira não precisa de replicar as artes europeia e americana. É isso que Hélio combate. Tudo isso corresponde, aliás, a uma das coisas de que Caetano Veloso mais fala: diz ele que o Brasil tem obrigação de ser original porque está na América Latina a falar língua portuguesa, rodeado de língua espanhola. O Carnaval é a maior prova de que nós somos capazes de acolher a cultura vinda de fora, deglutimos e devolvemo-la do nosso jeito, do nosso ponto de vista, selvagem, tropical.
Tem lido muito em Coimbra?
Muito. Além de ser uma cidade com proporções humanas, Coimbra vive do convívio de diferentes tempos de culturas, de religiões, de épocas. Induz ao pensamento porque, até quando observamos a arquitetura, não temos ninguém a pedir para comprar qualquer coisa, para fazer isto ou aquilo. Parece bobagem, mas não é: tenho lido livros inteiros sem ser interrompida, ao invés do que acontece quando estou no Rio de Janeiro, entre concertos e aeroportos.
Isso propicia a criação?
Tenho tentado não abrir essa porta porque, depois da porta aberta, não dá muito para controlar…
E o que é que tem lido?
Literatura portuguesa e um pouco também de literatura brasileira. A próxima aula vai ser sobre os livros que me marcaram [decorreu a 26 de abril]. Não posso falar sobre todos, escolhi 14, que é o número de volumes que cabem na mesa do Instituto de Estudos Brasileiros onde os livros vão estar expostos.
Onde começa essa lista?
Começa com A Mulher que Matou os Peixes, que li aos oito anos e que realmente mudou a minha vida. Foi a primeira vez que me senti leitora e que uma autora da potência de Clarice Lispector falava comigo sem me tratar como uma criança, contando-me histórias de “era uma vez…”. O livro tem esse título maravilhoso e, depois, quando se abre, a primeira frase é: “A mulher que matou os peixes infelizmente fui eu.” Senti aquilo como se fosse Hitchcock.
E onde é que a lista acaba?
Acabar não acaba, mas o 14º livro é um dicionário. Foi uma coisa que descobri com Tom Jobim. Um dia visitei o seu apartamento em Nova Iorque e, no meio de livros sobre passarinhos brasileiros (Jobim gostava muito de passarinhos), vi que ele tinha uma prateleira inteira só de dicionários. Por causa dele, comecei a entender, por exemplo, que o dicionário de Aurélio tem um ponto de vista distinto do dicionário Houaiss. Hoje, quando procuramos o significado de uma palavra, basta fazermos uma pesquisa no computador e o problema fica resolvido. Mas, se folhearmos um dicionário, descobrem-se palavras, passamos de umas para outras, passam-se horas.
Qual é a sua opinião sobre o Acordo Ortográfico?
Para mim, o acordo ortográfico é uma coisa simples. Como julgo que o caminho da língua é o do menor esforço, sou favorável a que se tirem os acentos e tudo aquilo que não se usa. Não me parece que os portugueses voltem a abrir as vogais, isso é uma coisa arcaica que só nós [brasileiros] usamos.
A atribuição do Nobel a Bob Dylan é a confirmação de que a canção também é literatura?
A polémica é animada, mas não faz sentido: quem reclamou são os que não conhecem a obra de Bob Dylan, os escritores de livros, de livros maçudos. Bob Dylan é um grande poeta. Aliás, não foi Bob Dylan que ganhou o Nobel, foi o Nobel que ganhou Bob Dylan. E o prémio poderia ter ido para Sérgio Godinho ou para Chico Buarque. Veja-se que, em alguns textos, Frederico Lourenço [helenista, professor da Universidade de Coimbra] chama Safo de cantora.
Com os cortes no financiamento das universidades, o Brasil tem estado a desinvestir drasticamente na Educação. O saber já não tem valor?
