Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar), pus-me a calcorrear estas pedras roídas de saudade… (Miguel Torga, 1942)
Sagres, https://www.kimkim.com/ab/faro-to-sagres |
SAGRES
Vinha de longe o mar...
Vinha de longe, dos confins do medo...
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.
E a terra ouvia, de perfil agudo,
A confidencial revelação
Que iluminava tudo
Que fora bruma na imaginação.
Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!)
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.
Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens da certeza incerta
Teriam de se unir!
Miguel Torga, Poemas
Ibéricos, 1965
1.
Refira distintamente os traços caracterizadores de «mar» e de «terra».
2.
Atribua um conteúdo ao «segredo» que o mar diz à terra, com base em elementos
do texto.
3.
Analise o efeito expressivo produzido pela repetição da palavra «vinha» (vv.
1-3).
4.
Atente na segunda e na terceira estrofes. Explicite os valores semânticos das
formas do imperfeito do indicativo.
5.
Comente a importância da última estrofe na construção do sentido do poema.
Explicitação de cenários de resposta:
1. Os elementos «mar» e «terra»
estão personificados no poema, configurando duas personagens em interlocução.
O «mar» apresenta-se caracterizado como
sendo:
- oriundo
de um lugar longínquo e tenebroso («Vinha de longe [...] dos confins do
medo...»);
-
tranquilizador («azul e brando»), comunicando com a terra em tom sussurrante
(«a murmurar»);
-detentor
de um saber secreto sobre o cosmos («cósmico segredo», «confidencial
revelação»);
-
sedutor, envolvente, atestando com juramentos (v. 12) a certeza do «segredo»
revelado;
- ...
A «terra» caracteriza-se por:
- estar
atenta ao que o «mar» lhe murmura («E a terra ouvia»);
-ter um
«perfil agudo» que se acentua à medida que, envolvida pelo «mar», aumenta o seu
interesse pela «revelação» que este lhe faz («E o agudo perfil mais se
aguçava»);
- estar
determinada, após a apreensão do «cósmico segredo», a encetar o processo da
«descoberta», da união entre as suas «duas margens»;
- ...
2. O «segredo» que o mar diz à
terra pode ter como conteúdo o seguinte:
- a
transmissão da incompletude cósmica da «terra»;
- a
«revelação» da existência, apenas intuída, de outros mundos;
- a ideia
de que era preciso partir à descoberta de essa outra terra, ainda desconhecida,
que até então só o mar tocara;
- ...
Nota - A apresentação de uma linha de
interpretação plausível é considerada suficiente para a atribuição da
totalidade da cotação referente aos aspectos de conteúdo.
3. A repetição da palavra «vinha»,
de natureza anafórica, presente no poema, produz tanto o efeito de toada
melódica como o de intensificação dos sentidos expressos (o «mar» aproxima-se
da «terra» de forma demorada, recorrente, tranquila, envolvente).
4. As formas do imperfeito do
indicativo - «ouvia», «iluminava», «Era», «faltava», «faltava», «aguçava»,
«jurava» -, pelo seu efeito durativo, dão conta da reacção da «terra» como um
processo que se desenvolve num crescendo. (Refira-se que a forma «Era»,
integrada na expressão enfática «Era [...] que», serve ainda de ligação às duas
estrofes.)
5. A última estrofe do poema relaciona
o texto com o seu título, ao confirmar que a «terra» de que se fala no poema é
o cabo de «Sagres», lugar investido de um particular significado histórico e
mítico no contexto dos Descobrimentos portugueses, por se considerar o espaço inaugural
dos mesmos. Com efeito, «Sagres» (o «agudo perfil» que se «aguçava») é o ponto
de onde a «terra» partirá para realizar a missão de que se autoinvestiu
(«Sagres sagrou»): unir-se à outra parte de si, converter em certeza a
incerteza do mundo revelado.
