terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Prece: Senhor, a noite veio e a alma é vil. (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Segunda Parte - Mar Português

 



 

XII

PRECE

 






5





10


Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

 

Fernando Pessoa, Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 73. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/92

 

__________
Glossário:
remoça (verso 10) – rejuvenesce.
vil (verso 1) – desprezível, indigna.

  

Texto de apoio:

«Prece» é o título do poema com que a Segunda Parte da obra termina. O tom de súplica, que o atravessa, em consonância, aliás, com o próprio título, exprime a dor da incerteza em relação ao futuro de Portugal. Um Portugal caracterizado como «alma vil», «silêncio hostil», em suma, como o país decadente que o último poema da obra – «Nevoeiro» – há de pincelar com tintas ainda mais negras. Um Portugal indolente que contrasta com a «tormenta e a vontade» que foi o Portugal das Descobertas.

O empenhamento colectivo precisa do estímulo que a «desgraça» ou a «ânsia» da alma insatisfeita representam; precisa dessa perdida febre de navegar, dessa «busca de quem somos. Na distância / De nós», de que o poema «Noite» (Terceira Parte da Mensagem) faz a apologia.

Não resulta, por isso, indiferente que este poema de 12 versos seja o 12.° e último da Segunda Parte. Ao apelo à mobilização coletiva que o percorre não é alheio o ciclo completo (simbologia do número Doze) que se cumpriu com o mar, e que se apresenta como «a lição do ter sido». Falta-nos cumprir o poder vir a ser que essa lição do passado profeticamente anuncia, como fica explícito logo no primeiro dos poemas desta parte da obra: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (Mensagem, «O Infante»)

Os versos que terminam o poema «Prece», numa esotérica circularidade do tempo e do espaço, reenviam-nos precisamente para a necessidade de cumprir esse futuro adivinhado do passado, que foi a posse dos mares: «E outra vez conquistemos a Distância – / Do mar ou outra, mas que seja nossa!»

(Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo, Porto, Areal Ed., 2000, pp. 113-114)





I - Questionário sobre o poema “Prece”, de Fernando Pessoa:

1. Enquadre o poema na estrutura da obra a que pertence.

2. Apresente marcas discursivas e lexicais que justifiquem o título do poema.

3. A quem dirige o sujeito poético (indiferenciado num nós) a sua prece?

4. Esclareça o sentido e o objetivo da prece.

5. Tendo em conta a sua significação no universo deste poema e da Mensagem, classifique, como disfóricas ou eufóricas, as palavras relevadas no seguinte levantamento: «noite»; «vil»; «tormenta»; «silêncio»; «hostil»; «mar universal»; «saudade»; «chama»; «vida»; «frio morto»; «cinzas»; «a mão do vento»; «erguê-la»; «sopro»; «aragem»; «esforço»; «remoça»; «Distância»; «mar».

6. Interprete o simbolismo de cada uma das duas linhas de força que as palavras relevadas na questão anterior desenvolvem.

7. Destaque, no poema, três momentos:

- o momento em que a «Prece» é confissão;

- o momento em que a «Prece» é esperança;

- o momento em que a «Prece» é apelo.

8. Identifique a tonalidade dada ao sentido pelo aspeto verbal (observe o modo e a pessoa) de «conquistemos».

9. Localize no poema duas conexões adversativas e clarifique a mudança que elas introduzem no desenvolvimento do tema.

10. Releve do poema uma palavra que exprime uma atitude típica finissecular, cultivada como postura ideológica e sentimental tipicamente portuguesa.

11. Selecione momentos em que se exprime dúvida.

12. Comente as seguintes imagens:

a) «O frio morto em cinzas a ocultou» (v.7)

b) «A mão do vento pode erguê-la ainda»

c) «O sopro, a aragem [...]/ Com que a chama do esforço se remoça»

 

 

Resolução do questionário:

1. Enquadramento do poema na estrutura da Mensagem:

Este poema constitui o desenvolvimento do tema que está nos dois últimos versos do 1.º poema («O Infante») da Segunda Parte (ciclo que se cumpriu) e faz a ligação à 3.ª parte (pressente a vinda do Encoberto).