Isso causa-me imensas angústias. Porque a ideia que há é a de que o saber, o pensamento, é qualquer coisa de perigoso, ameaçador. Por causa da maneira como a política está armada no mundo, por causa desses esquemas todos de corrupção, por causa da ignorância que se alastra por todo o lado. Nada disto é de agora, é uma tragédia anunciada, foi triste ver tudo isso acontecer, assistir a toda essa decadência.
Não é por causa do Governo de Michel Temer?
Vem de trás. Costumo ser otimista, mas também sei que, para as coisas melhorarem, vão ser precisos muitos anos. São gerações perdidas, de pessoas que saem das faculdades semianalfabetas. Diz-se que o importante é comunicar, claro que o importante é comunicar, mas qual é o problema de se saber a norma culta? Qual o problema de se saber a sua própria história? Qual é o problema de se conhecer a sua própria língua?
Nesta Europa que vê os que são diferentes de forma ameaçadora, a língua permite-nos conhecer o Outro?
Antes de estar na Europa que olha o mundo de forma ameaçadora, estou em Portugal que olha o mundo como uma coisa a ser descoberta. Chego a Macau e, numa praça, encontro um verso de Camões que me faz chorar: “O mundo todo abarco e nada aperco.” É muito interessante: quando aprendemos outra língua, entendemos também muitas coisas da nossa própria língua.
Conhecemos o Outro e conhecemo-nos a nós próprios também.
Exatamente. E isso é uma boa lição.
Preocupam-na os populismos, que não veem a chegada do Outro com esse encanto?
Como disse Álvaro de Campos, o que uma geração passa para a outra é tudo aquilo que ela não foi. Ou seja, a humanidade não aprende. Abram-se os livros e veja-se como a história se repete. Sou otimista, mas uma espécie que destrói o seu próprio habitat não é uma espécie que tenha dado certo. As pessoas continuam a pensar que o planeta é uma fonte inesgotável e, agora, até o próprio Presidente dos Estados Unidos pensa que isso é uma invenção…
Umafake news.
Um facto alternativo. Vivemos tempos difíceis, mas os tempos sempre foram difíceis.
Imagina-se a viver em Portugal permanentemente?
É uma pergunta difícil. Há um verso do hino nacional brasileiro que diz: “Verás que um filho teu não foge à luta.” E é um verso que me cala fundo. Estou aqui e não estou a fugir de coisa nenhuma, muito antes pelo contrário.
Organizada por Adriana Calcanhotto, É Agora Como Nunca. Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira (Livros Cotovia, 144 págs., €17) foi lançada em meados do mês de maio. A obra, com poemas de 41 autores, pretende ser "um instantâneo da poesia brasileira agora". "Sou completamente contrária à ideia de que já não existem poetas, de que já não se escreve. Isso é coisa de gente que não lê o que está a acontecer, é um ranço que existe em relação à composição, à música e a tudo", diz, a propósito, Adriana Calcanhotto.
o farol onde moras entre
nunca e sempre
dispersa a ritmo largo a luz renovada sobre o mar
chega vibrante o brando entardecer de mim em ti
venero o secreto mundo dos teus olhos
as tuas mãos abertas encontram
praias quentes
areias macias proclamam
amor no silêncio do vento
desliza o mar deitado
a teu lado
as ondas cobrem o teu corpo
por ele o riso cresce
despido na alegria das águas
tecendo no tempo a mais longa vaga
de silêncio nos destroços ancorada
a suave volúpia
dos corpos
agita a praia ventosa
levam búzios
trazem rosas
no nosso olhar
os abismos
cantam ao crepúsculo
os lábios húmidos
afogados nos beijos do mar…
Henrique Levy, in
Noivos do Mar, Editora Labirinto, 25
de abril de 2017
José Maria Botelho, ilha Terceira, 2022
ANGÚSTIA
OCEÂNICA
ilha submersa pelo mar
por uma chuva que se alteia
nuvens a lavrar arados
erva fresca de que são feitos os prados
nesta ilha varrida de águas
gente do mar que é ribeira
aves brancas
terra d águas
trazem à luz por nascer
pântanos charcos e lagos
ilha oceano
ilha mar
terna ilusão a de aqui estar
retido por redes d águas
torrentes de mar…
desafio molhado de saudades
de outra ilha altaneira
de alvas neves colorida
pedaço verde de vida
mistério d águas a navegar o céu
no rubor da vida
a alvorada estremece o vento
resignado move nuvens reza preces
a chuva anoitece a ilha
despida de sol
vestida d’águas
as terras tristes afogadas
cantam em voz de pranto
lampejos de luz e trovoadas
a tornar negras as rubras flores
exiladas nas águas
angústia oceânica
que se abate nas sombras amargas
e nos vastos rumores d’água
oração de lábios esvaídos
escorrendo lava molhada
adormecida por mágoas
abrigo vibrante
esculpido em terra firme
traz às ondas ébrias de espuma e sol
o sonho exigido!
