quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Sagres, Miguel Torga

Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar), pus-me a calcorrear estas pedras roídas de saudade… (Miguel Torga, 1942)


Sagres, https://www.kimkim.com/ab/faro-to-sagres

 

SAGRES

 

Vinha de longe o mar...

Vinha de longe, dos confins do medo...

Mas vinha azul e brando, a murmurar

Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.

 

E a terra ouvia, de perfil agudo,

A confidencial revelação

Que iluminava tudo

Que fora bruma na imaginação.

 

Era o resto do mundo que faltava

(Porque faltava mundo!)

E o agudo perfil mais se aguçava,

E o mar jurava cada vez mais fundo.

 

Sagres sagrou então a descoberta

Por descobrir:

As duas margens da certeza incerta

Teriam de se unir!

 

Miguel Torga, Poemas Ibéricos, 1965

 


 

1. Refira distintamente os traços caracterizadores de «mar» e de «terra».

2. Atribua um conteúdo ao «segredo» que o mar diz à terra, com base em elementos do texto.

3. Analise o efeito expressivo produzido pela repetição da palavra «vinha» (vv. 1-3).

4. Atente na segunda e na terceira estrofes. Explicite os valores semânticos das formas do imperfeito do indicativo.

5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Os elementos «mar» e «terra» estão personificados no poema, configurando duas personagens em interlocução.

    O «mar» apresenta-se caracterizado como sendo:

- oriundo de um lugar longínquo e tenebroso («Vinha de longe [...] dos confins do medo...»);

- tranquilizador («azul e brando»), comunicando com a terra em tom sussurrante («a murmurar»);

-detentor de um saber secreto sobre o cosmos («cósmico segredo», «confidencial revelação»);

- sedutor, envolvente, atestando com juramentos (v. 12) a certeza do «segredo» revelado;

- ...

 

    A «terra» caracteriza-se por:

- estar atenta ao que o «mar» lhe murmura («E a terra ouvia»);

-ter um «perfil agudo» que se acentua à medida que, envolvida pelo «mar», aumenta o seu interesse pela «revelação» que este lhe faz («E o agudo perfil mais se aguçava»);

- estar determinada, após a apreensão do «cósmico segredo», a encetar o processo da «descoberta», da união entre as suas «duas margens»;

- ...

 

2. O «segredo» que o mar diz à terra pode ter como conteúdo o seguinte:

- a transmissão da incompletude cósmica da «terra»;

- a «revelação» da existência, apenas intuída, de outros mundos;

- a ideia de que era preciso partir à descoberta de essa outra terra, ainda desconhecida, que até então só o mar tocara;

- ...

Nota - A apresentação de uma linha de interpretação plausível é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspectos de conteúdo.

 

3. A repetição da palavra «vinha», de natureza anafórica, presente no poema, produz tanto o efeito de toada melódica como o de intensificação dos sentidos expressos (o «mar» aproxima-se da «terra» de forma demorada, recorrente, tranquila, envolvente).

 

4. As formas do imperfeito do indicativo - «ouvia», «iluminava», «Era», «faltava», «faltava», «aguçava», «jurava» -, pelo seu efeito durativo, dão conta da reacção da «terra» como um processo que se desenvolve num crescendo. (Refira-se que a forma «Era», integrada na expressão enfática «Era [...] que», serve ainda de ligação às duas estrofes.)

 

5. A última estrofe do poema relaciona o texto com o seu título, ao confirmar que a «terra» de que se fala no poema é o cabo de «Sagres», lugar investido de um particular significado histórico e mítico no contexto dos Descobrimentos portugueses, por se considerar o espaço inaugural dos mesmos. Com efeito, «Sagres» (o «agudo perfil» que se «aguçava») é o ponto de onde a «terra» partirá para realizar a missão de que se autoinvestiu («Sagres sagrou»): unir-se à outra parte de si, converter em certeza a incerteza do mundo revelado.

