quarta-feira, 17 de agosto de 2022

François Villon, criminoso e poeta

     François Villon (1431?-1463), poeta francês do final da Idade Média, também boémio e ladrão, é precursor dos “poetas malditos” do Romantismo.



 

BALLADE

DES MENUS PROPOS.

 

Je congnois bien mouches en laict ;

Je congnois à la robe l’homme ;

Je congnois le beau temps du laid ;

Je congnois au pommier la pomme ;

Je congnois l’arbre à veoir la gomme ;

 

Je congnois quand tout est de mesme ;

Je congnois qui besongne ou chomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois pourpoinct au collet ;

Je congnois le moyne à la gonne ;

Je congnois le maistre au valet ;

Je congnois au voyle la nonne ;

Je congnois quand piqueur jargonne ;

Je congnois folz nourriz de cresme ;

Je congnois le vin à la tonne ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois cheval du mulet ;

Je congnois leur charge et leur somme ;

Je congnois Bietrix et Bellet ;

Je congnois gect qui nombre et somme ;

Je congnois vision en somme ;

Je congnois la faulte des Boesmes ;

Je congnois filz, varlet et homme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

ENVOI.

 

Prince, je congnois tout en somme ;

Je congnois coulorez et blesmes ;

Je congnois mort qui nous consomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Œuvres complètes de François Villon, Texte établi par éd. préparée par La Monnoye, mise à jour, avec notes et glossaire par M. Pierre Jannet, A. Lemerre éd., 1876 (p. 117-118) <https://fr.wikisource.org/wiki/Ballade_des_Menus_Propos>




[traduções]


 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço a mosca em leite branco,

Conheço o homem pela veste,

Conheço o tempo mau e o brando,

Conheço o ramo e o cipreste,

Conheço a fruta onde se colga,

Conheço quando tudo é o mesmo,

Conheço quem trabalha ou folga,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o gibão no colete,

Conheço no hábito o monge,

Conheço o patrão no valete,

Conheço pelos véus a monja,

Conheço o engano e a lisonja,

Conheço o louco solto a esmo,

Conheço o vinho bom de longe,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o jegue e o ginete,

Conheço a carga que os assoma,

Conheço Bia e Elizabete,

Conheço a ficha que faz soma,

Conheço a visão e o sonho,

Conheço os hereges Boêmios,

Conheço os poderes de Roma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Príncipe, bem conheço, em suma:

Conheço os bons e os enfermos,

Conheço a morte e o que se esfuma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Villon, François. Poesia, trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP, 2000, p. 316-9

 

 

 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço se há moscas no leite,

Conheço pela roupa o homem,

Conheço o tédio e o deleite,

Conheço a fartura e a fome,

Conheço a mulher pelo enfeite,

Conheço o princípio e o fim,

Conheço pela chama o azeite,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço o gibão pela gola,

Conheço o rico pelo anel,

Conheço o fiel pela sacola,

Conheço a monja pelo véu,

Conheço o porco pela tripa,

Conheço o irmão pelo latim,

Conheço o vinho pela pipa,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço a mula e o cavalo,

Conheço o carro e a carreta,

Conheço a galinha e o galo,

Conheço o sino e a sineta,

Conheço a flor pelo talo

Conheço Abel e Caim,

Conheço o pote e o gargalo,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Ofertório

 

Príncipe, conheço tudo em suma,

Conheço o branco e o carmim,

E a morte que o fim consuma.

Conheço tudo, menos a mim.

 

Tradução de Reynaldo Ferreira, http://www.arteculturanews.com/poesia51.htm, 20/6/2005

 

 

BALADA DAS COISAS DESIMPORTANTES

 

Conheço bem moscas no leite;

Conheço o homem pela roupa;

Conheço o bom tempo e o mau;

Conheço a maçã pela macieira;

Conheço a árvore ao ver a goma;

Conheço quando tudo é assim mesmo;

Conheço quem trabalha ou folga;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço o gibão pelo colarinho;

Conheço o monge pelo hábito;

Conheço o mestre pelo criado;

Conheço pelo véu a freira;

Conheço quando trapaceiro deita fala;

Conheço loucos nutridos de cremes;

Conheço o vinho pelo tonel;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço cavalo e mulo,

Conheço seu encargo e sua carga;

Conheço Beatriz e Belinha;

Conheço ficha que conta e soma;

Conheço a vigília e o sono;

Conheço a falta dos Boêmios;

Conheço o poder de Roma.