Henrique Levy, in Noivos do Mar,
Editora Labirinto, 25 de abril de 2017.
*
NU
nu junto ao portão
da quinta pés calçados no
barro as pernas
cedros a tocar ciprestes aguardam a
glória dos lábios de Calíope
os
ombros
armas raras de sóis celestes
em encontros siderais
ouvem junto ao claro portão
o suspirar das rendas brancas do mar
nu
os teus olhos sacrificam
o tempo
saciando nos muros o orvalho
no mergulhar derradeiro da tarde
nu
és vida
a descansar bosques
na acesa tormenta
que os meus olhos invade
nu
sustentas a luz na memória
confusa da alma atenta
aos gestos das tuas mãos
afagos que sei esperar
o olhar molhado das nuvens ao passar
proclama o anseio de ser homem
cânticos de corpo em sede trocam sementes
nu
junto ao portão da quinta
crescem dores abrandam sonhos
se puderes
em lento voar nu
avança!
Henrique Levy, inNoivos do Mar, Editora
Labirinto, 25 de abril de 2017.
*
ANOITECE
o corpo não pede gestos nem pétalas
perfumadas de gerânios nem naus em
portos longínquos nem mãos sobre
altares buscando preces nem o último
olhar do sol sobre a ilha antes de adormecer
o
meu corpo é agora o lugar
de lábios demorados que
sobre ele desatam beijos
no entardecer dos teus olhos
brilha em repouso o requiem da entrega
noite em que os muros as roseiras bravas
vieram debruar de alvíssima seda
em que o lamento das borboletas
das asas se desprende no crepúsculo cintilante
mergulhando o mar…
Henrique
Levy, inNoivos do Mar, Editora
Labirinto, 25 de abril de 2017
NOIVOS DO MAR | AO LEITOR
Os poemas escritos nas Ilhas
sepultam suspiros ancestrais de onde se ouve o aveludado nevoeiro a
dissolver-se nas encostas dilaceradas pela compulsiva agitação do Mar.
Estes são poemas saturados de
águas, ousam cantar as vésperas das noites incendiadas pelo Sol macerado por
chuvas…
Deste conflito surgem palavras
nascidas de uma voz tumular, desnuda de razão, escritas por mãos febris aestremecer a morfossintaxe e a
vontade do que está para acontecer…
Uma
espécie de angústia, resultante de um universo cercado de águas atlânticas
cujas margens unem Europa e América.
Alvora,
o poeta, as aparências da Terra, mergulhando a pena no Mar intruso, surgindo a
impaciente renovação de deuses, jogo ancestral de águas curvadas perante os
aromas que sopram das Ilhas, contraídas por forças bruscas, inquietas, reclamam
piedade à violenta voz do Mar…
Aqui,
nestas Ilhas, todos os poetas são mulheres a cerzir palavras, leitores de
Livros de Horas, tristes mulheres cobertas de exaltação e véus de fé,
segredando nas casas, ao lado do fogo, do linho e das arcas nuas de cereais…
Mulheres
suspirando serenas os seus corpos finos, exaustos, hesitantes nos beijos e no
ânimo… Talvez por isso, vencer esta distância do feminino, nos induza, na
verticalidade da morte, a lembrança do deleite carnal, sublimado pelo Espírito
que nas Ilhas é Santíssimo…
Encena-se,
então, sem ilusões, um ato final de Amor.