2. Apresentação das marcas discursivas e lexicais que justificam o título do poema:

Apóstrofe inicial “Senhor”; noite, alma, vil (v.1), tormenta, vontade (2), chama (10), sopro, desgraça, ânsia (9).

3. O sujeito poético dirige a sua súplica ao «Senhor», cujo vocativo abre o poema e o seu sentido permanece ambíguo. Refere-se a Deus? ao Encoberto, que «o frio morto em cinzas ocultou»? (7)

4. Esclarecimento do sentido e do objetivo da prece:

O tom de súplica, em consonância com o título, exprime a dor da incerteza em relação ao futuro de Portugal. Por isso, o sujeito poético pede para que devolva à Pátria a chama oculta debaixo das cinzas, isto é, a glória.

5. Disforia: «noite»; «vil»; «tormenta»; «silêncio»; «hostil»; «saudade»; «frio morto»; «cinzas»

Euforia: «mar universal»; «chama»; «vida»; «a mão do vento»; «erguê-la»; «sopro»; «aragem»; «esforço»; «remoça»; «Distância»; «mar».

6. Interpretação do simbolismo de cada uma das duas linhas de força que as palavras relevadas na questão anterior desenvolvem:

O campo lexical disfórico aponta para a tristeza e nostalgia de um bem passado e para um estado de decadência do país.

O campo lexical eufórico aponta para a ressurreição (ressurgimento), um novo período áureo (de glória).

7. O poema pode ser dividido em três momentos:

(1) o momento em que a «Prece» é confissão: vv. 1-3

(2) o momento em que a «Prece» é esperança: vv. 4-8

(3) o momento em que a «Prece» é apelo: vv. 9-12

8. A forma verbal «conquistemos» está no presente do conjuntivo e tem valor imperativo, exprimindo desejo, incitação, persuasão.

9. Localização no poema de duas conexões adversativas e clarificação da mudança que ambas introduzem no desenvolvimento do tema:

- «Mas», v. 5: opõe um estado disfórico a um eufórico, um estado desalento a outro de esperança.

«mas», v. 12: inicia uma oração que vinca uma tomada de posição activa no sentido - de uma apropriação colectiva de um propósito - reforça o propósito coletivo.

10. Palavra do poema que exprime uma atitude típica finissecular, cultivada como postura ideológica e sentimental tipicamente portuguesa: «Saudade»

11. Momentos em que se exprime dúvida:

- v. 6: «Se ainda há vida ainda não é finda»;

- v. 9: ««ou desgraça ou ânsia».

12. Comentário das imagens contidas nos versos transcritos:

- v. 7, «O frio morto em cinzas a ocultou»: as cinzas simbolizam o estado de decadência do país, perpetuada desde o desaparecimento de D. Sebastião, de modo que está oculta a verdadeira vida, esperando o momento certo para o seu ressurgimento. É o Encoberto à espera do seu momento de desocultação.

- v. 8, «A mão do vento pode erguê-la ainda»: a expressão «mão do vento» faz lembrar uma outra: «mão de Deus», indicando que está nos desígnios do Alto o ressurgimento da vida pátria, havendo, portanto, ainda esperança para o caso português.

- «O sopro, a aragem [...]/ Com que a chama do esforço se remoça»: o sopro tem o sentido de princípio de vida. O espírito de Deus que paira sobre as águas primordiais do Génesis é o sopro. No homem o sopro de vida dado por Deus não é perecível. Na iconografia cristã podem ver-se cenas da criação pelo sopro de Deus, capaz de curar a doença ou expulsar a morte, insuflando a vida.

Note-se o impressionismo da imagem dado apenas com dois substantivos («chama do esforço»).

 

(Adaptado de: Para uma leitura de MENSAGEM de Fernando Pessoa, Maria Almira Soares. Lisboa, Editorial Presença, 2000, pp. 58-59)

  


***

 

II – Outro questionário sobre o poema “Prece”, de Fernando Pessoa:

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize o momento presente tal como é representado na primeira estrofe.