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Príncipe, eu conheço tudo, em suma.

Conheço corados e pálidos;

Conheço a morte, que nos consome;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

wilson a. ribeiro jr., https://warj.med.br/memo/villon.asp, 30.09.2021

 

François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489)


 

FRANÇOIS VILLON, CRIMINOSO E POETA

Falámos na semana passada, de um príncipe francês e de um nobre de Espanha: Charles d'Orléans e o Marquês de Santillana. Hoje iremos falar de um pobre plebeu de Paris, de quem os azares da existência e as vicissitudes de um temperamento irrequieto fizeram um vagabundo e até um criminoso de direito comum. Mas na balança dos valores poéticos este plebeu pesa sem dúvida muito mais que esses dois nobres, ainda seus contemporâneos; e no tribunal da crítica de poesia este criminoso ver-se-á inteiramente ilibado de culpas. Com efeito, a sua obra (e apenas a sua obra é que temos ele julgar) não apresenta nenhum daqueles pequenos delitos - ele maneirismo, de preciosismo, de artificialidade - que mancham um pouco, aqui e ali, as obras ele Charles d'Orléans e do Marquês ele Santillana. Por outro lado, há em toda essa obra um tal vigor e um tal sabor de genuína raiz popular que a sentimos incomparavelmente mais perto de nós. Enfim, por outras palavras (e isto não tem absolutamente nada a ver com a condição social destes três poetas do século xv), tanto Charles d'Orléans como o Marquês de Santillana, ambos poetas ele primeira categoria, tinham, indubitavelmente, muitíssimo talento; mas François Villon, além do talento - também tinha génio. E não falta mesmo quem o considere o vulto mais genial de toda a poesia francesa.

Essa genialidade manifesta-se logo no domínio da expressão: François Villon possuía, por instinto, o dom da palavra exata, da construção certeira, da imagem que acerta no alvo - e logo nos faz estremecer da cabeça aos pés, porque o alvo é afinal o nosso próprio coração. Um poeta alemão do século xx - Gottfried Benn - escreveu um dia o seguinte a este respeito: "A relação que se tem com a palavra é primária, não pode aprender-se. Pode-se aprender o equilibrismo, a corda bamba, os jogos do trapézio, a marcha em cima dos pregos, mas colocar a palavra para que ela exerça a sua fascinação, isso, ou se sabe fazer ou não se sabe." Ora isto mesmo sabia-o François Villon, e no mais alto grau. Mas saber isto mesmo no mais alto grau também apresenta os seus inconvenientes: os poetas que assim o sabem são praticamente intraduzíveis. E devo confessar, desde já, que, sob este aspeto, poucos poetas até agora me deram tantas dores de cabeça como François Villon. Deixaremos, contudo, este ponto para mais tarde.

De momento, ou eu me engano muito ou há por aí algumas pessoas que estarão interessadas em saber como é que François Villon se tornou um vagabundo e quais os crimes de que veio a ser acusado. A curiosidade acerca deste género de coisas continua ainda a ser muito forte em muita gente. Pois bem: vamos lá a um sucinto relato biográfico.

François Villon - cujo verdadeiro nome era François de Montcorbier (e também conhecido por François des Loges) - nasceu em Paris, provavelmente em 19 de abril de 1432. Paris teria então o aspeto que se vislumbra na zona de fundo deste quadro, com as duas torres da abadia de Saint-Germain-des-Prés ali à esquerda, o vulto do Louvre (do Louvre de então) mesmo no meio e, lá para cima, a Butte Montmartre, o outeiro de Montmartre ... Aqui temos agora, vista também da Rive Gauche, outra perspectiva do Louvre; tratemos de não prestar atenção à figura da direita, em grande plano, e atentemos, sobretudo, naqueles três figurantes, do lado direito, indolentemente encostados ao parapeito sobre o Sena... Serão porventura contemporâneos de François Villon e algum deles, porventura, também estudante como ele foi; e quem sabe também se mais assíduo frequentador, como o próprio Villon, de lugares como estes - a que se chamavam “casas de banhos”, mas eram antes “tabernas” de características muito especiais - do que propriamente das aulas da Universidade... Seja como for, e não obstante os atrativos ele outra ordem que a vida estudantil apresentaria, Villon acaba por licenciar-se pela Faculdade das Artes. Mas, poucos anos depois, as más companhias - tanto masculinas como femininas - arrastam-no para situações altamente comprometedoras. Apesar de tudo, as companhias femininas ainda serão as menos graves - e Villon, mais tarde, certamente se recordará de todas elas, numa saborosa “Balada das Damas de Paris”, em que celebra (já no século xv!), sobre todas as demais mulheres, a tagarelice, o poder de argumentação, a lábia, em suma, elas parisienses:

