No volume que reúne, agora com a chancela da
Assírio & Alvim, a prosa de Eugénio encontramos um grande crítico e um
leitor atento da tradição e dos seus contemporâneos.
Eugénio de Andrade é hoje,
tal como foi ainda em vida, um poeta consagrado - que é uma outra forma de
dizer que, provavelmente, é pouco lido, servindo para dar nome a ruas e para
cerimónias oficiais tão ao gosto deste país de que disse tão mal e do qual
manteve uma certa distância higiénica, mesmo que tenha aceite inúmeros prémios
e distinções. Mas, para quem não se submeta a um pequeno moralismo muito português,
a contradição torna-se um direito ou mesmo um dever.
A sua
poesia, ao contrário do que acontece com os grandes nomes com que conviveu, tem
uma característica bastante peculiar que acaba por a singularizar: está de tal
forma imbuída de kitsch, de tal forma impregnada de corpos esbeltos, de
“matéria solar” - título de um dos seus livros -, de pele, de corpos que
brilham, que refulgem, de todo esse aparato de um desejo que é hoje, para nós,
de um mau-gosto bastante terrível e interessante, que é impossível não gostar
dela. Numa frase: tudo é tão kitsch, tão bonito, tão mau, que acaba por se
tornar interessante e com uma qualidade incrível.
É
preciso igualmente acrescentar que a sua poesia foi abertamente política, mesmo
não sendo politizada. Política, não num sentido meio quixotesco, hoje muito em
voga, fazendo recair sobre a palavra poética e sobre a sua prática um ónus de
ação que nunca poderá ser o dela, mas num sentido bastante concreto: Eugénio de
Andrade escreveu poemas explicitamente homoeróticos numa época em que escrever
desta forma poderia ter consequências bastante mais graves.
Nesta
nova edição da Prosa encontramos muitas vezes a continuação daquilo que já
estava presente na sua poesia. O gosto declarado pelas outras formas artísticas
(a pintura, a escultura, o desenho e, particularmente, a música, à qual dedica
diversas páginas), as alusões ao desejo homossexual, nunca afirmado e nunca
negado - deixemos os burocratas do espírito verificarem se os papéis se
encontram em ordem -, o “rapazito da Galiza, com quem aprendi essas coisas que
se devem saber quando se chega à puberdade”, esses corpos masculinos, cheios de
luz, desejo e silêncio, as amizades que cultivou, o conhecimento da poesia, o
longo namoro com Espanha. São, certamente, textos desiguais, onde certas obras
de outras artes dão lugar a longos devaneios de índole poética (e Eugénio
sempre foi muito austero, com um vocabulário muito reduzido ao qual pretendia
dar o máximo de energia possível), onde encontramos memórias de infância bastante
estilizadas e uma espécie de mitologia pessoal que englobava a mãe e o local de
nascimento. Depois, há as entrevistas. É certo que as páginas sobre Pessanha,
sobre Pascoaes, nos permitem ver que Eugénio era igualmente um grande crítico,
um leitor atento da sua tradição e dos seus contemporâneos, mas as diversas
entrevistas coligidas neste volume são talvez um momento maior de toda a obra
de Eugénio - pelo desassombro, pela coragem, pelo juízo intempestivo que faz do
seu tempo e dos seus contemporâneos. Sobre a classe política, com a qual
manteve relações ambíguas (tem páginas de elogio a Mário Soares, mas Soares não
era um político comum), afirmava que “levam a gravata às ideias, e parecem
sempre acabados de sair do costureiro, nunca de um gabinete de trabalho. Fazem
nojo, com tanta cagança”.
“Tenho
uma relação difícil com o país, é certo. Alguém há dias me chamou a atenção
para o facto de a palavra Portugal não ter aparecido nunca num texto meu. Deve
ser verdade. O meu desprezo pela mentalidade daqueles «que nunca levaram
porrada», e o regime de Salazar, inviabilizaram o uso da palavra. Como os
cantores da rádio tornaram ridícula a palavra amor, e os vates da televisão
odiosa a palavra poeta. Há vocábulos que, só de ouvi-los em certas bocas, dão
vontade de vomitar”.