2. Explicite os efeitos de sentido produzidos pela exclamação «Tanta foi a tormenta e a vontade!» (verso 2).

3. Relacione a referência à «chama, que a vida em nós criou» (verso 5) com o sentimento sugerido no verso 8.

4. Interprete o sentido da última estrofe, tendo em conta o título e a apóstrofe presente no primeiro verso do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na primeira estrofe, o momento presente caracteriza-se pela frustração, pela saudade e pelo desalento evidenciados:

– pelas metáforas da «noite» e do «silêncio», que significam uma morte espiritual, bem como pelo sentido disfórico da associação de «alma» ao adjetivo «vil» e de «silêncio» ao adjetivo «hostil»;

– pela evocação de um passado glorioso, associado ao orgulho da conquista de um «mar universal».

2. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A exclamação presente no verso 2 exprime:

– o orgulho relativamente a um passado heroico que implicou sofrimento, mas em que os portugueses se moveram por um inabalável desejo de grandeza;

– a noção de um presente marcado pelo desânimo e pela falta de ambição.

3. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A «chama» que impulsionou os portugueses para a concretização de feitos gloriosos e que não se encontra morta, mas escondida no «frio morto em cinzas» (v. 7), alimenta o sentimento de esperança implícito no verso 8 e a possibilidade de Portugal voltar a erguer «a chama, que a vida em nós criou» (v. 5).

4. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na última estrofe (através do recurso ao imperativo), o sujeito poético concretiza a súplica referida no título, pedindo ao «Senhor» (v. 1) que conceda ao povo português (identificado pelo uso da primeira pessoa do plural) «o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —» (v. 9) que permitam:

– reavivar a «chama do esforço» (v. 10);

– reconquistar a «Distância» (v. 11), ou seja, construir um novo Portugal.

Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Governo de Portugal, Ministério da Educação e Ciência / GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 1.ª Fase - Data Especial

 


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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.




Prece: Senhor, a noite veio e a alma é vil. (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 27-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/prece-senhor-noite-veio-e-alma-e-vil.html



segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A última nau (Mensagem, Fernando Pessoa)

 


A ÚLTIMA NAU






5


Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.




10



Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.



15




Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ’spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.


20




Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.

 

Fernando Pessoa, Mensagem, 19.ª ed., Lisboa, Ática, 1997

 

GLOSSÁRIO:

aziago (verso 4) – que prenuncia desgraça.

cerração (verso 17) – nevoeiro denso; escuridão.

erma (verso 5) – solitária.

pendão (verso 2) – bandeira longa e triangular.

pressago (verso 5) – que pressagia, prevê ou pressente.

 

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos questionários que se seguem.

 

QUESTIONÁRIO I

1. Explicite três dos aspetos que, nos versos de 1 a 12, se referem ao mito sebastianista, fundamentando a sua resposta com elementos do texto.

2. Caracterize, com base na terceira estrofe do poema, o modo como o sujeito poético e o povo português reagem ao desaparecimento da «última nau».

3. Relacione o conteúdo da última estrofe com a pergunta «Voltará da sorte incerta / Que teve?», formulada nos versos 8 e 9.

4. Identifique, no poema, uma característica do discurso épico e uma característica do discurso lírico de Mensagem, citando um exemplo significativo para cada um dos casos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Explicita, adequadamente, três dos aspetos que, nos versos de 1 a 12, se referem ao mito sebastianista, fundamentando a resposta com elementos textuais relativos a cada um desses aspetos.

A resposta pode contemplar três dos tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Nos versos de 1 a 12, os aspetos que se referem ao mito sebastianista são os seguintes:

– o desaparecimento misterioso da «última nau» e de D. Sebastião – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião» (v. 1); «Foi-se a última nau» (v. 4); «Mistério.» (v. 6); «Não voltou mais.» (v. 7);

– a associação do desaparecimento da «última nau» e de D. Sebastião ao fim do Império português – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, / E erguendo, como um nome, alto o pendão / Do Império, / Foise a última nau» (vv. 1 a 4); «Não voltou mais.» (v. 7);

– o pressentimento de desgraça associado à partida da nau – «Foi-se a última nau, ao sol aziago / Erma, e entre choros de ânsia e de pressago / Mistério.» (vv. 4 a 6);

– as incertezas quanto ao destino de D. Sebastião – «A que ilha indescoberta / Aportou?» (vv. 7 e 8);

– as expectativas quanto ao regresso de D. Sebastião – «Voltará da sorte incerta / Que teve? / Deus guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro / E breve.» (vv. 8 a 12).