 

Se bem que sejam bem-falantes

venezianas, florentinas;

se bem que a nós digam bastante

ainda outras mais antigas;

e que as de Roma ou Lombardia

falem que nem um chafariz

(mais as de Génova ou de Pisa)

- finas de boca, só em Paris!

 

Falam de papo geralmente

- ao que se diz - napolitanas;

e são também eloquentes

as alemãs e as prussianas.

Mas sejam gregas ou troianas

ou de qualquer outro país,

húngaras mesmo ou castelhanas

- finas de boca, só em Paris!

 

Sejam bretãs, sejam suíças,

ou de Tolosa, ou da Gasconha,

ao pé de duas parisinas

perdem o pio mais a ronha.

De inglesas digo a mesma cousa.

(Faltou citar algum país?)

Em parte alguma isto se encontra:

- finas de boca, só em Paris!

 

Príncipe, dá a estas damas

justo valor, como um juiz.

Por mais que as outras tenham fama

- finas de boca, só em Paris!

 

Desde já previno os interessados que aquilo que acabaram de ouvir foi mais uma “adaptação” que propriamente uma "tradução": por maior cuidado que se ponha nesta tarefa, o tal poder de François Villon para colocar a palavra no lugar exacto “para que ela exerça a sua fascinação” torna praticamente intraduzíveis quase todas as suas poesias. A esta dificuldade acrescente-se ainda o emprego constante do "calão" - reflexo dos “meios” boémios frequentados por Villon - e ter-se-á uma ideia de quanto são espinhosas ele obter as necessárias correspondências. Darei só um exemplo: no refrão, quando Villon diz “Il n 'est bon bec que de Paris" - o que daria, quase à letra, "Não há línguas afiadas como as de Paris" - , vi-me obrigado a traduzir, até por exigências ele ritmo, "Lábia a valer, só em Paris!". E fui forçado também a omitir referências a outras não-parisienses, tais como: piemontesas, egípcias, lorenas, picardas... Mas creio que se conservou o sentido geral da poesia.

Posto isto, voltemos ao "romance" da vida de Villon. Com efeito, é de um autêntico "romance" que se trata. Envolvido no assassínio de um padre e no assalto ao cofre do Colégio de Navarra, Villon vê-se compelido por mais de uma vez a ausentar-se de Paris e acaba por ser preso, em 1461, em Meung-sur-Loire, nas prisões do bispo de Orléans. Nessa altura o que o salva é a passagem do rei Luís XI por esta cidade e a amnistia de que, por esse motivo, ele se vê beneficiado. É, no entanto, sol de pouca dura: dois anos depois, implicado em nova rixa, ei-lo condenado à forca. Escreve então um dos seus melhores poemas: um epitáfio em forma de balada, em que pede clemência para si e para os companheiros igualmente condenados. Esse é o texto que vamos agora apresentar numa versão de Herculano de Carvalho, incluída no livro Musa de Quatro Idiomas, aonde já temos ido buscar outros empréstimos; e creio poder assegurar que seria impossível traduzir melhor uma poesia como esta:

 

Homens irmãos que mais que nós viveis,

Não deixeis vosso peito empedernido,

Pois que, se compaixão de nós haveis,

Bem será Deus de vós compadecido.

Aqui somos atados cinco, seis.

Quanto à carne, demais por nós nutrida,

É gasta, devorada, corrompida

E nós, ossos, cinza e pó vamos ser.

Que ninguém de nós ria nesta vida;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Se clamamos, irmãos, vós não deveis

Ter desdém, por termos sido feridos

Pela justiça. Pois vós sabereis

Que nem todos têm certos os sentidos;

Intercedei por nós assim transidos

junto do Filho da Virgem Maria,

Que não seja, da graça, a alma vazia,

Pra do fogo infernal nos proteger.