Uma
outra característica que encontramos em diversos momentos é a austeridade e a
parcimónia com que Eugénio encarava a sua própria obra, ao ponto de afirmar, a
dada altura, que “trezentas páginas de poesia, quando não se é um Baudelaire ou
um Whitman, é duma pretensão insuportável”. Esta singela frase, que devia
encimar a produção poética nossa contemporânea, tem um certo travo anacrónico,
se observarmos os casos daqueles, infelizmente bastante comuns, que a meio da
vida já levam o dobro ou o triplo dessas trezentas que, segundo Eugénio, deviam
ser privilégio apenas de Baudelaire ou de Whitman.
Esta
parcimónia, que se nota inclusive a nível vocabular (poucas palavras e uma
atenção desmedida à prosódia), dá bem conta de um labor oficinal por parte de
Eugénio que, muitas vezes, era levado ao ponto de exaustão - o poema estava
pronto depois de ter sido trabalho até à náusea, “no sentido de tudo parecer
feito sem esforço, com total desprezo pelo luxo, a ornamentação, o
exibicionismo, o espírito de feira”.
“Trabalho
durante a noite, ou ao fim da tarde. Reescrevo os textos obsessivamente. Em
mim, o ataque do poema é de ordem musical. Uma palavra é como uma nota que
procura outra para um acorde perfeito. No dia seguinte releio o que escrevi. O
que me parece conseguido surge-me agora débil. Aproveito uma linha, duas,
recomeço. Às vezes o poema é feito em minutos; outras, demora dias e dias. Não
sei se alguma vez me aconteceu contentar-me com um poema escrito sem emendas.
Creio que não. Creio que emendei sempre, e continuo a emendar, a rasgar, a
deitar fora, numa gaguez que é uma vergonha.”
Trabalho
infinito de reescrita - há poemas de Eugénio que têm um número bastante grande
de versões diferentes -, acrescido de uma intensa atenção à musicalidade do
poema. O que afirma sobre a sua poesia, e que poderia ser dito, igualmente, da
poesia de Carlos de Oliveira, talvez se encontre hoje em claro retrocesso: a
produção excessiva, com poetas a publicarem um livro por ano, é indício
suficiente de que o trabalho oficinal, o peso e o sopesamento da palavra
poética, o rigor arquitectónico que Eugénio colocava nos seus livros, é trocado
por uma tagarelice que tomou o lugar da obra - ou mesmo da Obra, em maiúscula,
se se quiser ouvir uma certa dose de fatalidade escolhida na escrita.
Depois,
claro, há um ódio salutar à poesia, que encontramos por diversas vezes afirmado
ao longo dos textos coligidos: “Ler, ouvir música, viajar, amar um corpo jovem
é bem melhor que escrever poesia.” ou então: “estive meses e até anos sem
escrever uma só linha, com nojo da poesia, como se fora excreção imunda.”. É
certo que pode haver aqui uma retórica subjacente muito próxima da inspiração -
se tudo aquilo é melhor que escrever poesia (e quem o pode negar?), a
necessidade desta, quando surge, tem de ser imperiosa, inescapável, mais forte
que tudo isso que é melhor que ela; é também certo que há ou parece haver (mas
como decidir?) muita pose em muitas das afirmações que faz - mas a Eugénio
desculpa-se, porque o que diz é suficientemente interessante; em todo o caso,
esse nojo da poesia, cuja palavra nunca crescerá à altura desses corpos que plantam
nela a sua memória, é uma poderosa ferramenta da oficina poética,
contrariamente ao pequeno prazer de ser poeta e de escrever poesia que se
encontra com frequência aqui e ali.