 

2. Caracteriza, adequadamente, o modo como o sujeito poético e o povo português reagem ao desaparecimento da «última nau», fazendo referências pertinentes à terceira estrofe do poema.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

De acordo com o conteúdo da terceira estrofe do poema:

– o povo português, perante o desaparecimento da «última nau», na qual seguia D. Sebastião, reage com desânimo (v. 13);

– o sujeito poético manifesta uma viva crença no regresso de D. Sebastião e no Império que ele simboliza (vv. 14 a 18).

 

3. Relaciona, adequadamente, o conteúdo da última estrofe com a pergunta formulada nos versos 8 e 9, fazendo referências pertinentes ao texto.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na última estrofe, o sujeito poético responde afirmativamente à pergunta enunciada nos versos 8 e 9, apresentando:

– o regresso de D. Sebastião e do Império que ele simboliza como uma certeza obtida por intuição – «sei que há a hora» (v. 19); «Surges ao sol em mim» (v. 22); «trazes o pendão ainda / Do Império.» (vv. 23 e 24);

– o momento exacto em que esse acontecimento terá lugar como uma incerteza – «Não sei a hora» (v. 19); «Demore-a Deus» (v. 20); «Mistério.» (v. 21).

 

4. Identifica, adequadamente, uma característica do discurso épico e uma característica do discurso lírico de Mensagem, citando um exemplo significativo para cada um dos casos.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Características do discurso épico:

– uso narrativo da 3.ª pessoa – «Foi-se a última nau» (v. 4); «Não voltou mais.» (v. 7);

– importância conferida à História – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião» (v. 1);

– mitificação de um herói – «Deus guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro / E breve.» (vv. 10 a 12).

Características do discurso lírico:

– expressão da subjetividade, evidente no uso da primeira pessoa – «minha alma» (v. 14); «em mim» (vv. 16 e 22); «Vejo» (v. 17); «Não sei» (v. 19); «sei» (v. 19) – e no uso da interjeição – «Ah» (v. 13);

– aproximação entre o sujeito e o destino nacional, patente na convicção intuitiva de que o mito será concretizado (vv. 16 a 18; vv. 22 a 24).

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2011, 2.ª Fase


QUESTIONÁRIO II

Leia atentamente o poema “A última nau”, de Fernando Pessoa, e as estâncias 8, 9 e 16 do Canto I de Os Lusíadas de Luís de Camões.

 

8

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

 

9

Inclinai por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno Templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

 

16

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem para vós por dote aparelhado,

Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,

Deseja de comprar-vos para genro.

 

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I

GLOSSÁRIO:

Estrofe 8: vitupério: humilhação; torpe Ismaelita: mouro vil; Gentio…santo Rio: hindu/s que considerava(m) sagradas as águas do Ganges, o grande rio da Índia.

Estrofe 9: eterno Templo: templo da Fama, convívio eterno com Deus; um novo: sem precedentes; numerosos: harmoniosos.

Estrofe 16: Mouro frio: mouros apavorados; exício: extermínio; por dote aparelhado: preparado como dote de casamento.

 

Responda de forma completa às questões que se seguem.

1. Localize os dois textos na estrutura interna de Os Lusíadas e da Mensagem.

Atente, exclusivamente, no poema “A Última Nau”.

2. Clarifique o sentido dos versos “Foi-se a última nau, ao sol aziago/ Erma, e entre choros de ânsia e de pressago / Mistério.”.

3. Transcreva expressões que ilustram as dimensões histórica e mítica associadas à figura de D. Sebastião.

4. O poeta é um eleito que ergue a sua voz contra a dormência do país. Comente esta afirmação, tendo em conta o sentido das últimas duas estrofes.