Somos mortos, nada nos arrelia;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Pela chuva lavados e polidos,

Pelo sol ressequidos e tostados,

Os olhos pelos corvos engolidos,

A barba e os cabelos arrancados.

Nunca jamais estamos assentados;

Pra cá, pra lá, como o vento varia;

Para onde quer, sem parar, nos envia.

Bicadas: mil, até dedais parecer.

Não sejais, pois, da nossa confraria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Senhor Jesus, de todos senhoria,

Poupai-nos do Inferno a tirania:

Nada temos com ele a resolver.

Homens, aqui não cabe a zombaria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

A perspetiva da morte iminente, a perspetiva do próprio Inferno, são bem patentes nestes versos, sem dúvida elos mais impressionantes e patéticos de toda a poesia europeia, já pela consciência do mal e pelo sentimento de arrependimento que exprimem, já pela situação extrema em que de facto se inscrevem. E a situação é tão desesperada que só na clemência divina é que François Villon coloca as suas últimas esperanças; só para ela recorre, só dela espera uma derradeira absolvição. Mas a justiça dos homens, por esta vez, intervém a tempo: um decreto do Parlamento vem anular a sentença; e Villon, em lugar da pena ele morte, vê-se tão-só banido de Paris pelo espaço de dez anos. Depois disto, perde-se inteiramente o rasto de François Villon; mas o rasto ela sua poesia, esse, nunca mais se perdeu: e em 1489, menos de trinta anos depois destes acontecimentos, menos ele quarenta anos depois ela invenção da imprensa, um dos primeiros livros de versos que sai dos prelos franceses é justamente o que reúne as obras ele François Villon.

 

David Mourão-Ferreira, "O 'Outono da Idade Média' V - François Villon, criminoso e poeta", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 441-445.

 



 

Poderá também gostar de ler:


DA COSTA, D. Testamento do Vilão – Invenção e recepção da poesia de François Villon. 2013. f. 304. Tese – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

 

DA COSTA, Daniel. “Autor e personagem - François Villon e a nova crítica na França”, in Revista Criação & Crítica n.º 12, 2014. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i12p76-87

 

DA COSTA, Daniel. “Clément Marot: o principal editor antigo do corpus atribuído a François Villon”, in Revista Criação & Crítica, dezembro 2015. DOI:10.11606/issn.1984-1124.v0i15p41-54. Project: Invenção e recepção das obras atribuídas a François Villon

 

BASTOS, Gustavo. “François Villon, o primeiro dos poetas malditos” - parte I (16/07/2016 | Atualizado 08/03/2020) e parte II (23/07/2016 | Atualizado 

 



CARREIRO, José. “François Villon, criminoso e poeta”. Portugal, Folha de Poesia, 17-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/francois-villon-criminoso-e-poeta.html



sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Reunião de toda a prosa de Eugénio de Andrade

Edição da Assírio & Alvim antecede o centenário do nascimento do autor, que se celebra em 2023.


 

Completando o trabalho iniciado com Poesia (2017), aqui se reúnem os livros que Eugénio de Andrade considerava serem a sua obra em ProsaOs Afluentes do Silêncio (1968), Rosto Precário (1979), À Sombra da Memória (1993) e os três textos de A Cidade de Garrett (1993). Delineando uma linha muito ténue entre o que é poesia e prosa, estes textos são, não obstante, uma chave fundamental para entender a obra do poeta, desenhando «um mapa de afetos, de amizades, de prazeres, e também de irritações, de faltas de paciência, de ódios até. Dentro desse mapa desenham-se os gestos da escrita de Eugénio de Andrade. Há aqui uma rede de relações com as artes, com os artistas, com o mundo em geral com o qual o poeta entra em contacto e se mede», como esclarece Federico Bertolazzi, prefaciador deste volume. 

Para além de ensaios sobre poesia e outras artes, há aqui memórias pessoais de lugares e figuras, bem como entrevistas reais e inventadas. Em suma: «estes livros de Eugénio de Andrade representam a contribuição em prosa que este poeta deu para a definição da sua existência no mundo que escolheu.»