(Fonte:
Português B: questões de exame do 12.º ano, 1998-2003, volume 1. Gabinete de Avaliação Educacional do
Ministério da Educação. - 1ª ed. - Lisboa: GAVE, 2004)
Textos de apoio
Texto de apoio 1
Última
aproximação que neste estudo faço entre Torga e Pessoa é a do poema “Sagres” –
que nos Poemas ibéricos abre a segunda parte do livro, “História
trágico-marítima” – com o “O Infante”, que na Mensagem inicia “Mar português”,
segunda parte desta obra pessoana. […]
A
aproximação faz-se possível não só por uma questão temática e nem mesmo da
economia lírica de ambos os poemas, mas porque há evidências de uma sintaxe
pessoana neste poema de Torga localizáveis, por exemplo, no efeito
estilístico-discursivo de repetições como “vinha de longe o mar.../ Vinha de
longe” ou “Era o resto do mundo que faltava/ (Porque faltava mundo)”, ou o
paradoxo de expressões como “certeza incerta”, ou ainda no efeito
contrapontístico e reiterativo de substantivos e verbos de mesmo prefixo:
“Sagres sagrou”, “descoberta por descobrir”. Além disso, Sagres (Torga) é, na
“mitologia” portuguesa, o lugar do Infante (Pessoa), da contemplação do longe,
do mar desconhecido, do sonho das descobertas, da união das margens de várias
terras que pelo mar se haveria de fazer. É essa semântica “mitológica” tão
portuguesa e tão pessoana, que o poema de Torga reflete, por entre efeitos de
estilo. Na escrita de Pessoa, “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. / Deus
quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse já não separasse/ Sagrou-te
e foste desvendando a espuma, // E a orla branca foi de ilha em continente,/
Clareou, correndo, até ao fim do mundo, / E viu-se a terra inteira, de
repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo.” Poderia fazer a demonstração de
algumas aproximações pontuais em cada texto, algumas tão evidentes como o “Sagres
sagrou”, de Torga, que reflete o verso pessoano “Sagrou-te e foste desvendando
a espuma”, ou o “azul profundo” do qual se vê a terra surgir redonda e que no
poema torguiano resulta no “azul e brando” do mar, murmurando “Aos ouvidos da
terra um cósmico segredo”. Entretanto, mais importantes do que essas
aproximações é a síntese temática, magistral em cada poema: “Deus quis que a
terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse” (Pessoa); “Sagres
sagrou então a descoberta/ Por descobrir: / As duas margens da certeza incerta/
Teriam de se unir!” (Torga).
José
Paiva, “Entre Pessoa e Régio, Miguel Torga”. Revista Eutomia Ano I
– Nº 01 (55-70)
TORGA, Miguel (1965) POEMAS IBÉRICOS. Coimbra: [«Coimbra Editora, Lda.]. De 18x13 cm. Com 80 págs. E. |
Texto de apoio 2
Sagres
O teimoso
promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto de nós. (Torga, 1986a: 141)
Cada vez
mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade acumulava, e a
que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as
linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de
se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os
cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente. (Torga, 1986a: 140)
Em 1942
«Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três
coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar)» (Torga, 1999: 158)
o autor de Diário foi pela primeira vez a Sagres à procura dum «Homem
português que fosse o verdadeiro Infante» (Torga, 1999: 158). Ele sabia que o
promontório de Sagres simbolizava o ponto nevrálgico da colossal antena que era
a Península Ibérica, península descrita no poema «Ibéria» como «Uma antena da
Europa a receber/ A voz do longe que lhe quer falar…» (Torga, 1995a: 7). E o
que a voz do longe queria dizer à Ibéria era «um cósmico segredo.(…) [:] As
duas margens da certeza incerta/ Teriam de se unir!» (Torga, 1995a: 21).
O
primeiro herói torguiano a aperceber-se de tudo o que implicava esse «cósmico
segredo» foi o Infante D. Henrique [«Sagres humano com raiz no mar» (Torga,
1952: 22), o mesmo é dizer um homem que «Irradia vontade e confiança» (Torga,
1986a: 39)].
Depois da
gesta assombrosa que foram os Descobrimentos portugueses, Portugal entra numa
profunda e longa crise, da qual nunca viria a recuperar, e que Torga,
certamente influenciado por Antero e Oliveira Martins, comenta nestes termos:
Depois
esquecemos a lição. A intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara,
expulsou o judeu e o capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos
reais do esforço despendido iria fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas
riquezas do progresso outros valores igualmente cotados na praça da
civilização, que teriam agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso
interior … Mas não. Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a
ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande
maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar,
as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.
Mas a lengalenga
não enterneceu o pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários.
Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade
acumulava, e a que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora,
endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à
degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva –
necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do
presente. (Torga, 1986a: 140)
Depois
deste texto do último capítulo de Portugal, Torga viria a escrever no Diário
duas notas sobre Sagres e o Infante. A primeira data de 1976 e reflete a
profunda preocupação e mágoa com que o autor de Portugal observava a
forma como nesse período era ensinada a História: «Sagres sem o infante. (…)
Agora, que não temos História, o recurso é olhar esta grandeza assim, ao
natural. Mas que falta lhe faz o herói! Que falta fazem os mitos, afinal!»
(Torga, 1999: 1322)
Três anos
depois o diarista volta ao promontório, e, como das outras vezes, vai
acompanhado da esperança de encontrar o Infante. Com algum espanto nosso
encontra-o «no espanto recolhido de quantos aqui vêm.» (Torga, 1999: 1399) E
nós perguntamos se não haverá na constatação torguiana excesso de otimismo. Das
dezenas de vezes que fomos a Sagres sentimos na maioria dos visitantes um
entusiasmo que estava bastante aquém do que era legítimo esperar. Voltaremos a
esta questão na conclusão da tese.
Em 1982 o
autor de Mar faz um «Grande passeio de barco ao longo da costa» (Torga,
1999: 1465) algarvia, com a finalidade de aprofundar o conhecimento da
identidade de Portugal: «Talvez (…) depois de tanto lhe esquadrinhar em terra a
identidade, seja essa a maneira mais direta de o surpreender na sua flagrância
elementar. Como que a flutuar ainda no líquido amniótico.» (Torga, 1999: 1465)
Terra e mar revelam-se, mais uma vez, fundamentais para a compreensão da
identidade nacional.
Em Março
de 1970, depois de uma viagem aos Açores e à Madeira, Torga escreveu, a bordo,
um curtíssimo poema, mas fundamental para compreendermos o significado nacional
que atribuía ao Atlântico:
Descoberta
O tempo
que levou a tua imagem
A
encontrar nos meus olhos a medida
Dum
íntimo destino,
Mar que
juntas a pátria repartida
E lhe
salgas o nome masculino!
E, como
não podia deixar de ser, o mar, na obra torguiana, está profundamente ligado à
emigração. Em 1988 escreveu: «Todos os caminhos transversais de Portugal vêm
ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que
nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança, ou na imaginação.»
(Torga, 1999: 1616). É óbvio que quando o autor do Diário escreveu esta
nota a realidade nacional já não era esta. Desde os anos sessenta os emigrantes
utilizam cada vez menos o transporte marítimo e o principal destino passa a ser
a Europa. Mas Torga pensava numa perspetiva histórica, e aí a nossa emigração é
através do Atlântico.
O mar era
também, para Torga, um espaço ideal para falar e refletir sobre os mais nobres
sentimentos. Por mero acaso, encontrou durante um banho na praia da Oura,
pessoas conhecidas dum grande amigo seu «que a morte levou cedo». Depois de
afirmar que «Em sua memória, as ondas abrandaram a fúria durante o diálogo», o
poeta concluiu a nota do Diário com esta reflexão:
Vir ao
mundo só vale a pena assim: quando se deixa nele uma imagem que em todos os
tempos e lugares mereça a celebração dos que ficam e a bênção da própria
natureza. Quando, a lembrar-nos, a posteridade sinta que não há grandeza maior
do que a grandeza de alma. (Torga, 1999: 1596-7)
A
convivência de Torga com o mar, com a emigração (por mar), com as gentes
marítimas (pescadores e, não menos importante, com as peixeiras) e com a
história de Portugal tê-lo-á ajudado a «pescar imagens» (Torga, 1999: 263) para
a sua poesia, e a interiorizar, cada vez mais, o poema «Identificação», de Orfeu
Rebelde:
Vai a
barca do mundo à flor das vagas
No seu
mar de tormentas;
(…)
E tu,
poeta, como um sacerdote
Da
bonança,
A
conjurar o mal,
A pregar
confiança,
A cantar,
A cantar,
Sem
nenhum desespero
Te
desesperar!
(…)
(Torga, 1992a: 46)
José
Manuel Cymbron, O Portugal De Miguel Torga (Um Itinerário Em Casa Do Orfeu
Rebelde). Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2015
Poderá
também gostar de:
- “A poética torguiana”,
Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia,
09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981),
Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de
apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Sagres, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 28-09-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sagres-miguel-torga.html