sábado, 7 de setembro de 2013

Cancioneiro Joco-Marcelino (Natália Correia)


Em 1989, Lisboa teve uma campanha eleitoral excêntrica:
Marcelo Rebelo de Sousa mergulhou no Tejo, guiou um táxi e varreu o lixo.



O poema de Natália Correia que arrasou Marcelo por visitar bairros de lata

 

Os bairros sociais não são uma novidade para Marcelo. Em criança acompanhava a mãe, já jovem fazia voluntariado, mas como político nem sempre correu tudo bem. Até foi brindado com poemas de escárnio.

 

 

Ainda criança, o pequeno Marcelo acompanhava a mãe no trabalho, como assistente social, aos bairros mais desfavorecidos de Lisboa. Já no liceu, em colaboração com as Conferências de São Vicente de Paulo, visitava bairros de lata para distribuir comida pelos mais pobres. Anos mais tarde, em 1990, chegou a vez de o fazer como político, como candidato do PSD à câmara municipal de Lisboa e, aí, as coisas já não correram tão bem: primeiro porque ninguém quis saber o que propunha para aquelas zonas, depois porque a ideia que circulou — de que pretendia dormir nesses bairros de lata durante a campanha — foi imortalizada por Natália Correia no poema jocoso “Marcelo e as tágides“.

Apoiante de Jorge Sampaio, Natália Correia fez uns poemas — quase cantigas de escárnio e mal-dizer — sobre o candidato da direita. No jornal O Corvo — nome do jornal da campanha eleitoral da Coligação por Lisboa — a poetisa escreveu um “Cancioneiro Joco-Marcelino”, que foi publicado em novembro e dezembro de 1989 e mais tarde em várias antologias poéticas. Numa das quadras, a poetisa fala de um prodígio que Marcelo com superpoderes “congemina”: dormir nos bairros e acabar com os males de quem ali vive.




MARCELO E AS TÁGIDES


Marcelo, em cupidez municipal

de coroar-se com louros alfacinhas,

atira-se valoroso – ó bacanal! –

ao leito húmido das Tágides daninhas.

 

Para conquistar as Musas de Camões

lança a este, Marcelo, um desafio:

Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…

Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

 

E em eleitorais estrofes destemidas,

do autárquico sonho, o nadador

diz que curara as ninfas poluídas

com o milagre do seu corpo em flor.

 

Outros prodígios – dizem – congemina:

ir aos bairros da lata e ali, sem medo,

dormir para os limpar da vil vérmina

e triunfal ficar cheio de pulguedo.

 

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão

de asa delta a fazer de passarela,

sobrevoa Lisboa o passarão

e perde a pena que é de galinhola.



 

in INÉDITOS 1979/91 Cancioneiro Joco-Marcelino, POESIA COMPLETA

 

Mais tarde, quando publica este e outros poemas sobre Marcelo em livro, Natália Correia explica que nada tem contra o agora Presidente, mas que não podia abdicar de registar estas irresistíveis “piruetas marcelinas“.  Numa “recomendação introdutória” começa por dizer: “Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.” E acrescenta: “Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num magister de reconhecido mérito em Direito.”

Ainda na campanha a Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa apresentava “300 medidas para salvar Lisboa” e — segundo o livro Marcelo Rebelo de Sousa, de Vítor Matos — uma das medidas mais emblemáticas que tinha era um “plano de erradicação de barracas e bairros de lata, que visita durante o mês de outubro à chuva e pelo meio da lama”. Mas — segundo o próprio confessou anos mais tarde ao autor do livro — “a classe média estava-se a borrifar para isso”, recorda o ex-candidato. No dia em que apresentou as propostas, cometeu, aliás, um pecado capital: foi ao circo e, no dia seguinte, ao invés das medidas, os jornais só falavam de como Marcelo colocou a cabeça dentro e fora da jaula de uma leoa chamada Aida.

A poesia de Natália não se ficou por ali. A poetisa acabaria por brindar Marcelo com outros poemas. Um deles comparando-o a Batman, como se vê pela primeira quadra de “Batma(n)rcelíade“:

Sempre sôfrego do último modelo
pela batmania agora cego,
deixa de ser taxista e eis que Marcelo
troca o volante por asas de morcego

 

Já em “O Fado do Coveiro“, mais um poema dedicado a Marcelo, é exposto o desespero de Cavaco Silva por ter um candidato tão excêntrico à maior câmara do país. A última quadra desse poema rezava assim:

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo”

 

Em “Marcelo até Almeida“, o tom é mais duro

Chorando pérolas amargas no chiqueiro
num andar aos papéis que não tem fim,
a Santo António da Lisbia milagreiro
Marcelo oferece o derreado rim

 

O último episódio polémico da ida a um bairro problemático, aconteceu na última segunda-feira. Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica e conversou com uma família que tinha estado em confrontos com a PSP. O sindicato da polícia considerou que o Presidente estava a discriminar os polícias.

Marcelo deixou de lado a poesia e os afetos e respondeu com estrondo, dizendo não querer acreditar que a polícia se está a pôr no “mesmo plano” de uma comunidade desfavorecida.

Rui Pedro Antunes, https://observador.pt/2019/02/05/o-poema-de-natalia-correia-que-arrasou-marcelo-por-visitar-bairros-de-lata/



 
                 
              
O FADO DO COVEIRO

Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.

Calça à boca de sino de sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.
               
Natália Correia, “Cancioneiro Joco-Marcelino” 
in O Corvo, jornal de campanha eleitoral da Coligação por Lisboa. 
N.º1 a 8, novembro/dezembro de 1989.
              