 

https://www.assirio.pt/noticias/reuniao-de-toda-a-prosa-de-eugenio-de-andrade-/206385, 2022-05-16

 


 

Eugénio de Andrade. Um salutar nojo pela poesia

 

No volume que reúne, agora com a chancela da Assírio & Alvim, a prosa de Eugénio encontramos um grande crítico e um leitor atento da tradição e dos seus contemporâneos.

 
Eugénio de Andrade é hoje, tal como foi ainda em vida, um poeta consagrado - que é uma outra forma de dizer que, provavelmente, é pouco lido, servindo para dar nome a ruas e para cerimónias oficiais tão ao gosto deste país de que disse tão mal e do qual manteve uma certa distância higiénica, mesmo que tenha aceite inúmeros prémios e distinções. Mas, para quem não se submeta a um pequeno moralismo muito português, a contradição torna-se um direito ou mesmo um dever.
A sua poesia, ao contrário do que acontece com os grandes nomes com que conviveu, tem uma característica bastante peculiar que acaba por a singularizar: está de tal forma imbuída de kitsch, de tal forma impregnada de corpos esbeltos, de “matéria solar” - título de um dos seus livros -, de pele, de corpos que brilham, que refulgem, de todo esse aparato de um desejo que é hoje, para nós, de um mau-gosto bastante terrível e interessante, que é impossível não gostar dela. Numa frase: tudo é tão kitsch, tão bonito, tão mau, que acaba por se tornar interessante e com uma qualidade incrível.
É preciso igualmente acrescentar que a sua poesia foi abertamente política, mesmo não sendo politizada. Política, não num sentido meio quixotesco, hoje muito em voga, fazendo recair sobre a palavra poética e sobre a sua prática um ónus de ação que nunca poderá ser o dela, mas num sentido bastante concreto: Eugénio de Andrade escreveu poemas explicitamente homoeróticos numa época em que escrever desta forma poderia ter consequências bastante mais graves.
Nesta nova edição da Prosa encontramos muitas vezes a continuação daquilo que já estava presente na sua poesia. O gosto declarado pelas outras formas artísticas (a pintura, a escultura, o desenho e, particularmente, a música, à qual dedica diversas páginas), as alusões ao desejo homossexual, nunca afirmado e nunca negado - deixemos os burocratas do espírito verificarem se os papéis se encontram em ordem -, o “rapazito da Galiza, com quem aprendi essas coisas que se devem saber quando se chega à puberdade”, esses corpos masculinos, cheios de luz, desejo e silêncio, as amizades que cultivou, o conhecimento da poesia, o longo namoro com Espanha. São, certamente, textos desiguais, onde certas obras de outras artes dão lugar a longos devaneios de índole poética (e Eugénio sempre foi muito austero, com um vocabulário muito reduzido ao qual pretendia dar o máximo de energia possível), onde encontramos memórias de infância bastante estilizadas e uma espécie de mitologia pessoal que englobava a mãe e o local de nascimento. Depois, há as entrevistas. É certo que as páginas sobre Pessanha, sobre Pascoaes, nos permitem ver que Eugénio era igualmente um grande crítico, um leitor atento da sua tradição e dos seus contemporâneos, mas as diversas entrevistas coligidas neste volume são talvez um momento maior de toda a obra de Eugénio - pelo desassombro, pela coragem, pelo juízo intempestivo que faz do seu tempo e dos seus contemporâneos. Sobre a classe política, com a qual manteve relações ambíguas (tem páginas de elogio a Mário Soares, mas Soares não era um político comum), afirmava que “levam a gravata às ideias, e parecem sempre acabados de sair do costureiro, nunca de um gabinete de trabalho. Fazem nojo, com tanta cagança”.
“Tenho uma relação difícil com o país, é certo. Alguém há dias me chamou a atenção para o facto de a palavra Portugal não ter aparecido nunca num texto meu. Deve ser verdade. O meu desprezo pela mentalidade daqueles «que nunca levaram porrada», e o regime de Salazar, inviabilizaram o uso da palavra. Como os cantores da rádio tornaram ridícula a palavra amor, e os vates da televisão odiosa a palavra poeta. Há vocábulos que, só de ouvi-los em certas bocas, dão vontade de vomitar”.