 

(Fonte: Português B: questões de exame do 12.º ano, 1998-2003, volume 1. Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação. - 1ª ed. - Lisboa: GAVE, 2004)

 



 

Textos de apoio

 

Texto de apoio 1

 

Última aproximação que neste estudo faço entre Torga e Pessoa é a do poema “Sagres” – que nos Poemas ibéricos abre a segunda parte do livro, “História trágico-marítima” – com o “O Infante”, que na Mensagem inicia “Mar português”, segunda parte desta obra pessoana. […]

A aproximação faz-se possível não só por uma questão temática e nem mesmo da economia lírica de ambos os poemas, mas porque há evidências de uma sintaxe pessoana neste poema de Torga localizáveis, por exemplo, no efeito estilístico-discursivo de repetições como “vinha de longe o mar.../ Vinha de longe” ou “Era o resto do mundo que faltava/ (Porque faltava mundo)”, ou o paradoxo de expressões como “certeza incerta”, ou ainda no efeito contrapontístico e reiterativo de substantivos e verbos de mesmo prefixo: “Sagres sagrou”, “descoberta por descobrir”. Além disso, Sagres (Torga) é, na “mitologia” portuguesa, o lugar do Infante (Pessoa), da contemplação do longe, do mar desconhecido, do sonho das descobertas, da união das margens de várias terras que pelo mar se haveria de fazer. É essa semântica “mitológica” tão portuguesa e tão pessoana, que o poema de Torga reflete, por entre efeitos de estilo. Na escrita de Pessoa, “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. / Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse já não separasse/ Sagrou-te e foste desvendando a espuma, // E a orla branca foi de ilha em continente,/ Clareou, correndo, até ao fim do mundo, / E viu-se a terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo.” Poderia fazer a demonstração de algumas aproximações pontuais em cada texto, algumas tão evidentes como o “Sagres sagrou”, de Torga, que reflete o verso pessoano “Sagrou-te e foste desvendando a espuma”, ou o “azul profundo” do qual se vê a terra surgir redonda e que no poema torguiano resulta no “azul e brando” do mar, murmurando “Aos ouvidos da terra um cósmico segredo”. Entretanto, mais importantes do que essas aproximações é a síntese temática, magistral em cada poema: “Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse” (Pessoa); “Sagres sagrou então a descoberta/ Por descobrir: / As duas margens da certeza incerta/ Teriam de se unir!” (Torga).

 

José Paiva, “Entre Pessoa e Régio, Miguel Torga”. Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (55-70)

 

TORGA, Miguel (1965) POEMAS IBÉRICOS. Coimbra: [«Coimbra Editora, Lda.]. De 18x13 cm. Com 80 págs. E.


Texto de apoio 2


Sagres


O teimoso promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto de nós.  (Torga, 1986a: 141)

Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade acumulava, e a que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.  (Torga, 1986a: 140)

 

Em 1942 «Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar)» (Torga, 1999: 158) o autor de Diário foi pela primeira vez a Sagres à procura dum «Homem português que fosse o verdadeiro Infante» (Torga, 1999: 158). Ele sabia que o promontório de Sagres simbolizava o ponto nevrálgico da colossal antena que era a Península Ibérica, península descrita no poema «Ibéria» como «Uma antena da Europa a receber/ A voz do longe que lhe quer falar…» (Torga, 1995a: 7). E o que a voz do longe queria dizer à Ibéria era «um cósmico segredo.(…) [:] As duas margens da certeza incerta/ Teriam de se unir!» (Torga, 1995a: 21).

O primeiro herói torguiano a aperceber-se de tudo o que implicava esse «cósmico segredo» foi o Infante D. Henrique [«Sagres humano com raiz no mar» (Torga, 1952: 22), o mesmo é dizer um homem que «Irradia vontade e confiança» (Torga, 1986a: 39)].

