RENDIMENTO
Estava sentado no degrau da porta.
encostado à ombreira,
numa rua de ligação, sem montras,
onde só passam carros e as pessoas a encurtar caminho.
A face pálida, boca entreaberta,
barba por fazer e o cabelo em repas desoladas.
Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos,
era muito abertos, ora piscando muito.
No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,
tinha um boné no qual
esmolavam os transeuntes.
Da lapela, preso por um alfinete,
pendia amarrotado e sujo um boletim
da Assistência Nacional aos Tuberculosos.
Era o cartão de visita, o bilhete
de identidade, a certidão, a carta
de curso, a apólice de seguro,
o título do Estado.
E, no boné, como se vê, caía o juro.
Jorge de Sena, 25 de junho de 1946.
LEITURA ORIENTADA DO POEMA «RENDIMENTO»
A forma: como em geral a poesia do autor, o poema não obedece à métrica, nem à rima e as estrofes variam conforme a sua sensibilidade artística e o seu pensamento entende construí-Ias.
Este poema é constituído por seis estrofes com um número de versos variável – duas são dísticos – as mais curtas – o primeiro dos quais sem predicado como convém às linhas sóbrias do quadro que apresenta. A medida dos versos também é variável; não há estrofes isométricas. Os versos mais curtos têm seis sílabas, o mais longo tem dezassete: «Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos.» Predominam os versos de dez sílabas; mas há-os de seis, oito, nove, onze, doze, catorze, quinze e dezasseis. Os versos são brancos e terminam predominantemente com palavras graves, com exceção de qual... e boletim – o que alonga o quadro que o poeta nos apresenta.
O tempo verbal predominante é o imperfeito – um quadro, a sua descrição e, daí, o tempo: estava, respirava, tinha, esmolavam, pendia, era, caía. É uma pequena poesia de natureza descritiva e isso justifica a relativa abundância de adjetivos e desubstantivos concretos:
adjetivos:
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substantivos:
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pálida
entreaberta
desoladas
abertos
agudos
amarrotado
sujo
|
degrau
porta
ombreira
rua
ligação
montras
carros
pessoas
caminho
|
face
boca
barba
cabelo
olhos
regaço
joelhos
boné
tuberculosos
|
cartão-de-visita
bilhete de identidade
certidão
carta de curso
apólice de seguro
título do Estado
juro
|
Estes substantivos agrupam-se de acordo com o esquema da composição. Os nove primeiros situam-nos no espaço. Os outros nove apontam-nos a personagem que nele se integra. Todos os restantes colocam-nos perante a crítica irónica e mordaz do poeta. Temos, assim, o esquema significativo de um texto: a apresentação do lugar, aexplicação do que nele ocorre (a chamar a atenção dos transeuntes, entre estes, a do autor) e a conclusão.
À simplicidade do quadro, naturalmente pobre, quer pela figura nele situada, quer por se tratar de uma rua de ligação, sem montras que despertassem a atenção dos transeuntes, corresponde uma construção sintática igualmente simples. Apenas duas orações relativas: onde só passam... e no qual esmolavam, e uma comparativa – comose vê. Todas as mais frases se ligam, em geral, de uma forma assindética, a copulativa só aparece quatro vezes e a disjuntiva ora... ora – o que permite ao autor vincar melhor as pinceladas do quadro que nos oferece.
Estamos, pois, perante uma poesia que faz de Jorge de Sena um poeta engagé, a oferecer-nos uma imagem que, alguns bons anos atrás, era muito frequente na cidade do Porto, à porta das ilhas, onde a tuberculose grassava assustadoramente, atingindo, em especial, os que viviam em condições precárias de higiene, eram mal alimentados e trabalhavam duramente. Todas as linhas de que o poeta se serve para nos apresentar este quadro, infelizmente tão prolífero, como dissemos, estão marcadas por uma visão profundamente realista. Tudo nele denuncia:
– A doença: a face pálida, a boca entreaberta (sinal de respiração difícil como diz mais em baixo), os olhos a nada se prendiam e viam-se ora muito abertos, ora piscando muito, os joelhos agudos – descarnados, portanto.