Uma outra característica que encontramos em diversos momentos é a austeridade e a parcimónia com que Eugénio encarava a sua própria obra, ao ponto de afirmar, a dada altura, que “trezentas páginas de poesia, quando não se é um Baudelaire ou um Whitman, é duma pretensão insuportável”. Esta singela frase, que devia encimar a produção poética nossa contemporânea, tem um certo travo anacrónico, se observarmos os casos daqueles, infelizmente bastante comuns, que a meio da vida já levam o dobro ou o triplo dessas trezentas que, segundo Eugénio, deviam ser privilégio apenas de Baudelaire ou de Whitman. 
Esta parcimónia, que se nota inclusive a nível vocabular (poucas palavras e uma atenção desmedida à prosódia), dá bem conta de um labor oficinal por parte de Eugénio que, muitas vezes, era levado ao ponto de exaustão - o poema estava pronto depois de ter sido trabalho até à náusea, “no sentido de tudo parecer feito sem esforço, com total desprezo pelo luxo, a ornamentação, o exibicionismo, o espírito de feira”.
“Trabalho durante a noite, ou ao fim da tarde. Reescrevo os textos obsessivamente. Em mim, o ataque do poema é de ordem musical. Uma palavra é como uma nota que procura outra para um acorde perfeito. No dia seguinte releio o que escrevi. O que me parece conseguido surge-me agora débil. Aproveito uma linha, duas, recomeço. Às vezes o poema é feito em minutos; outras, demora dias e dias. Não sei se alguma vez me aconteceu contentar-me com um poema escrito sem emendas. Creio que não. Creio que emendei sempre, e continuo a emendar, a rasgar, a deitar fora, numa gaguez que é uma vergonha.”
Trabalho infinito de reescrita - há poemas de Eugénio que têm um número bastante grande de versões diferentes -, acrescido de uma intensa atenção à musicalidade do poema. O que afirma sobre a sua poesia, e que poderia ser dito, igualmente, da poesia de Carlos de Oliveira, talvez se encontre hoje em claro retrocesso: a produção excessiva, com poetas a publicarem um livro por ano, é indício suficiente de que o trabalho oficinal, o peso e o sopesamento da palavra poética, o rigor arquitectónico que Eugénio colocava nos seus livros, é trocado por uma tagarelice que tomou o lugar da obra - ou mesmo da Obra, em maiúscula, se se quiser ouvir uma certa dose de fatalidade escolhida na escrita.
Depois, claro, há um ódio salutar à poesia, que encontramos por diversas vezes afirmado ao longo dos textos coligidos: “Ler, ouvir música, viajar, amar um corpo jovem é bem melhor que escrever poesia.” ou então: “estive meses e até anos sem escrever uma só linha, com nojo da poesia, como se fora excreção imunda.”. É certo que pode haver aqui uma retórica subjacente muito próxima da inspiração - se tudo aquilo é melhor que escrever poesia (e quem o pode negar?), a necessidade desta, quando surge, tem de ser imperiosa, inescapável, mais forte que tudo isso que é melhor que ela; é também certo que há ou parece haver (mas como decidir?) muita pose em muitas das afirmações que faz - mas a Eugénio desculpa-se, porque o que diz é suficientemente interessante; em todo o caso, esse nojo da poesia, cuja palavra nunca crescerá à altura desses corpos que plantam nela a sua memória, é uma poderosa ferramenta da oficina poética, contrariamente ao pequeno prazer de ser poeta e de escrever poesia que se encontra com frequência aqui e ali.