Depois da gesta assombrosa que foram os Descobrimentos portugueses, Portugal entra numa profunda e longa crise, da qual nunca viria a recuperar, e que Torga, certamente influenciado por Antero e Oliveira Martins, comenta nestes termos:

 

Depois esquecemos a lição. A intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara, expulsou o judeu e o capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos reais do esforço despendido iria fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas riquezas do progresso outros valores igualmente cotados na praça da civilização, que teriam agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso interior … Mas não. Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.

Mas a lengalenga não enterneceu o pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários. Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade acumulava, e a que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente. (Torga, 1986a: 140)

 

Depois deste texto do último capítulo de Portugal, Torga viria a escrever no Diário duas notas sobre Sagres e o Infante. A primeira data de 1976 e reflete a profunda preocupação e mágoa com que o autor de Portugal observava a forma como nesse período era ensinada a História: «Sagres sem o infante. (…) Agora, que não temos História, o recurso é olhar esta grandeza assim, ao natural. Mas que falta lhe faz o herói! Que falta fazem os mitos, afinal!» (Torga, 1999: 1322)

Três anos depois o diarista volta ao promontório, e, como das outras vezes, vai acompanhado da esperança de encontrar o Infante. Com algum espanto nosso encontra-o «no espanto recolhido de quantos aqui vêm.» (Torga, 1999: 1399) E nós perguntamos se não haverá na constatação torguiana excesso de otimismo. Das dezenas de vezes que fomos a Sagres sentimos na maioria dos visitantes um entusiasmo que estava bastante aquém do que era legítimo esperar. Voltaremos a esta questão na conclusão da tese.

Em 1982 o autor de Mar faz um «Grande passeio de barco ao longo da costa» (Torga, 1999: 1465) algarvia, com a finalidade de aprofundar o conhecimento da identidade de Portugal: «Talvez (…) depois de tanto lhe esquadrinhar em terra a identidade, seja essa a maneira mais direta de o surpreender na sua flagrância elementar. Como que a flutuar ainda no líquido amniótico.» (Torga, 1999: 1465) Terra e mar revelam-se, mais uma vez, fundamentais para a compreensão da identidade nacional.

Em Março de 1970, depois de uma viagem aos Açores e à Madeira, Torga escreveu, a bordo, um curtíssimo poema, mas fundamental para compreendermos o significado nacional que atribuía ao Atlântico:

Descoberta

O tempo que levou a tua imagem

A encontrar nos meus olhos a medida

Dum íntimo destino,

Mar que juntas a pátria repartida

E lhe salgas o nome masculino!

 

E, como não podia deixar de ser, o mar, na obra torguiana, está profundamente ligado à emigração. Em 1988 escreveu: «Todos os caminhos transversais de Portugal vêm ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança, ou na imaginação.» (Torga, 1999: 1616). É óbvio que quando o autor do Diário escreveu esta nota a realidade nacional já não era esta. Desde os anos sessenta os emigrantes utilizam cada vez menos o transporte marítimo e o principal destino passa a ser a Europa. Mas Torga pensava numa perspetiva histórica, e aí a nossa emigração é através do Atlântico.

O mar era também, para Torga, um espaço ideal para falar e refletir sobre os mais nobres sentimentos. Por mero acaso, encontrou durante um banho na praia da Oura, pessoas conhecidas dum grande amigo seu «que a morte levou cedo». Depois de afirmar que «Em sua memória, as ondas abrandaram a fúria durante o diálogo», o poeta concluiu a nota do Diário com esta reflexão:

Vir ao mundo só vale a pena assim: quando se deixa nele uma imagem que em todos os tempos e lugares mereça a celebração dos que ficam e a bênção da própria natureza. Quando, a lembrar-nos, a posteridade sinta que não há grandeza maior do que a grandeza de alma. (Torga, 1999: 1596-7)

A convivência de Torga com o mar, com a emigração (por mar), com as gentes marítimas (pescadores e, não menos importante, com as peixeiras) e com a história de Portugal tê-lo-á ajudado a «pescar imagens» (Torga, 1999: 263) para a sua poesia, e a interiorizar, cada vez mais, o poema «Identificação», de Orfeu Rebelde:

 

Vai a barca do mundo à flor das vagas

No seu mar de tormentas;

(…)

E tu, poeta, como um sacerdote

Da bonança,

A conjurar o mal,

A pregar confiança,

A cantar,

A cantar,

Sem nenhum desespero

Te desesperar!