5. Demonstre que os mitos da terceira parte da Mensagem surgem implicitamente neste poema.

6. Estabeleça, agora, um paralelo entre os dois textos anteriormente transcritos, destacando uma semelhança e duas diferenças.

7. “Os heróis da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajetória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.” (Jacinto do Prado Coelho, D’ Os Lusíadas à Mensagem)

Num texto de 150 a 200 palavras, desenvolva esta ideia, a partir das suas impressões de leitura da Mensagem.

8. Elabore uma nota de apresentação da Mensagem, com um mínimo de 80 e um máximo de 100 palavras, que pudesse figurar na contracapa desta obra de Fernando Pessoa.

Mensagem, o único livro de versos portugueses organizado e publicado por Fernando Pessoa, é, das suas obras, aquela onde a visão ocultista mais perfeitamente se concretiza, sendo também aquela onde o itinerário da sua inteligência poética nos aparece intimamente associado à realidade histórica. Considera o próprio autor que este livro se integra numa linha de criação poética que designa de “nacionalismo místico”. Em carta, de 1935, a Adolfo Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, escreve: “Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com um livro da natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.” Mais à frente, Pessoa diz que concorda com os factos (a publicação), acentuando que o aparecimento do livro coincide “com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional.”

O facto de as poesias que constituem o livro possuírem datas que oscilam entre 1913 e 1934 pode ser visto como a afirmação da constância de uma linha de sebastianismo profético declarada já em 1912, em artigos sobre “A Nova Poesia Portuguesa”, publicados na revista Águia.

Constituem as datas dos poemas um elemento de ligação à sociedade e à cultura de uma época, que seria motivo de equívoco se a sua leitura não mostrasse que o nacionalismo da Mensagem é uma proposta de renascer para a diversidade, compatível com um ideal cosmopolita. Para Pessoa, a existência de Portugal como nação anda a par com a sua existência poética e é esta que considera em perigo, estagnada, propondo-se engrandecê-la. A concretização do “propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade” passa pelo fazer outro a história nacional.

Mensagem, enquanto poema épico-lírico, rivaliza com o canto épico da literatura portuguesa – Os Lusíadas de Luís de Camões – e prossegue, noutro sentido, a História do Futuro do Padre António Vieira. (Silvina Rodrigues Lopes, ‘Mensagem’ de Fernando Pessoa. Lisboa: Editorial Comunicação, 1986 – texto com supressões)

 

BRUM, M. Ponta Delgada, Escola Secundária Domingos Rebelo, 23-04-2007

 

 

Texto de apoio

ZODÍACO

É conhecido o interesse de Pessoa pela astrologia. Fez o seu próprio horóscopo e dos seus heterónimos e chegou mesmo a pensar instalar um consultório, onde exerceria a profissão de astrólogo. Não é, pois, de estranhar que alguns críticos associem os doze poemas que integram a Segunda Parte da obra aos doze signos do Zodíaco. Este, como sabe, é ao mesmo tempo o símbolo do ciclo completo que se cumpriu («Cumpriu-se o mar») e um conjunto de símbolos particulares, cujos significados variam segundo as relações que mantêm entre si.

Assim sendo, poderíamos estabelecer a seguinte correspondência: […]

XI - «A última Nau»

Aquário (20 de janeiro -18 de fevereiro) é o signo da passagem aos estados superiores. É verdadeiramente o signo dos valores que enformam o Quinto Império aludido no poema:

- a solidariedade;

- a fraternidade;

- o desapego às coisas materiais.

E se dúvidas houvesse, esta caracterização do mundo aquariano, na palavra abalizada de Chevalier e Gheerbrant (s.d.,77) desfá-las-iam:

[Como signo do ar, relacionado com Saturno] aponta para o mundo das afinidades eletivas que fazem de nós seres vivos uma comunidade espiritual e em plena esfera universal. [...] Também lhe é atribuído como regente Úrano, que mobiliza de novo o ser libertado no fogo [elemento do quinto Império] do poder prometaico, tendo em vista ultrapassar-se a si próprio. [...] Existe também um aquário uraniano, prometaico, que é o indivíduo das vanguardas, do progresso, da emancipação, da aventura.