Mas tudo isto que lemos nas entrevistas e noutros textos, a parcimónia, a atenção à musicalidade, o trabalho oficinal de reescrita cujo resultado final é o despojamento que lemos na poesia, a mitologia pessoal que foi erigindo através da poesia, tem um antecedente que Eugénio de Andrade está constantemente a colocar em destaque: a relação à tradição, a atenção que lhe devota ao ponto de saber de onde vem, com que poetas enceta um diálogo que, no caso de Pessanha, Cesário e Pessoa, vai durar toda uma vida, e para onde vai.
“Ultimamente, dou comigo a pensar que sou dos raros poetas portugueses actuais que escreve com a consciência de que outros escreveram antes dele, e o fizeram com ritmos, sons, estruturas de uma língua comum. Como qualquer outro escritor, tenho uma família, de quem herdei alguns bens, com baixa cotação no mercado, é certo, mas de que sou cioso, e de que nunca me desfiz. São coisas que gostaria de passar a outras mãos, não direi mais limpas, mas talvez mais ousadas.”
Esta relação à tradição, este diálogo intenso que faz com que escreva páginas bastante interessantes sobre Pessanha, por exemplo, ou mesmo Camões, apesar de não ser especialista em nenhum deles e de o seu olhar não se encontrar cheio de notas de rodapé (nada contra as referidas notas, no entanto), é bastante interessante não apenas porque é, ao mesmo tempo, uma das qualidades e um dos limites desta poesia (ela está presa dentro de uma tradição bastante determinada da lírica), mas também porque sinaliza esse desaparecimento progressivo da tradição, ao ponto de hoje a relação poética não se estabelecer em relação ao passado, mas ao presente.
Um exemplo de entre muitos que se poderiam citar dessa progressiva perda da tradição (que não é, obviamente, geral), e que pode ter como consequência paradoxal uma poesia “feita de ecos doutros ecos, pedante, enfática, livresca” (a tradição também se perde no meio de tanto eco, de tanto piscar de olho à tradição), é um pequeno programa de entrevistas a poetas orientado por Teresa Coutinho e organizado pela Casa Fernando Pessoa em conjunto com o teatro Nacional D. Maria II - um pouco injusto se tivermos em conta que surge como negativo do ponto de vista de alguém como Eugénio de Andrade, mas o objectivo aqui é outro que não uma comparação. Nada contra este género de actividade, apesar de padecer do problema de toda a divulgação de poesia que, no limite, acaba por desposar uma lógica de supermercado onde todos os produtos se equivalem, resvalando para uma lógica onde a partir da possibilidade se chega à igualdade - mas Daniel Jonas, Carlos Poças Falcão, ou Margarida Vale do Gato não são a mesma coisa que Francisca Camelo ou Beatriz Hierro Lopes, por mais que a colocação do produto na prateleira “poesia contemporânea” pretenda sugerir o contrário. Mas quem se dê ao trabalho de ouvir todos os programas nota duas coisas: em primeiro lugar, a quase inexistência de referências a outros poetas que não sejam contemporâneos (ou então um elencar de poetas de tal forma díspares que só podemos ficar de sobreaviso) e, em segundo lugar, a absoluta banalidade do que é dito, ao ponto de um exercício interessante consistir em obrigar todo o exército de poetas a escrever um pequeno ensaio - não mais do que cinco páginas - sobre um outro poeta anterior à década de 80 do século passado (sem ser Herberto Helder, claro).
Talvez uma forma interessante de tentar compreender essa relação à tradição que, segundo Eugénio de Andrade, se tem vindo a deteriorar, seja apelar a uma lógica antológica, ou melhor, a uma lógica do “single” - como em música. Submetendo a tradição a um modelo de supermercado, vai-se escolhendo poema a poema, ali uma imagem bem conseguida, aqui uma palavra de que se gosta, organizando a tradição numa antologia interminável onde tudo surge submetido a um estetismo do gosto/não gosto - e daí, deste estetismo, não se consegue sair para nada além de uma reactividade binária que torna impossível qualquer palavra. É o “single”, esquecendo, no entanto, que o “single” não é um álbum e que um álbum não é uma carreira. 