(…) (Torga, 1992a: 46)

 

José Manuel Cymbron, O Portugal De Miguel Torga (Um Itinerário Em Casa Do Orfeu Rebelde). Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2015


 

Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 

 


CARREIRO, José. “Sagres, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 28-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sagres-miguel-torga.html


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Pedagogia: Brinca enquanto souberes!, Miguel Torga

 





Coimbra, 16 de março de 1960

 

PEDAGOGIA1

 

Brinca enquanto souberes!

Tudo o que é bom e belo

Se desaprende…

A vida compra e vende

A perdição.

Alheado e feliz,

Brinca no mundo da imaginação,

Que nenhum outro mundo contradiz!

 

Brinca instintivamente

Como um bicho!

Fura os olhos do tempo,

E à volta do seu pasmo alvar2

De cabra-cega tonta,

A saltar e a correr,

Desafronta3

O adulto que hás de ser!

 

Miguel Torga, Antologia Poética (6.ª ed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

 

__________

1 Pedagogia - teoria da arte, filosofia ou ciência da educação, com vista à definição dos seus fins e dos meios capazes de os realizar;

2 alvar – pateta;

3 Desafronta – liberta, deixa respirar livremente.

 

 

I - Para responderes a cada item, seleciona a opção mais adequada ao conteúdo do texto.

 

1. «Brinca enquanto souberes!» (v.1) significa que a criança

a) brinca quando quer.

b) cedo deixará a brincadeira.

c) brinca quando tem autorização.

d) nem sempre sabe brincar.

 

2. O ato de desaprender tem como responsável

a) a vida que compra e vende a perdição.

b) o desaparecimento do bom e do belo.

c) a brincadeira quando se é adulto.

d) o menino que feriu os olhos do tempo.

 

3. O sujeito poético incita a criança a furar os olhos do tempo (v. 11) porque

a) o tempo não o deixa brincar.

b) não vale a pena ser adulto.

c) o tempo logo o fará adulto.

d) ela é responsável e infeliz.

 

4. «instintivamente» (v. 9) tem como sinónimo

a) conscientemente.

b) espontaneamente.

c) ininterruptamente.

d) premeditadamente.

  

Chave de respostas: 1. b; 2. a; 3. c; 4.b

 

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa 3.º ciclo 1.ª Fase 2021. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 

***

 

II – Elabora um comentário do poema “Pedagogia”, de Miguel Torga, tendo em conta os seguintes itens:

- destinatário;

- ensinamentos/conselhos;

- atitude do sujeito poético perante a vida;

- valor semântico dos lexemas "bicho" e "instinto";

- naturalismo das imagens;

- características de Torga.

 

Tópicos de correção do comentário de texto:

Destinatário:

- gente jovem ("Desafronta / o adulto que hás de ser!')

 

Ensinamentos / conselhos:

- "brinca";

- "imagina";

- aproveita ao máximo o tempo;

- nunca deixes de sonhar, de lutar pelos teus sonhos.

 

Atitude do eu poético perante a vida:

- à medida que se vai ficando mais velho,

· ganham-se maldade e vícios ("Tudo o que é bom e belo / se desaprende"),

· perde-se a pureza, a ingenuidade ("A vida compra e vende / A perdição"),

· as pessoas tomam-se mais frias, calculistas e interesseiras ("Brinca no mundo da imaginação / Que nenhum outro mundo contradiz"),

· os adultos prendem-se a regras opressivas ("Brinca instintivamente / Como um bicho!');

- por isso, há que correr contra o tempo e manter-se sempre jovem.

 

Valor semântico dos lexemas "bicho" e "instinto":

- liberdade, naturalidade;

- oposição à razão, às regras.