Como interpretar então a referência ao «Sol» no poema? Paulo Cardoso (cf. apud A. C., 1991, 56) atribui-lhe o símbolo de «uma energia desvirtuada da sua posição central». Com efeito, o Sol é o astro regente de Leão (note-se que Bartolomeu Dias foi bem-sucedido, contrariamente a D. Sebastião), daí o insucesso do empreendimento, bem patente na expressão «sol aziago». 

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000

 

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 




A última nau (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/a-ultima-nau-mensagem-fernando-pessoa.html



domingo, 25 de dezembro de 2022

Ascensão de Vasco da Gama (Mensagem, Fernando Pessoa)

 Mensagem, de Fernando Pessoa

Segunda Parte - Mar Português

Possessio maris



 

IX

ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA

 

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase , à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

10-1-1922

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2402

 

 

I - Leitura orientada do poema “Ascensão de Vasco da Gama”, de Fernando Pessoa:

O poema “Ascensão de Vasco da Gama” tem duas estrofes. A primeira tem sete versos e a segunda tem três. Vasco da Gama é um marco importante nos descobrimentos marítimos portugueses. Com ele, o grande império marítimo toma forma e tudo o que era incerto e duvidoso ganha formas precisas. Faz parte do grande ciclo das conquistas ultramarinas: iniciam-se as guerras que levariam à tomada de posse dos novos territórios descobertos. De salientar que, neste poema, não se fala propriamente da figura histórica, mas sim da sua “ascensão”. Somando todos os versos presentes neste poema, encontramos o número dez (7 + 3 = 10)

Na iconografia cristã existem numerosas representações do homem ascensional; símbolo do levantar voo, da elevação ao céu depois da morte. (…) Todas estas imagens representam uma resposta positiva do homem à sua vocação espiritual e, mais do que um estado de perfeição, é um movimento em direção à santidade. (Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain,ra, Artur, Dicionário de Símbolos, Trad. de Rodriguez, Cristina e Guerra, Lisboa: Editorial Teorema, 1994)

A palavra “ascensão” fala de um Vasco da Gama já não terreno, mas que iniciou o seu percurso em direção à santidade. Em Os Lusíadas, também Camões apresenta os homens a ascenderem ao estatuto de semideuses, confraternizando e contraindo matrimónio com as ninfas, numas bodas onde o terreno se mistura com o celestial.

Todo o início é involuntário e duvidoso e estes conceitos poderão ser aplicados a estes três poemas.

Quando D. Henrique fundou o Condado Portucalense não sonhou sequer que, embrionariamente, estava ali o futuro reino de Portugal. Quando Vasco da Gama iniciou a viagem marítima para a Índia não alcançou as reais consequências futuras dos seus atos, tendo por isso iniciado a sua derradeira viagem rumo ao divino. O poema “O dos Castelos” parece marcar o tempo antes da ação, podendo associar-se ao tempo antes da fundação do reino de Portugal (Conde D. Henrique) e antes da fundação do grande império ultramarino (Vasco da Gama).

A irregularidade estrófica destes poemas reforça esta ideia de caos inicial, de uma desorganização e desorientação que precedem o aparecimento de grandes realizações.

 

Maria Isabel Coelho, Mensagens de Mensagem, de Fernando Pessoa. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2010

 


II - Questionário sobre o poema “Ascensão de Vasco Da Gama”, de Fernando Pessoa:

O poema que acaba de ler é dedicado a Vasco da Gama.

1. Refira e interprete os elementos textuais que o presentificam no poema.

2. A ascensão do herói aos céus vai sendo gradativamente replasmada na primeira estrofe. Baseando-se nos verbos, advérbios e locuções adverbiais, explicite a verdade desta afirmação.

3. No poema Horizonte lê-se:

Ó mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Transcreva um verso que mostre que esta situação do “mar anterior a nós foi ultrapassada.