– A miséria: barba por fazer, o cabelo em repas desoladas (aqui o poeta transpõe para as repas, por hipálage, o estado psicológico do doente – desolado pela doença e pela necessidade de pedir para continuar a sobreviver); no regaço um boné no qualesmolavam os transeuntes (fazemos uma chamada de atenção para o emprego do verbo esmolar que carrega as tintas do quadro); da lapela, preso por um alfinete pendiaamarrotado e sujo.
A sexta estrofe com a função metalinguística em ação ao serviço da ironia do poeta é a interpretação mordaz que este sugere do boletim do Assistência Nacional aosTuberculosos ao qual o poeta atribui vários significantes: cartão-de-visita, bilhete de identidade, certidão, carta de curso, apólice de seguro, título do Estado. O poema termina com um verso que justifica o seu título – Rendimento que, já por si, poderia ser positivo, mas que num poeta como Jorge de Sena só pode ser de sinal negativo, o qual ironicamente se afirma ao longo dos vários momentos que desdobrámos eprincipalmente no laconismo da conclusão: «E no boné, como se vê, caía o juro.»
O poeta coloca-nos perante um certo estaticismo quer quanto ao espaço, quer quanto à personagem que nele deteta: estava sentado, encostado, nada seguia – a qual transmitia a sua mensagem de pedinte no boné situado entre os joelhos e no boletim – espécie de ferrete que incomodava muita gente. O pobre não emite mensagens orais. A contrastar com este estaticismo, pelo contrário, um dinamismo evidente nas breves pinceladas do quadro que traça o poeta e na catadupa de significantes que desbobina na última estrofe, na qual, depois das várias tentativas de explicação que procura dar do boletim, com substantivos apenas separados por vírgulas, é posto em evidência o último verso, introduzido pela copulativa, martelado com as três pausas – «E, no boné, como se vê, caia o juro.» – para pôr em evidência o terceiro e o último dos significantes do boletim e, desta forma, transmitir a sua crítica servindo-se da conotação hiperbólica.
Preferimos o comentário deste simples poema, quer pelo que a nós nos diz o quadro nele oferecido, quer por nos parecer de fácil apreensão para os alunos. Valeria a pena perdermo-nos na tentativa de explicar poemas que não só não constituem realidades para todos, que são como que um labirinto de Creta cuja saída muitas vezes não se descobre? Ou um poema rico de sentido como Advertência (Perseguição) mas demasiado curto: «Ah meu Deus! Se toda esta tristeza, / Se toda esta consciênciaamarga do desprezo alheio, / Se toda esta raiva contra mim, / Se toda a melancolia que essa raiva me deixa, / são unicamente para que saia um poema... // Podes ter a certeza que o esmago.»? Como vemos, também neste pequeno poema estão contidas algumas linhas de força da poesia de Jorge de Sena.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 504-505.
JORGE DE SENA (1919-1978)
perfil literário
perfil literário
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 2 de novembro de 1919. Formou-se primeiro em Engenharia e em 1964 doutorou-se em Letras exercendo a sua carreira nos Estados Unidos.
Foi ensaísta, dramaturgo, conferencista e historiador da cultura, crítico, tradutor de poetas, contista e poeta, sua faceta mais valiosa. Participou como editor dosCadernos de Poesia. É uma personalidade de mérito que se afirma pela sua vasta cultura, pela sua criatividade.
Segundo declarou numa revista, a sua poesia «se representa alguma coisa, representa: um desejo de independência partidária da poesia social; um desejo de comprometimento humano da poesia pura; um desejo de expressão lapidar, clássica, da libertação surrealista; um desejo de destruir pelo tumulto insólito das imagens qualquer disciplina ultrapassada (e assim: a lógica hegeliana deve sobrepor-se à aristotélica; uma moral sociologicamente esclarecida à moral das proibições legalistas): e sobretudo um desejo de exprimir o que entende ser a dignidade humana – uma fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo».
Por isso, oferece-nos uma poesia muito original quanto à estrutura e com um vasto leque de motivações: a arte nas suas múltiplas facetas música, artes plásticas... Rejeita o lirismo «(d)as canções azuis / dos pássaros moribundos» como diz José Gomes Ferreira em poemas «pouco agradáveis, ou não agradáveis de entender para quem deseja que a poesia lhe não abale as confortadoras e confortadas seguranças estéticas ou outras.»; como diz no prefácio de Trinta Anos de Poesia e dá-nos antes um lirismo rico de conceitos a tal ponto que exige do leitor uma leitura muito atenta e intensiva para se poder entender. É certamente esta apetência conceitual que faz dos seus ensaios algo de interessante pela coragem e independência com que se revela perante a «dura verdade» que não teme dizer, sobressaindo, pois, neles como na sua poesia, a sua grande capacidade crítica, mesmo presente nas escassas tentativas da novela.