 

Naturalismo das imagens:

 -imagens perfeitas para se entender a mensagem do eu lírico;

- simplicidade discursiva própria para crianças.

 

Características de Torga:

- desespero humanista;

- preocupação social;

- o concreto.

 

Poderá também gostar de:

 

  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 

 


CARREIRO, José. “Pedagogia: Brinca enquanto souberes!, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 27-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/pedagogia-brinca-enquanto-souberes.html


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Lamento (Pátria sem rumo), Miguel Torga

“Há uma coisa que nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança”.

Miguel Torga, Diário IV, 1985



Poema de Miguel Torga declamado pelo autor.
80 Poemas por Miguel Torga, Antena 1, 1987-12-04
Lisboa e São Martinho da Anta


Chaves, 11 de setembro de 1975

 

LAMENTO

 

Pátria sem rumo, minha voz parada

Diante do futuro!

Em que rosa-dos-ventos há um caminho

Português?

Um brumoso caminho

De inédita aventura,

Que o poeta, adivinho,

Veja com nitidez

Da gávea da loucura?

 

Ah, Camões, que não sou, afortunado!

Também desiludido

Mas ainda lembrado da epopeia!

Ah, meu povo traído,

Mansa colmeia

A que ninguém colhe o mel!...

Ah, meu pobre corcel

Impaciente,

Alado

E condenado

A choutar nesta praia do Ocidente...

 

Miguel Torga, Antologia Poética, Diário XII, 1977, Coimbra, pp. 447-448

 

 

Questionário sobre o poema "Lamento", de Miguel Torga.

1. Faça o levantamento dos vocábulos ligados à navegação marítima e justifique por que se lhe faz referência.

2. Justifique o título.

3. Tendo em atenção a data de produção do poema, explicite a razão para a ocorrência das frases exclamativa e interrogativas na primeira estrofe.

4. Explicite que conceito de poeta está expresso na primeira estrofe.

5. Refira o que se pretende significar com os símbolos “colmeia” e “corcel”.

6. De que precisa a Pátria?

 

 

Cenários de resposta:

1. Os vocábulos ligados à navegação marítima - rumorosa-dos-ventos, brumoso, nitidez, gávea, Camões, epopeia, praia do Ocidente – dão conta do estado anti-heroico e sem rumo que se vivia em Portugal, no pós-25 de abril de 1974.

 

2. O poeta explicita tristemente a dor, a amargura e desalento de o país não estar bem.

 

3. A exclamação inicial dá conta da sua perplexidade perante o estado de crise, decadência e indefinição do país, no pós-25 de abril. Por esta razão, o sujeito poético interroga-se sobre o rumo que Portugal deverá seguir.

 

4. A tónica de desalento faz com que Torga acredite mais na Literatura do que na sua literatura (“minha voz parada”). No texto, o sujeito poético menciona o poeta-adivinho, aquele que é clarividente (que “veja com nitidez”) num país decadente, em estado de insanidade (“loucura”). Portanto, temos um poeta empenhado civicamente, que tem uma missão a cumprir na inversão da situação que o preocupa.

 

5. Colmeia pode ser entendida como referência ao povo trabalhador; corcel, por sua vez, será o povo lutador.

 

6. Segundo a leitura do poema, a Pátria precisaria, por exemplo, de ser revitalizada através dos valores de trabalho e de luta associados ao povo. 

Nota: sabemos que em 1974, no primeiro congresso, Miguel Torga enviou uma mensagem ao PS: “Votos de que o povo português possa encontrar na realidade de um socialismo de feição própria a sua plenitude humana e a sua dignidade cívica não projetadas numa lonjura messiânica, mas inseridas num concreto futuro próximo”. Falou algumas vezes em ações políticas de esclarecimento e defendia umSocialismo comunitário de base anarquista”. (http://denunciacoimbra2.wordpress.com/2007/08/13/a-miguel-torga/).