Henrique Levy
Henrique Levy. Miradouro da Ermida da Senhora da Paz, Vila Franca do Campo, 2019
Henrique José
Aguiar Fonte Levy, ou simplesmente Henrique Levy, como é conhecido, nasceu em
Lisboa a 6 de junho de 1960, ainda que a sua infância tenha sido passada em S.
Tomé e Príncipe e também em Moçambique. Na década de 90 regressa a Portugal.
Ainda que tenha efetuado o
percurso académico em Portugal, o início da sua atividade profissional dá-se no
estrangeiro, mais concretamente em Macau, onde viveu e exerceu funções na área
da educação durante oito anos.
Desloca-se a
outros países da África Austral, da Ásia e da Europa, assimilando as diferentes
realidades culturais visitadas, que serviriam de inspiração para a sua escrita.
http://alumni.letras.ulisboa.pt/memorias-vivas/testemunhos/174-memorias-vivas/biografias/decada-90/650-henrique-levy (texto com supressões)
Passageiro das Ilhas, Henrique
Levy plasma em Noivos do Mar a vida a
dois no espaço insular dos Açores.
*
NOIVOS
DO MAR |
PREFÁCIO
Henrique
Levy tem já uma obra consistente. No campo do romance, ostentou uma voz
singular, de timbre camiliano, em Cisne de África (2009) e Praia Lisboa (2010),
e no cultivo da poesia, em Mãos Navegadas (1999) e Intensidades (2001). O ano
passado, regressou à casa da poesia, sua pátria de sempre, com O Silêncio das
Almas (2015).
A sua
poesia é tecida de uma vivência intensa de emoções, de agitação veemente de
prazer ou tristeza, de anseio de felicidade, de repulsa do medo, de uma
permanente melancolia de momentos-êxtase, como se a poesia fosse habitada
simultaneamente por uma inocência virginal, motor do poema, e por um mal-estar
difuso a necessitar de contínua redenção.
E é
justamente esta a grande mensagem de Noivos do Mar, se é que um livro de poesia
necessita de justificação e de mensagem: a redenção é possível, a salvação é
possível.
Nos
seus poemas, Henrique Levy diz-nos como e onde é possível esta redenção.
O
“como” opera-se através do “amor” como laço infinito que tudo envolve: seres
físicos, árvores, animais, a casa, e, sobretudo, o sentimento romântico ou
neo-romântico pelo outro como pulsão de carne, como pulsão sexual, como pulsão
sentimental e como pulsão espiritual. “Pulsão” significa aqui irrupção de
sentimentos, como um vulcão em plena atividade, tão natural e tão caótico como
este. O conjunto irruptivo de sentimentos que não se pode recalcar, muito menos
calar, é designado por “alma”, “coração”, e os poemas são assim o jorro
abrasativo da sua lava.
O
“onde” - Henrique Levy descobriu-o na “ilha”, e esta ilha tem um nome concreto,
São Miguel, nos Açores, mas aceita ser possível nas restantes ilhas dos Açores.
Noivos
do Mar constitui-se, assim, como um hino ao Amor e aos Açores.
É
possível que os Açores constituam o território de Portugal que mais tem
inspirado a criação poética. Não tem fim o número de poemas e de poetas
cantados no e em nome do arquipélago. De qualidade diferente, de Roberto
Mesquita a Pedro Silveira, de Vitorino Nemésio a Natália Correia, de Urbano
Bettencourt a Manuel Tomás, de Eduíno de Jesus a José Martins Garcia, do hoje
clássico Antero de Quental a inúmeros poetas populares, cantores da Saudade e
da Sapateia, em todos as suas obras perpassam os Açores como terra mítica,
melancólica, pulcra mas ingrata, terra afortunada de formosura mas teatro de
injustiça social, que repulsa o seu habitante para a emigração.
