segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A última nau (Mensagem, Fernando Pessoa)

 


A ÚLTIMA NAU






5


Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.




10



Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.



15




Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ’spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.


20




Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.

 

Fernando Pessoa, Mensagem, 19.ª ed., Lisboa, Ática, 1997

 

GLOSSÁRIO:

aziago (verso 4) – que prenuncia desgraça.

cerração (verso 17) – nevoeiro denso; escuridão.

erma (verso 5) – solitária.

pendão (verso 2) – bandeira longa e triangular.

pressago (verso 5) – que pressagia, prevê ou pressente.

 

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos questionários que se seguem.

 

QUESTIONÁRIO I

1. Explicite três dos aspetos que, nos versos de 1 a 12, se referem ao mito sebastianista, fundamentando a sua resposta com elementos do texto.

2. Caracterize, com base na terceira estrofe do poema, o modo como o sujeito poético e o povo português reagem ao desaparecimento da «última nau».

3. Relacione o conteúdo da última estrofe com a pergunta «Voltará da sorte incerta / Que teve?», formulada nos versos 8 e 9.

4. Identifique, no poema, uma característica do discurso épico e uma característica do discurso lírico de Mensagem, citando um exemplo significativo para cada um dos casos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Explicita, adequadamente, três dos aspetos que, nos versos de 1 a 12, se referem ao mito sebastianista, fundamentando a resposta com elementos textuais relativos a cada um desses aspetos.

A resposta pode contemplar três dos tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Nos versos de 1 a 12, os aspetos que se referem ao mito sebastianista são os seguintes:

– o desaparecimento misterioso da «última nau» e de D. Sebastião – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião» (v. 1); «Foi-se a última nau» (v. 4); «Mistério.» (v. 6); «Não voltou mais.» (v. 7);

– a associação do desaparecimento da «última nau» e de D. Sebastião ao fim do Império português – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, / E erguendo, como um nome, alto o pendão / Do Império, / Foise a última nau» (vv. 1 a 4); «Não voltou mais.» (v. 7);

– o pressentimento de desgraça associado à partida da nau – «Foi-se a última nau, ao sol aziago / Erma, e entre choros de ânsia e de pressago / Mistério.» (vv. 4 a 6);

– as incertezas quanto ao destino de D. Sebastião – «A que ilha indescoberta / Aportou?» (vv. 7 e 8);

– as expectativas quanto ao regresso de D. Sebastião – «Voltará da sorte incerta / Que teve? / Deus guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro / E breve.» (vv. 8 a 12).

 

2. Caracteriza, adequadamente, o modo como o sujeito poético e o povo português reagem ao desaparecimento da «última nau», fazendo referências pertinentes à terceira estrofe do poema.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

De acordo com o conteúdo da terceira estrofe do poema:

– o povo português, perante o desaparecimento da «última nau», na qual seguia D. Sebastião, reage com desânimo (v. 13);

– o sujeito poético manifesta uma viva crença no regresso de D. Sebastião e no Império que ele simboliza (vv. 14 a 18).

 

3. Relaciona, adequadamente, o conteúdo da última estrofe com a pergunta formulada nos versos 8 e 9, fazendo referências pertinentes ao texto.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Na última estrofe, o sujeito poético responde afirmativamente à pergunta enunciada nos versos 8 e 9, apresentando:

– o regresso de D. Sebastião e do Império que ele simboliza como uma certeza obtida por intuição – «sei que há a hora» (v. 19); «Surges ao sol em mim» (v. 22); «trazes o pendão ainda / Do Império.» (vv. 23 e 24);

– o momento exacto em que esse acontecimento terá lugar como uma incerteza – «Não sei a hora» (v. 19); «Demore-a Deus» (v. 20); «Mistério.» (v. 21).

 

4. Identifica, adequadamente, uma característica do discurso épico e uma característica do discurso lírico de Mensagem, citando um exemplo significativo para cada um dos casos.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Características do discurso épico:

– uso narrativo da 3.ª pessoa – «Foi-se a última nau» (v. 4); «Não voltou mais.» (v. 7);

– importância conferida à História – «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião» (v. 1);

– mitificação de um herói – «Deus guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro / E breve.» (vv. 10 a 12).

Características do discurso lírico:

– expressão da subjetividade, evidente no uso da primeira pessoa – «minha alma» (v. 14); «em mim» (vv. 16 e 22); «Vejo» (v. 17); «Não sei» (v. 19); «sei» (v. 19) – e no uso da interjeição – «Ah» (v. 13);

– aproximação entre o sujeito e o destino nacional, patente na convicção intuitiva de que o mito será concretizado (vv. 16 a 18; vv. 22 a 24).

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2011, 2.ª Fase


QUESTIONÁRIO II

Leia atentamente o poema “A última nau”, de Fernando Pessoa, e as estâncias 8, 9 e 16 do Canto I de Os Lusíadas de Luís de Camões.

 

8

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

 

9

Inclinai por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno Templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

 

16

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem para vós por dote aparelhado,

Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,

Deseja de comprar-vos para genro.

 

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I

GLOSSÁRIO:

Estrofe 8: vitupério: humilhação; torpe Ismaelita: mouro vil; Gentio…santo Rio: hindu/s que considerava(m) sagradas as águas do Ganges, o grande rio da Índia.

Estrofe 9: eterno Templo: templo da Fama, convívio eterno com Deus; um novo: sem precedentes; numerosos: harmoniosos.