 

 

Miguel torga - 80 Poemas. Portugal, EMI, 1987


    Texto de apoio

  

As malhas identitárias tecidas pela História

 

A revolução de Abril semeou inicialmente algumas breves ilusões em Torga (1999: 1297) mas depois diversos aspetos desencadearam a desilusão, a sensação de que os ideias de liberdade e igualdade pelos quais lutou foram traídos, através do seu pungente “lamento”: ”Pátria sem rumo, minha voz parada / Diante do futuro! / Em que rosa-dos-ventos há um caminho / Português?// […] Ah, meu povo traído, / Mansa colmeia / A que ninguém colhe o mel!.../ Ah, meu pobre corcel/ […] A choutar nesta praia do Ocidente” (1999:1311).

Neste caso, é com a voz da pátria que ninguém ouve que o poeta se identifica, perante a perspetiva de um futuro incerto e nebuloso face à inércia de um povo, incapaz de encontrar o caminho certo para desenvolver o país, como foi feito pelos antepassados. Por conseguinte, os portugueses, essa “mansa colmeia”, parecem condenados à mediocridade e ao abandono na cauda da Europa.

O diarista revela-nos a sua preocupação com a instabilidade do país, com a pobreza cultural, agravada pelo longo período ditatorial e pela inércia dos governantes que, de modo demagógico, prometem melhorar a situação, sem que tal suceda.

A mesma nostalgia e preocupação habitam o poema “Pátria”, escrito a 28/4/1977, que esboça o retrato do país, ao longo de oito séculos de existência, exaltando-lhe os êxitos e constatando o desmoronar do império:

 

Foste um mundo no mundo, / E és agora / O resto que de ti / Já não posso perder: / A terra, o mar e o céu / Que todo eu / Sei conhecer. // Foste um sonho redondo, / E és agora / Um palmo de amargura / Retornada. / Amargura que em mim / Também nunca tem fim, / Por ter sido comigo baptizada. // Foste um destino aberto, / E és agora / Um destino fechado. / Destino igual ao meu, amortalhado / Nesta luz de incerteza / E de certeza / Que vem do sol presente e do passado. (1999:1335).

 

Neste caso, a aliança entre a pátria e o poeta é de novo evidente, já que em ambos habita a amargura, uma espécie de antinomia entre um passado glorioso e um presente decadente e, além do mais, partilham o mesmo “destino amortalhado”. A mesma ideia de uma condenação eminente espelha-se, um mês depois, ao desabafar: “Á medida que o tempo passa mais agónicas são as horas. A saúde piora, a pátria desintegra-se, a solidão aumenta” (1999:1336).

Do ponto de vista cultural, constata-se a crítica à perda da autenticidade, à imitação do estrangeiro, sendo condenado na literatura o francesismo e a imitação de outros modelos estrangeiros. Além disso, essa tendência, paralela à mediocridade reflete-se também na arquitetura e em todas as artes em geral.

Por isso, inquieta-o a perda de genuinidade e a descaracterização que afetam algumas paisagens que a importação de modas estrangeiras adultera, substituindo a arquitetura rural tradicional. Tal facto é visível numa anotação datada de 22/12/1975, onde afirma que não resistimos à avalanche emigratória devido à falta de casticismo, segurança anímica e “imunidade cultural”, por isso “degradados na própria inocência, somos hoje um mostruário de tintas e a vergonha dos olhos” (1999:1314).

Por outro lado, num registo datado de 30/5/1982, Torga refere a proliferação de grupos culturais pelo país, que parecem norteados por uma certa ânsia de procurar as raízes. Todavia, este interesse, segundo o autor, reduz-se a um ilusório renascimento, visto que: “Perdido o sentido da História, toda a reidentificação coletiva não passa de um tropismo obstinado da memória” (1999:1461).