Mas
tudo isto que lemos nas entrevistas e noutros textos, a parcimónia, a atenção à
musicalidade, o trabalho oficinal de reescrita cujo resultado final é o
despojamento que lemos na poesia, a mitologia pessoal que foi erigindo através
da poesia, tem um antecedente que Eugénio de Andrade está constantemente a
colocar em destaque: a relação à tradição, a atenção que lhe devota ao ponto de
saber de onde vem, com que poetas enceta um diálogo que, no caso de Pessanha,
Cesário e Pessoa, vai durar toda uma vida, e para onde vai.
“Ultimamente,
dou comigo a pensar que sou dos raros poetas portugueses actuais que escreve
com a consciência de que outros escreveram antes dele, e o fizeram com ritmos,
sons, estruturas de uma língua comum. Como qualquer outro escritor, tenho uma
família, de quem herdei alguns bens, com baixa cotação no mercado, é certo, mas
de que sou cioso, e de que nunca me desfiz. São coisas que gostaria de passar a
outras mãos, não direi mais limpas, mas talvez mais ousadas.”
Esta
relação à tradição, este diálogo intenso que faz com que escreva páginas
bastante interessantes sobre Pessanha, por exemplo, ou mesmo Camões, apesar de
não ser especialista em nenhum deles e de o seu olhar não se encontrar cheio de
notas de rodapé (nada contra as referidas notas, no entanto), é bastante
interessante não apenas porque é, ao mesmo tempo, uma das qualidades e um dos
limites desta poesia (ela está presa dentro de uma tradição bastante
determinada da lírica), mas também porque sinaliza esse desaparecimento
progressivo da tradição, ao ponto de hoje a relação poética não se estabelecer
em relação ao passado, mas ao presente.
Um
exemplo de entre muitos que se poderiam citar dessa progressiva perda da
tradição (que não é, obviamente, geral), e que pode ter como consequência
paradoxal uma poesia “feita de ecos doutros ecos, pedante, enfática, livresca”
(a tradição também se perde no meio de tanto eco, de tanto piscar de olho à
tradição), é um pequeno programa de entrevistas a poetas orientado por Teresa
Coutinho e organizado pela Casa Fernando Pessoa em conjunto com o teatro
Nacional D. Maria II - um pouco injusto se tivermos em conta que surge como
negativo do ponto de vista de alguém como Eugénio de Andrade, mas o objectivo
aqui é outro que não uma comparação. Nada contra este género de actividade,
apesar de padecer do problema de toda a divulgação de poesia que, no limite,
acaba por desposar uma lógica de supermercado onde todos os produtos se
equivalem, resvalando para uma lógica onde a partir da possibilidade se chega à
igualdade - mas Daniel Jonas, Carlos Poças Falcão, ou Margarida Vale do Gato
não são a mesma coisa que Francisca Camelo ou Beatriz Hierro Lopes, por mais
que a colocação do produto na prateleira “poesia contemporânea” pretenda
sugerir o contrário. Mas quem se dê ao trabalho de ouvir todos os programas
nota duas coisas: em primeiro lugar, a quase inexistência de referências a
outros poetas que não sejam contemporâneos (ou então um elencar de poetas de
tal forma díspares que só podemos ficar de sobreaviso) e, em segundo lugar, a
absoluta banalidade do que é dito, ao ponto de um exercício interessante
consistir em obrigar todo o exército de poetas a escrever um pequeno ensaio -
não mais do que cinco páginas - sobre um outro poeta anterior à década de 80 do
século passado (sem ser Herberto Helder, claro).
Talvez
uma forma interessante de tentar compreender essa relação à tradição que,
segundo Eugénio de Andrade, se tem vindo a deteriorar, seja apelar a uma lógica
antológica, ou melhor, a uma lógica do “single” - como em música. Submetendo a
tradição a um modelo de supermercado, vai-se escolhendo poema a poema, ali uma
imagem bem conseguida, aqui uma palavra de que se gosta, organizando a tradição
numa antologia interminável onde tudo surge submetido a um estetismo do
gosto/não gosto - e daí, deste estetismo, não se consegue sair para nada além
de uma reactividade binária que torna impossível qualquer palavra. É o
“single”, esquecendo, no entanto, que o “single” não é um álbum e que um álbum
não é uma carreira.
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