4. A “chegada” aos céus provoca manifestações/reacções várias. Refira-as.

5. Numa composição que não deve ultrapassar as oito linhas, confronte este momento da Mensagem em que o “céu se abre” com a chegada dos “segundos Argonautas” à Ilha dos Amores no canto IX de Os Lusíadas.

 

Chave de respostas:

1. Os medos “ladeiam-no” (v. 6) a este “Argonauta”(v. 10) que encontrou o seu velo de ouro.

2. Explicitação da afirmação A ascensão do herói aos céus vai sendo gradativamente replasmada na primeira estrofe:

• Do espanto/expectativa dos Deuses — “suspendem” e ‘pasmam” (vv. 2 e 3);

• à progressiva ascensão — “vai ondeando” (v. 4), “primeiro” (v. 5), “depois” (v. 5);

até à assunção plena da chegada aos “céus” — “ao longe” (v. 7), “ruge” (v. 7).

3. Confrontar o v. 6: “Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro”

4. E ao longe, o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, (...) o pastor (pastor-poeta) gela, (...) em êxtase à luz de mil trovões.

Nota: Nas epifanias de várias religiões, os deuses manifestam-se pela luz e pelo som (ouro, fogo, trovões...).

5. Entre outros aspetos deve considerar n’Os Lusíadas:

• a descrição do espaço e a sua relação com o visualismo/naturalismo da Renascença;

• o prémio dos Argonautas;

• o prémio do Gama como umvelo de ouroem múltiplas dimensões.

No poema Ascensão de Vasco da Gama deve considerar:

• a abstracção própria do simbolismo (“sugerir: eis o sonho”);

• a ligação da aventura da viagem à aventura da escrita.

(in Preparar exames nacionais 12.º Português B, Areal Ed. 2003, p. 7 e p. 25)

 

Vasco da Gama - 5.º Centenário do nascimento (1969)


  

III – Comentário de texto

Proceda a um comentário crítico do poema “Ascensão de Vasco da Gama”, tendo em conta os seguintes tópicos de análise:

- significado da luta «Deuses da tormenta»/ «gigantes da terra»;

- sentido de véus/assombro;

- teofania (versos que a denunciam);

- relação Gama/Argonauta;

- imortalização do herói;

- relação abismo/alma.

(Artur Veríssimo, Ler a Mensagem de Fernando Pessoa – curso n.º 21/2001 do Centro de Formação de Associação de Escolas de S. Miguel e Santa Maria)

Vasco da Gama - selo de Portugal, 1945

 


IV - Textos de apoio

Vasco da Gama (1468?-1524)

Vasco da Gama nasceu em Sines.

Por ser perito em navegação, D. João II encarregou-o de várias missões de responsabilidade. D. Manuel nomeou-o capitão da armada de descobrimento do caminho marítimo para a índia, que partiu do Tejo em 8 de julho de 1497. Enfrentando as primeiras manifestações da hostilidade muçulmana no sultanato de Moçambique, não conseguiu que o rei de Calecute aceitasse as propostas de aliança e trato comercial feitas através da carta de D. Manuel, devido à oposição dos mercadores muçulmanos residentes na Corte do Samorim.

Partindo da ilha de Angediva em 5 de outubro de 1498, após uma toma-viagem acidentada por calmarias e doenças, desembarcou finalmente em Lisboa em fins de agosto de 1499, sendo recebido apoteoticamente pelo rei e pelo povo.

D. Manuel cumulou-o de honras e dádivas, concedendo-lhe o título de Dom e nomeando-o almirante do mar da Índia. Em 1502, [...] 0 almirante foi enviado de novo a Calecute, onde [...] firmou aliança com os reis de Cochim e Cananor e lançou as bases da hegemonia portuguesa no oceano Índico. [...]

Voltou à Índia em 1524 [...] com o cargo de vice-rei. [...]. Adoeceu gravemente em Cochim, onde faleceu a 24 de dezembro desse ano.