Por seu turno, o diarista revela alguma preocupação e desconfiança devido à entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia, receando que o nosso país, como refere em 1991: “receba diariamente ordens alheias de cultura e cultivo, e seja obrigatoriamente transformado num eucaliptal” (1999:1718). É, então, ainda na sequência desta preocupação que o autor se opõe à regionalização que, segundo ele, provocaria uma desintegração da identidade nacional, mutilando-a. (1999:1722-1731).

É novamente o receio da perda da identidade, da liberdade, da individualidade histórica e cultural que emerge, quando o autor ergue a sua voz contra o tratado de Maastricht, afirmando:

 

Tenho por certo que Maastricht há-se ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa-nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. (1999:1740)

 

Esta posição é ainda reiterada no discurso de agradecimento do prémio “Figura do Ano” (8/7/92), onde considera Maastricht como uma irresponsabilidade da Europa e uma traição à nossa identidade (1999:1745); no discurso de agradecimento do Prémio Montaigne (1999:1752) e também quando o Tratado entra em vigor (1999:1778). A Europa é representada como um elemento cilindrador da nossa cultura e identidade, transparecendo o receio da alienação económica e cultural, movida pelos interesses económicos niveladores. Emerge a oposição entre um Portugal vulnerável, subserviente, e a Europa poderosa e dominadora.

Neste último volume (o XVI), constatamos que as notas motivadas pelas digressões ao ar livre, a desvendar novos horizontes, pelas estradas de Portugal e do mundo, são radicalmente substituídas pelo cenário do seu escritório. Condenado à imobilidade, Torga refugia-se numa mais profunda interioridade e reflexividade, perspetivando o mundo em constante mudança, entre quatro paredes. Porém, o seu interesse pelo exterior não diminui. Aliás, como já havia escrito: “O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo” (1999:1280). E, nesta esteira, surge-nos um outro conceito de “pátria” ainda não referido, e que ultrapassa a territorial. À semelhança do que já preconizara Fernando Pessoa, também Torga considera como sua pátria a Língua Portuguesa, como explicita numa passagem datada de 14/11/1966:

 

Pessoa sabia: a língua é uma pátria. A pátria dum escritor, pelo menos. Pátria que não herda passivamente de qualquer providencial Afonso Henriques, mas activa e penosamente constrói dia a dia, unindo no tempo o seu corpo disperso. [….]

Sim, a língua é uma pátria, e como consola lembrá-lo em certas horas! Enche o coração de paz a certeza de que nenhuma marginalidade margina os cultores da palavra, centros geográficos da nação, queiram ou não os imperadores do silêncio. (1999:1094-1095)

 

Deste modo, o amor à terra portuguesa expande-se à língua, materializando-se neste Diário através da escrita autêntica, mas depurada e, muito particularmente, da poesia. Será pois esta a última “pátria” onde a identidade se projeta.

Nesta esteira, no Diário, a análise do “eu” não se sobrepõe à análise da realidade circundante, ambas se fundem e se interpenetram. Isto porque a escrita de Torga, como acto primordial, ontológico que é, germina nas fragas profundas do seu ser, autêntica e única (pois quanto mais autêntica, mais universal). O seu vasto conhecimento da terra, da cultura da História, da literatura nacional e mundial é apenas um “meio” e nunca um fim.

 

Gago, Dora Nunes. “Avivo no teu rosto, o rosto que me deste”: espelhos da identidade nacional no Diário de Miguel Torga. Moderna Sprak, Upsala, Sweden 106(1).2012. pp. 65-84.

 

    Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 

 


CARREIRO, José. “Lamento (Pátria sem rumo), Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 26-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/lamento-patria-sem-rumo-miguel-torga.html



domingo, 25 de setembro de 2022

Mar! Miguel Torga


 

MAR

 

Mar!

Tinhas um nome que ninguém temia:

Era um campo macio de lavrar

Ou qualquer sugestão que apetecia...

 

Mar!

Tinhas um choro de quem sofre tanto

Que não pode calar-se, nem gritar,

Nem aumentar nem sufocar o pranto...

 

Mar!

Fomos então a ti cheios de amor!