              

Reprodução mimética dos arquétipos medievais
              
A reprodução mimética consiste na replicação quase perfeita dos modelos poéticos trovadorescos, desde a sua estrutura formal até aos temas e campos sémicos próprios das cantigas medievais.
[…] vamos analisar um poema de Natália Correia, que se aproxima muito do género da cantiga de escárnio e maldizer – “O fado do coveiro”. Em primeiro lugar, importa referir que esta composição faz parte de um conjunto de poemas a que Natália Correia deu o título de «Cancioneiro Joco-Marcelino», o que, por si só, constitui uma remissão explícita para os cancioneiros medievais. Na «Recomendação Introdutória», a autora esclarece a motivação deste “parodístico registo das traquinices” de Marcelo Rebelo de Sousa, numa inesquecível campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa em 1989:
«Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.
Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num Magister de reconhecido mérito em Direito.» (Natália Correia, Poesia Completa, 2ªedição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p. 561)
            
Assim sendo, este cancioneiro é composto por oito poemas, que oscilam entre a cantiga de escárnio e maldizer e o sirventês político, em torno de uma figura central – Marcelo Rebelo de Sousa –, à semelhança dos ciclos temáticos da sátira galego-portuguesa. No poema “O fado do coveiro”, comenta-se a apresentação e campanha de Marcelo.
Esta composição encontra-se articulada em três coblas ou estrofes de quatro versos e apresenta rima cruzada, tratando-se de uma cantiga de mestria. Como era frequente nas cantigas de escárnio e maldizer, esta composição apresenta “interferências da função narrativa” (Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 238), sobretudo na primeira estrofe que introduz a figura satirizada e o seu comportamento, que serão alvos da diatribe mordaz do poeta. A glosa satírica do comportamento de Marcelo contém alguns dos campos sémicos mais comuns das sátiras medievais1: o «ethos trovadoresco», quando são referidas as mudanças drásticas que faz pela sua dama (“por su dama Lisboa, o Galaaz faz à viela e ginga à lisboeta”); o «ultraje», presente em termos como “ralé”, “gargareja”, “escaqueirar”; o campo sémico da «descriptio», com a descrição das peças de vestuário de Marcelo (“calça à boca de sino”, “cachené”) e, por último, o da «polémica social», com as referências ao “fidalgo edil” que faz ‘estremecer Aníbal’ com o seu “faduncho finório” e que consegue “escaqueirar o reinado cavaquista”, com alusões evidentes ao primeiro-ministro à época, Aníbal Cavaco Silva.
              
Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha
Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 9, 14-15
              
             
***
               
A natureza bifronte da estética e da ética trovadorescas, em cuja origem se produz «o fenómeno do difásico Dr Jekyll-Mr. Hyde» (Natália Correia, «Notas para uma introdução às cantigas d’escarnho e de mal dizer galego--portuguesas», p. 158), encontra-se projectada na releitura que, em paralelo, Natália Correia desenvolve do cancioneiro burlesco, testemunhada pelos conjuntos poéticos intitulados Cantigas de risadilha Cancioneiro Joco-marcelino. Pelo cultivo desta poética bivalente dá a autora provas da «osmose lírico-satírica dos dois veios provenientes da génese trobadórica, berrante em Gomes Leal e Sá-Carneiro, porém quebrada pela mitofagia da religião pessoana» (Natália Correia, «Prefácio» a José Carlos Ary dos Santos, As palavras das cantigas, Lisboa, Edições Avante, 1989, p. 7).
É de sublinhar o imprescindível enraizamento circunstancial destes textos, que a autora lucidamente apoda de «desenfados quase todos parlamentares». No entanto, o seu ludismo aparentemente inócuo não deve fazer esquecer que a «atitude intervencionista nos nossos dias postulada pelo realismo social» (Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 47), cuja vitalidade Natália Correia muito certeiramente assinala a propósito do escárnio trovadoresco, não se encontra de todo ausente destas diatribes poéticas.
Partícipes do sirventês político e da chufa pessoal, trata-se, em qualquer dos casos, de criações iluminadas pelas rubricas explicativas que as antecedem, nas quais se esclarecem as coordenadas situacionais que subjazem à sua génese, um pouco à maneira de razos modernas. No caso das Cantigas de risadilha, a explícita vinculação paratextual a um subgénero que surge, desde a lacunar codificação poetológica que dele figura na anónima Arte de Trovar, associado a uma pragmática do riso e do sem-sentido2, revela precisamente «a transição do escárnio popular para a sátira artística» assinalada pela autora na introdução à Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Por seu turno, o Cancioneiro Joco-Marcelino («o parodístico registo das traquinices» de Marcelo Rebelo de Sousa) estriba-se numa sintaxe poética serial, semelhante à dos ciclos satíricos galego-portugueses, organizados em torno de uma personagem histórica. Em qualquer dos casos, deteta-se a permanência de uma personapoética que endossa um discurso entre o sentencioso e o satírico-burlesco, e de artifícios retóricos claramente tributários da textualidade da cantiga satírica galego-portuguesa.
         
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(1) Nas cantigas de escárnio e maldizer, podem encontrar-se quatro campos sémicos principais (o «ultraje», o campo «alimentar», a «polémica social» e o «obsceno») e um secundário (o «ethos trovadoresco») e ainda outros campos importados de outros géneros (a «coita d’amor», a «descriptio», a «paisagem»). (Giuseppe Tavani,Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 251)

(2) Sobre as cantigas de risabelha diz-se no capítulo V da Arte de Trovar: «Pero er dizem que outras há i “de risabelha”: estas ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chama-lhes assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja.». Cf. Giuseppe Tavani (ed.), Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 42.   

  

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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).

 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/07/o.fado.do.coveiro.aspx]
Última atualização: 2022-07-18

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