Assim,
em todo o poema açoriano repousa, invisível mas pulsante, uma “América” que
redime a ingratidão da terra (os terramotos) e a ingratidão social (a antiga
miséria económica). É o que em Noivos do Mar o poeta designa por “Angústia
Oceânica”, a singularidade da terra no seio de um mar infinito, convidando a
uma permanente inquietação física e mental.
Porém,
na poesia de Henrique Levy, a “América” redentora tem outro nome, designa-se
por Amor, o amor que salva, que perdoa e resgata os trilhos angustiosos da
existência.
Belíssimo
livro, Noivos do Mar, que, a partir de agora, não só merece fazer parte do
poemário dos Açores como de qualquer nova antologia sobre o arquipélago.
Colares, 30 de Junho de 2016,
Miguel Real.
*
NOIVOS
DO MAR|
POSFÁCIO
Em Noivos do Mar, Henrique Levy é
um poeta entre a água, o céu e o que envolve a terra e seus pés descobrem.
Há estrelas também e essa morte
que toca nas palavras e que sentem os leitores tocam a sensibilidade para se
ser perto do que é importante, a vida e a morte. Sem enfeites de nudez fria e
marmorizada entre laivos menos claros, como laços apertados que seguram a vida.
Essa força da Natureza descreve passos, uma força alheia ao dia-a-dia que se
confronta nasilhas como um bailado ao vento. Sei, assim o sinto no que
nos descreve. Vejo a sua alegria. Sei-o apaixonadamente vivo. Um tecido sem ser
“seda” é estopado para que a luz penetre sem dor sem cansaço.
É a
sua presença, a si no olhar e nas palavras do seu livro.
É
bela a Ilha que descreve.
As
ilhas sempre foram pontos de magnânima presença. Sempre se deixaram em
confronto com os mortos, porque o Mar traz às costas os desassossegados que em
vendavais e tempestades ali jazem. Assim das ilhas, a força é singular, a força
é força.
Vejo-me
consigo de mãos dadas com o que descreve. Reconheço as palavras um necessário
véu que filtra o impuro. Reconheço as flores que ainda em verde não precisam de
colorir porque a brevidade dos momentos é constante e assim o esplendor do belo
ali permanece.
A
Vida assim permanece em nós, como os nós permanecem para nós na escrita e se
desenrolam ao amor e à vontade mais breve que é infinito.
A
presença de Antero de Quental no panorama cultural português apresenta uma
similitude, até certo ponto paradoxal, com a vida de Antero ele-mesmo. Com
efeito, o Antero de Quental que a história registou é o de um intelectual
profundamente envolvido nas grandes causas do seu tempo. Associa-se-lhe deste
modo uma áurea de presença excessiva. Dele dizemos que é «uma figura que se
impõe». Já os seus contemporâneos assinalavam nele essa qualidade de presença
afirmativa. Por outro lado, nos momentos em que a vida lhe exigiu recolhimento,
e mesmo alguma clausura face aos acontecimentos, a sua ausência nunca foi
interpretada como demissão de intervenção na vida cultural; mesmo ausente, o
pensamento e a personalidade de Antero – disso são muitos os testemunhos convocáveis
–, irradia em excesso. Sabe-se que ele lidava mal com esse facto.
Avesso ao
que de mundano tem a intervenção social e cultural, pelo imediatismo que se lhe
associa, Antero propõe-se recolocar o debate literário e filosófico no seu
lugar certo: o pensamento. À voragem do acontecimento só raramente a paciência
do pensar sabe responder sem cair na vertigem do imediato. A consequência desta
impossibilidade foi, no poeta, motivo de desespero. Nele, o pensamento era
ânsia de resolver, e nisso se debatia.
A
tragicidade não está na morte ela-mesma, mas na sua confirmação previamente
anunciada. A contradição, qual seja a forma com que ela se apresente, é o sinal
dessa desesperança. Por mais que se insista na fórmula que acompanha o nome
próprio – «Antero, o poeta-filósofo» –, nunca o traço será inclusivo.