Estrofe 16: Mouro frio: mouros apavorados; exício: extermínio; por dote aparelhado: preparado como dote de casamento.

 

Responda de forma completa às questões que se seguem.

1. Localize os dois textos na estrutura interna de Os Lusíadas e da Mensagem.

Atente, exclusivamente, no poema “A Última Nau”.

2. Clarifique o sentido dos versos “Foi-se a última nau, ao sol aziago/ Erma, e entre choros de ânsia e de pressago / Mistério.”.

3. Transcreva expressões que ilustram as dimensões histórica e mítica associadas à figura de D. Sebastião.

4. O poeta é um eleito que ergue a sua voz contra a dormência do país. Comente esta afirmação, tendo em conta o sentido das últimas duas estrofes.

5. Demonstre que os mitos da terceira parte da Mensagem surgem implicitamente neste poema.

6. Estabeleça, agora, um paralelo entre os dois textos anteriormente transcritos, destacando uma semelhança e duas diferenças.

7. “Os heróis da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajetória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.” (Jacinto do Prado Coelho, D’ Os Lusíadas à Mensagem)

Num texto de 150 a 200 palavras, desenvolva esta ideia, a partir das suas impressões de leitura da Mensagem.

8. Elabore uma nota de apresentação da Mensagem, com um mínimo de 80 e um máximo de 100 palavras, que pudesse figurar na contracapa desta obra de Fernando Pessoa.

Mensagem, o único livro de versos portugueses organizado e publicado por Fernando Pessoa, é, das suas obras, aquela onde a visão ocultista mais perfeitamente se concretiza, sendo também aquela onde o itinerário da sua inteligência poética nos aparece intimamente associado à realidade histórica. Considera o próprio autor que este livro se integra numa linha de criação poética que designa de “nacionalismo místico”. Em carta, de 1935, a Adolfo Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, escreve: “Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com um livro da natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.” Mais à frente, Pessoa diz que concorda com os factos (a publicação), acentuando que o aparecimento do livro coincide “com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional.”

O facto de as poesias que constituem o livro possuírem datas que oscilam entre 1913 e 1934 pode ser visto como a afirmação da constância de uma linha de sebastianismo profético declarada já em 1912, em artigos sobre “A Nova Poesia Portuguesa”, publicados na revista Águia.

Constituem as datas dos poemas um elemento de ligação à sociedade e à cultura de uma época, que seria motivo de equívoco se a sua leitura não mostrasse que o nacionalismo da Mensagem é uma proposta de renascer para a diversidade, compatível com um ideal cosmopolita. Para Pessoa, a existência de Portugal como nação anda a par com a sua existência poética e é esta que considera em perigo, estagnada, propondo-se engrandecê-la. A concretização do “propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade” passa pelo fazer outro a história nacional.

Mensagem, enquanto poema épico-lírico, rivaliza com o canto épico da literatura portuguesa – Os Lusíadas de Luís de Camões – e prossegue, noutro sentido, a História do Futuro do Padre António Vieira. (Silvina Rodrigues Lopes, ‘Mensagem’ de Fernando Pessoa. Lisboa: Editorial Comunicação, 1986 – texto com supressões)

 

BRUM, M. Ponta Delgada, Escola Secundária Domingos Rebelo, 23-04-2007

 

 

Texto de apoio

ZODÍACO

É conhecido o interesse de Pessoa pela astrologia. Fez o seu próprio horóscopo e dos seus heterónimos e chegou mesmo a pensar instalar um consultório, onde exerceria a profissão de astrólogo. Não é, pois, de estranhar que alguns críticos associem os doze poemas que integram a Segunda Parte da obra aos doze signos do Zodíaco. Este, como sabe, é ao mesmo tempo o símbolo do ciclo completo que se cumpriu («Cumpriu-se o mar») e um conjunto de símbolos particulares, cujos significados variam segundo as relações que mantêm entre si.

Assim sendo, poderíamos estabelecer a seguinte correspondência: […]

XI - «A última Nau»

Aquário (20 de janeiro -18 de fevereiro) é o signo da passagem aos estados superiores. É verdadeiramente o signo dos valores que enformam o Quinto Império aludido no poema:

- a solidariedade;

- a fraternidade;

- o desapego às coisas materiais.

E se dúvidas houvesse, esta caracterização do mundo aquariano, na palavra abalizada de Chevalier e Gheerbrant (s.d.,77) desfá-las-iam:

[Como signo do ar, relacionado com Saturno] aponta para o mundo das afinidades eletivas que fazem de nós seres vivos uma comunidade espiritual e em plena esfera universal. [...] Também lhe é atribuído como regente Úrano, que mobiliza de novo o ser libertado no fogo [elemento do quinto Império] do poder prometaico, tendo em vista ultrapassar-se a si próprio. [...] Existe também um aquário uraniano, prometaico, que é o indivíduo das vanguardas, do progresso, da emancipação, da aventura.

Como interpretar então a referência ao «Sol» no poema? Paulo Cardoso (cf. apud A. C., 1991, 56) atribui-lhe o símbolo de «uma energia desvirtuada da sua posição central». Com efeito, o Sol é o astro regente de Leão (note-se que Bartolomeu Dias foi bem-sucedido, contrariamente a D. Sebastião), daí o insucesso do empreendimento, bem patente na expressão «sol aziago». 

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000

 

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 




A última nau (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/a-ultima-nau-mensagem-fernando-pessoa.html



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