 

João Oliveira Duarte, https://ionline.sapo.pt/artigo/778194/eugenio-de-andrade-um-salutar-nojo-pela-poesia, 07/08/2022

 

 

Poderá também gostar de:

 


CARREIRO, José. “Reunião de toda a prosa de Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 12-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/reuniao-de-toda-prosa-de-eugenio-de.html


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Uma Botânica da Paz: Visitação (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)



 

UMA BOTÂNICA DA PAZ: VISITAÇÃO

 

Tenho uma flor

de que não sei o nome

 

Na varanda,

em perfume comum

de outros aromas:

hibisco, uma roseira,

um pé de lúcia-lima

 

Mas esses são prodígios

para outra manhã:

é que esta flor

gerou folhas de verde

assombramento,

minúsculas e leves

 

Não a ameaçam bombas

nem românticos ventos,

nem mísseis, ou tornados,

nem ela sabe, embora esteja perto,

do sal em desavesso

que o mar traz

 

E o céu azul de Outono

a fingir Verão

é, para ela, bênção,

como a pequena água

que lhe dou

 

Deve ser isto

uma espécie da paz:

 

um segredo botânico

de luz

 

Ana Luísa Amaral, Entre Dois Rios e Outras Noites, 2007



Questionário sobre a leitura do poema «Uma botânica da paz: visitação»:

1.  Explique a razão da escolha do título, tendo e atenção o assunto do poema.

2.  O sujeito poético começa por se referir à flor de diferentes formas. Explique qual o seu objetivo.

3.  Comprove a existência de vários sentidos para captar a realidade, no poema.

4.  Identifique o recurso expressivo presente na quarta estrofe e explique o seu valor expressivo.

 

Liliana Vieira Conde, Sebenta Português 12.º ano - Poetas do século XXI - Ana Luísa Amaral <https://xdocs.com.br/doc/poetas-do-seculo-xxi-qnjxxrmx5486>

 



CARREIRO, José. “Uma Botânica da Paz: Visitação (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de Poesia, 11-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/uma-botanica-da-paz-visitacao-ana-luisa.html


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

 
Ana Luísa Amaral diz o seu "Soneto científico a fingir".



SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35.

 

 

Num poema chamado "Soneto Científico a Fingir" (E Muitos os Caminhos, p. 35), a poeta finge um soneto, que não é, e ostenta a poesia como mentira em relação ao eu que se inscreve no texto: "não consigo falar-me como devo,/ ou seja, na mentira que é o verso/ ou seja, na mentira do que mostro". Trata-se, nesse "Soneto Científico a Fingir", de glosar o eterno e velho tema do amor, e a ciência que o poeta propõe é a da mentira, do desvio em relação ao centro: «dar o mote ao amor, glosar o tema/ e depois desviar. Isso é ciência!» Descentrar, mais uma vez, mentindo e com a mentira inventar - «O melhor rouxinol:/ o inventado», diz-se noutro poema a fingir-se ode, intitulado "Ao Rouxinol: a Ode que não é" (E Muitos os Caminhos, p. 49).

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001.

[Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].




 

Neste poema – um “soneto coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza de cinco quadras que multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”? (MARTELO) – Ana Luísa Amaral expõe algumas características que estarão presentes em toda a sua obra: o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente em sua poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia petrarquiana – retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro de poemas). No entanto, este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um soneto “científico” – que tem ciência. Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para a execução de uma arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe ao amor e que o explica como reação química?

Obviamente que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a fingir” (grifo nosso) não pode passar despercebida a “poética do fingimento” de Fernando Pessoa, a poética que tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no título do poema, nos deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e Camões) e a herança do maior poeta modernista português: Pessoa. E essa é mais uma característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a possibilidade de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e mesmo com a poesia contemporânea portuguesa.

Portanto, Ana Luísa sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas modernistas, explorar os temas e as formas clássicas – abandonados pelos poetas modernos com seus versos e linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas clássicas não deixa de ser, de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral ao retornar ao uso das formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado pela poesia modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral nos apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e modernas: observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma forma clássica, há uma continuidade, na não utilização de rimas, com o modernismo: “Só não vejo vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou melhor, na não utilização das rimas como forma fixa, pois também este não seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E é exatamente neste ponto de seu “Soneto científico a fingir”, que a poeta trará a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.

Na tradição da poesia modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luísa Amaral “sabe” que deve apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve “falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais, dizia eu, / não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é possível perceber que Ana Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é rígida nem na forma de seguir a tradição, nem na forma de romper com ela. Melhor dizendo: a poeta dialogará com as tradições, subvertendo as regras na sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve um soneto, mas é um soneto “coxo” e com linguagem coloquial.

Não se trata de um soneto de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, mas de um poema de vinte versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza de linguagem elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma linguagem irónica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última estrofe do poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: / dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!”

Ana Luísa Amaral estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a tradição: escrever sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e depois ter a sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de imitatio, a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição se desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja preciso escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o soneto.

Voltemos outra vez ao verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar apresentado aqui: sua poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o “poema de pé quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo fato de, por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e feminilidade, não é possível manter-se estritamente na tradição.

 

Rhea Sílvia Willmer, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014

 


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CARREIRO, José. “Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de Poesia, 10-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/soneto-cientifico-fingir-ana-luisa.html