No estudo da poesia de Jorge de Sena, tão aprofundado quanto nos foi possível, pudemos descobrir a personalidade de certo modo curiosa que se nos oferece. Ora nos leva até aos meandros mais sinuosos do seu pensamento em construções de frases que tornam herméticas muitas das suas poesias, ora nos revela o homem, homem, em que o sexo e o corpo se sobrepõem ao espírito (Denúncia – Perseguição); ou o homem marcado por um certo desencanto e, por isso, com momentos abundantes e significativos do seu negativismo, «Eu ouço a minha voz» (Pedra Filosofal): «Eu ouço a minha voz com desencanto. / Foi antes dela o meu encantamento, / Não é já meu o encantamento dela. / Qual a vida tão triste numa distância de amor, / Se ilumina mais tarde para uma noite de ausência, / e é como se amanhã estivesse à minha espera / alguém que eu tenha esperado inutilmente.»; Não sei, meus versos: «Não sei, meus versos, que dizeis de mim. / Calou-se o tempo em que dizer só era / Nossa alegria, vossa esperança ingénua / de a minha vida vos servir de amor.»; A última palavra – «Quiserade outra morte conhecer-me inteiro, / que não fosse de outrora esta ciência densa / de já saber sem nome tudo o que acontece.»; «És como um grande silêncio...»; ou o homem que pensa e ultrapassa, desmonta uma religião que nada lhe diz, brincando, até, com ela (relativo a Deus em Declaração) (em Perseguição, em Unidade, emPurificação da Unidade, Caverna, Pentecostes), e com outras que têm existido no mundo; ou o homem que vive e exprime a angústia da morte por vezes escondendo-a num pseudo-humorismo; ou o homem intelecto (em Conquista – Perseguição) que foge ao convencional, ao comum e se transmite em voos de pensamento labirínticos «Que importa que todos me esqueçam I mesmo sem querer? / … / … se eu sou tão desgraçado, tão ímpar, tão mental / que tenho voluntariamente / desejar amá-los.» (Perseguição – Contrição.); ou o homem que sente na carne a amargura do seu destino de exilado e desabafa em versos que são, umas vezes, os versos do frustrado, do desencantado num mundo que não é o seu, outras vezes, verdadeiras vergastadas com a língua, em versos mordazes, contundentes, onde a ironia é uma arma terrível; ou é o homem poeta tal como diz Manuel da Fonseca: «Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório / sai uma estrela voando nas trevas, / Tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes. / E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta / que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.» – o qual também se empenha em denunciar muitas das inúmeras situações de injustiça que sofrem e suportam os não favorecidos pelo destino e que são a grande maioria da humanidade: Em Sem Data – (Perseguição) confessa o remorso de só ter gritado às vezes.
Ora, esta atitude é aquela que, a nosso ver, mais vincadamente transparece na poesia de Jorge de Sena. Citamos, entre as que fomos indicando: Os Paraísos Artificiais, «Quem a tem...», Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Tentações do Apocalipse, Natal de 1971, «Estão podres as palavras»; – e o poema Rendimento do qual vamos apresentar alguns aspetos que nos pareceram mais significativos. […]
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 502-504.
Apesar de esta tendência, que aqui designamos como poesia de intervenção, não existir enquanto movimento literário autónomo (e, em rigor, com ela possamos relacionar autores das mais distintas profissões de fé estético-literárias), adotamos a proposta terminológica sugerida por Óscar Lopes: «Em termos de poesia de qualidade, não é possível isolar uma tendência de intervenção política ou de intenção realista, pois ela manifesta-se, e por vezes de modo bem vivo, em obras de sensibilidade tão diferente como as de Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill […] Vamos no entanto agrupar um conjunto de poetas cuja fase de consagração se liga a uma clara atitude de polémica ou de crítica social.» (Lopes e Saraiva, 1996:1069)
Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha.
Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, p.47
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► Ler Jorge de Sena (® 2010 Universidade Federal do Rio de Janeiro)
► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/03/rendimento.aspx]
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