E o fingido lameiro1, a soluçar,

Afogava o arado2 e o lavrador!

 

Mar!

Enganosa sereia rouca e triste!

Foste tu quem nos veio namorar,

E foste tu depois que nos traíste!

 

Mar!

E quando terá fim o sofrimento!

E quando deixará de nos tentar

O teu encantamento!

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.a ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999

_________

Vocabulário

1 lameiro – terreno húmido ou temporariamente alagado.

2 arado – instrumento agrícola utilizado para lavrar a terra.

 

 

Este poema mostra bem o desejo de regressar à terra, ao interior abandonado em busca de fama. Ê necessário e urgente regressar à nossa terra para descobrir as causas dos seus padecimentos: "esta toma de consciência sobre la amarga realidad de un país enfermo les lleva a procurar conocimiento profundo de las tierras y los hombres.", afirma Abellan em relação à Geração de 98 espanhola na sua "Antologia dei 98". Tudo é possível ainda se se aproveitarem as energias internas do país. Para transformar-se na essência da sua verdadeira dimensão ontológica o homem ibérico terá de assimilar a energia da Terra e deixar-se de "miragens" tentadoras e perigosas, sair daquele estado de "Espana que pasó y no ha sido".

(Paulo Carvalho, Miguel Torga & Espanha (Poemas Ibéricos). Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dezembro 1997)

 

***

 

Responde, de forma completa e bem estruturada, aos itens que se seguem.

1. Identifica duas palavras diferentes, uma na primeira estrofe e a outra na última estrofe, que evidenciem a presença de um «tu» no poema.

2. Explicita dois motivos que podem ter contribuído para a decisão expressa em «Fomos então a ti cheios de amor!» (verso 10), considerando a primeira e a segunda estrofes.

3. Explica o sentido dos versos 11 e 12, referindo o que podem representar «o fingido lameiro», «o arado» e «o lavrador», no contexto em que ocorrem.

4. Indica a razão pela qual a expressão «Enganosa sereia» (verso 14) pode ser considerada metáfora de «Mar».

5. Lê os últimos versos do poema «Mar Português», de Fernando Pessoa, apresentados abaixo, e o comentário que se lhes segue.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, Mensagem, edição de Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

Tanto nestes versos de «Mar Português» como no poema de Miguel Torga, é possível identificar-se um contraste no modo como o mar é apresentado.

Defende este comentário, explicitando o contraste referido. Fundamenta a tua resposta com elementos textuais que evidenciem esse contraste.

 

Cenários de resposta

1. Identifica, por exemplo, «Tinhas» (verso 2) e «teu» (verso 20).

 

2. Explicita, por exemplo, que a sedução exercida pelo mar e a sua capacidade para comover podem ter contribuído para a decisão.

 

3. Explica o sentido dos versos, referindo que «o fingido lameiro» é o mar traiçoeiro, que faz naufragar a embarcação e o marinheiro, representados como «o arado» e «o lavrador», respetivamente.

 

4. Indica que a expressão «Enganosa sereia» pode ser considerada metáfora de «Mar», porque, tal como a sereia é perigosa, por seduzir e depois enganar, também o mar representa perigo, por atrair e depois atraiçoar.

 

5. Defende o comentário, explicitando que, no poema «Mar» e nos versos citados, o mar é apresentado, por um lado, como um elemento negativo e, por outro, como um elemento positivo e fundamenta, referindo, por exemplo, que, nos versos de «Mar Português», o mar representa «o abismo», mas, ao mesmo tempo, reflete «o céu» e que, no poema de Miguel Torga, o mar é associado, simultaneamente, a «sofrimento» (verso 18) e a «encantamento» (verso 20).

 

Fonte: Prova Final do 3.º Ciclo do Ensino Básico n.º 91| Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho | Prova Final de Português e critérios de classificação. Portugal, GAVE, 2013, 1.ª Chamada

 

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 




CARREIRO, José. “Mar!, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 25-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/mar-miguel-torga.html