 

in Dicionário de História de Portugal. Porto, Figueirinhas, 1979


Vasco da Gama (1469-1524), selo de Portugal,1992

 

IX - «Ascensão de Vasco da Gama»

Sagitário (22 de novembro - 20 de dezembro) é o símbolo da dualidade entre os instintos («gigantes da terra») e as aspirações superiores («deuses da tormenta»). Do ponto de vista cosmogónico, é o regresso do homem a Deus, percetível no título do poema e na manifestação clássica da divindade: «o rastro ruge em nuvens e clarões» e «à luz de mil trovões» (M, 69). E poderíamos ficar por aqui.

Mas não é despiciendo notar a coincidência desta caracterização do sagitariano com o conjunto de valores para que o poema estudo nos reenvia:

[...] na origem do tipo sagitariano, distingue-se um Eu em expansão ou em intensidade, que procura os seus próprios limites e aspira a ultrapassá-los, e isso sob pressão de uma espécie de instinto de força e de grandeza. Daí a aspiração a uma certa elevação ou dimensão que ele procura num arrebatamento, que pode ser um impulso de participação, de assimilação ideal à vida coletiva, ou, pelo contrário, revolta estimulante contra um poder que tem de ser dominado [...] (cf. CHEVALIER/GHEERBRANT, 581).

Note como o texto se aplica, grosso modo, a Vasco da Gama, pelo que esta figura representa de superação dos próprios limites, pelo instinto de força e de grandeza, pela elevação, pelo que nela se lê de aspiração individual e coletiva.

Constitui, por isso, um convite à exploração das profundezas da alma, para a libertar dos medos e soltar-lhe a imaginação e o sonho, já que a alma do herói é pertença do nosso inconsciente coletivo, como a simbologia do abismo, presente no último verso, denuncia.

Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, p. 150

 


moeda portuguesa de 200$00


Argonauta/Gama (Vasco da)

O termo aparece ligado a Vasco da Gama e significa «navegador arrojado». Porém, temos de, metaforicamente, associá-lo aos tripulantes da nau Argo («os Argonautas»), que, segundo a lenda grega, foram, sob o comando de Jasão, a Cólquida em demanda do velo de ouro, símbolo do poder e da prosperidade. Uma viagem de heróis eleitos, recheada de peripécias, bafejada pelos deuses.

Uma das façanhas mais conhecidas de Jasão é a de ter feito a nau Argo passar incólume entre os dois rochedos flutuantes que, à entrada do mar Negro, chocavam, esmagando entre eles as naus. Note como este verso do poema «Ascensão de Vasco da Gama» poderia servir também para ilustrar aquela proeza do Argonauta grego:

Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro

(M,69)

A aproximação simbólica da viagem de Vasco da Gama à viagem dos Argonautas da lenda grega surge já n'Os Lusíadas. Os marinheiros portugueses, momentos antes da partida,

Foram de Emanuel remunerados,

[…]

E com palavras altas animados

Pera quantos trabalhos sucedessem.

Assi foram os Mínias ajuntados,

Pera que o Véu dourado combatessem,

Na fatídica Nau, que ousou primeira

Tentar o mar Euxínio, aventureira.

(C. IV, 83)

Tornando à Mensagem, a ideia de Argonauta liga-se à ideia de ascensão, i. e., à superação espiritual das condições materiais da existência. Vasco da Gama é alma, torna-se símbolo e arquétipo e, como tal, ganha direito à existência eterna (v. Ocultismo). A sua alma penetra no abismo dos céus, sob o pasmo e o assombro de todas as forças cósmicas:

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra

Suspendem de repente o ódio da sua guerra

E pasmam.

(M,69)

É em êxtase que o pastor (imagem repleta de simbolismo religioso) vê superada a sabedoria terrena e os segredos encantatórios da sua flauta diante da teofania (manifestação da divindade) que acompanha a ascensão de Vasco da Gama: «vê, à luz de mil trovões / O céu abrir o abismo à alma do Argonauta) (M,ibid.); o pastor assiste (e nós com ele), dir-se-ia, à integração suprema do herói na união mística.

Bibl.: Jöel Schimdt, «Argonautas», in Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Edições 70, 1994, pp.41-42.

 

Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 11-12

 

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Ascensão de Vasco da Gama (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/ascensao-de-vasco-da-gama-mensagem.html