A
acreditar no próprio, a justeza da fórmula estará apenas na cronologia que ela
indica. No entanto, o depois – o filósofo que ocupou o lugar do poeta –, não
significa uma dicção contra o antes, apenas (e pouco não é), que a contradição
mudou de lugar.
A
convocação da disciplina é, para o pensamento, a recentração do que lhe é
essencial: o próprio pensar. O que está em jogo não é um mero conflito
intra-psíquico de alguém que viveu atormentado; o que é biografável não pode
obscurecer o que na grafia está para além – ou aquém –, do vivido. No poeta e
no polemista há a consciência de ambas as coisas. Se o conflito, por exaltação
da escrita, ou pela proximidade física e mental dos que na polémica se
envolvem, deriva para a simples luta das influências, logo o pensador se enoja
com a distância entre o que é e o que devia ser. Se a imposição do epíteto –
apesar do Eça –, está condenada a abrir todos os «In Memoriam», também em
Antero de Quental é justo lembrar que a santidade não é uma questão pessoal,
mas a destinação do próprio universo.
Nisto, a
procura da influência funciona por contágio. E Antero sofreu, assumidamente,
contágios à velocidade vertiginosa do comboio do seu tempo. Os anos de
aprendizagem na Coimbra que perdura como mito, revelam um Antero decidido a
escapar ao atavismo cultural em que Portugal mergulhara.
Mas já
aqui se vê o que, para o autor de «Bom Senso e Bom Gosto», é questão: não a
fórmula literária, antes as ideias; não o autor do momento, antes as novas
correntes de pensamento que ressoam pela Europa; não o imobilismo do elogio
mútuo, antes a assumpção sofrida da incessante procura de respostas, ainda que
impossíveis; não o seguidismo face a filosofias, mesmo que da grandeza das de
Hegel, Proudhon, Comte ou Hartmann; antes a pessoal resolução das dicotomias
que atravessavam o pensamento filosófico.
Que a
contradição prevaleça sobre o fixismo das ideias moldáveis para todas as
ocasiões, não é motivo de espanto. Em Antero, no poeta como no filósofo, foi na
aguda consciência das contradições que a pulsão para o pensamento encontrou o
seu terreno. Como o chão da sua terra natal, também o seu pensamento e
personalidade sofrem abalos que exigem refundações permanentes.
O
mal-estar que o caso Antero imprimiu (para o futuro dele e passado nosso),
reside na exemplaridade que nele se conjuga com o sentimento da irredutível
distância entre o ser e o dever ser. Por isso a exigência da dinâmica evolução
do cosmos e do homem era nele causa de sofrida preocupação. Com razão dizia
Fernando Pessoa que, em Antero de Quental, o pessimismo era mais alegre que o
seu optimismo, e a sua fé mais desoladora que a sua crença.
A
confrontação com a exemplaridade tornou-se algo a que não mais podemos
resistir. Mesmo que assobiemos para o lado, ou que nos deixemos enlevar pela
avenidas do progresso sem fim, sempre a revisitação de Antero nos reconduz ao
confronto com a sombra, que em nós tende para a felicidade auto-satisfeita.
Não é a
Questão Coimbrã, os seus porquês e para quês, que merece o nosso espanto; é sim
que ela tenha sido. Mais ainda: a frequência com que a ela regressamos faz
crescer em nós o sentimento de torpor de ela hoje não ser. Nem o que nela
estava em causa foi resolvido – por mais vitória que lhe consagremos nas
literaturas passivas –, nem, por outro lado, a figura de Antero se dissolve no
espírito da época. Essa época hoje já não é. Leia-se isto em toda a sua
extensão.
Das
Conferências do Casino se pode dizer o mesmo às avessas. A sua proibição não
provoca espanto – que tantas (mesmo que poucas) se tivessem realizado, sim. Eis
um risco que hoje não corremos: os comissários da cultura estariam na primeira
fila da assistência.
Sem
Penélope que fie e desfie, sem regresso a uma Ítaca que nunca foi, nem inimigos
visíveis com que se possa confrontar, o suicídio de Antero de Quental continua
acontecendo.