Em 1989, Lisboa teve uma campanha eleitoral excêntrica: Marcelo Rebelo de Sousa mergulhou no Tejo, guiou um táxi e varreu o lixo. |
O poema de Natália Correia que arrasou Marcelo por visitar bairros
de lata
Os
bairros sociais não são uma novidade para Marcelo. Em criança acompanhava a
mãe, já jovem fazia voluntariado, mas como político nem sempre correu tudo bem.
Até foi brindado com poemas de escárnio.
Ainda
criança, o pequeno Marcelo acompanhava a mãe no trabalho, como assistente
social, aos bairros mais desfavorecidos de Lisboa. Já no liceu,
em colaboração com as Conferências de São Vicente de Paulo, visitava
bairros de lata para distribuir comida pelos mais pobres. Anos mais tarde, em
1990, chegou a vez de o fazer como político, como candidato do PSD à câmara municipal de
Lisboa e, aí, as coisas já não correram tão bem: primeiro porque ninguém quis
saber o que propunha para aquelas zonas, depois porque a ideia que circulou
— de que pretendia dormir nesses bairros de lata durante a campanha — foi
imortalizada por Natália Correia no poema jocoso “Marcelo e as tágides“.
Apoiante de Jorge Sampaio, Natália Correia fez uns poemas — quase cantigas de escárnio e mal-dizer — sobre o candidato da direita. No jornal O Corvo — nome do jornal da campanha eleitoral da Coligação por Lisboa — a poetisa escreveu um “Cancioneiro Joco-Marcelino”, que foi publicado em novembro e dezembro de 1989 e mais tarde em várias antologias poéticas. Numa das quadras, a poetisa fala de um prodígio que Marcelo com superpoderes “congemina”: dormir nos bairros e acabar com os males de quem ali vive.
MARCELO E AS TÁGIDES
Marcelo,
em cupidez municipal
de
coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se
valoroso – ó bacanal! –
ao leito
húmido das Tágides daninhas.
Para
conquistar as Musas de Camões
lança a
este, Marcelo, um desafio:
Jogou-se
ao verso o épico? Ilusões!…
Bate-o
Marcelo que se joga ao rio.
E em
eleitorais estrofes destemidas,
do
autárquico sonho, o nadador
diz que
curara as ninfas poluídas
com o
milagre do seu corpo em flor.
Outros
prodígios – dizem – congemina:
ir aos
bairros da lata e ali, sem medo,
dormir
para os limpar da vil vérmina
e
triunfal ficar cheio de pulguedo.
Por fim,
rumo ao céu, novo Gusmão
de asa
delta a fazer de passarela,
sobrevoa
Lisboa o passarão
e perde
a pena que é de galinhola.
in INÉDITOS 1979/91
Cancioneiro
Joco-Marcelino,
POESIA COMPLETA
Mais
tarde, quando publica este e outros poemas sobre Marcelo em livro, Natália
Correia explica que nada tem contra o agora Presidente, mas que não podia
abdicar de registar estas irresistíveis “piruetas marcelinas“.
Numa “recomendação introdutória” começa por dizer: “Não se leia
neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa
extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da
Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.”
E acrescenta: “Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas
marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por
travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me
provoca num magister de reconhecido mérito em Direito.”
Ainda na campanha a Lisboa,
Marcelo Rebelo de Sousa apresentava “300 medidas para salvar Lisboa” e —
segundo o livro Marcelo Rebelo de Sousa, de Vítor Matos — uma das medidas mais
emblemáticas que tinha era um “plano de erradicação de barracas e bairros de
lata, que visita durante o mês de outubro à chuva e pelo meio da
lama”. Mas — segundo o próprio confessou anos mais tarde ao
autor do livro — “a classe média estava-se a borrifar para isso”, recorda o
ex-candidato. No dia em que apresentou as propostas, cometeu, aliás, um pecado
capital: foi ao circo e, no dia seguinte, ao invés das medidas, os jornais só
falavam de como Marcelo colocou a cabeça dentro e fora da jaula de uma leoa
chamada Aida.
A poesia de Natália não
se ficou por ali. A poetisa acabaria por brindar Marcelo com outros poemas. Um
deles comparando-o a Batman, como se vê pela primeira quadra de “Batma(n)rcelíade“:
Sempre
sôfrego do último modelo
pela batmania agora cego,
deixa de ser taxista e eis que
Marcelo
troca o volante por asas de
morcego
Já
em “O
Fado do Coveiro“, mais um poema dedicado a Marcelo, é exposto o
desespero de Cavaco Silva por ter um candidato tão excêntrico à maior câmara do
país. A última quadra desse poema rezava assim:
Estremece Aníbal
com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo”
Em
“Marcelo
até Almeida“, o tom é mais duro
Chorando pérolas
amargas no chiqueiro
num andar aos papéis que não tem fim,
a Santo António da Lisbia milagreiro
Marcelo oferece o derreado rim
O
último episódio polémico da ida a um bairro problemático, aconteceu na última
segunda-feira. Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica e conversou com
uma família que tinha estado em confrontos com a PSP. O sindicato da polícia
considerou que o Presidente estava a discriminar os polícias.
Marcelo deixou de lado a
poesia e os afetos e respondeu com estrondo, dizendo não querer acreditar que a
polícia se está a pôr no “mesmo plano” de uma comunidade desfavorecida.
Rui Pedro Antunes, https://observador.pt/2019/02/05/o-poema-de-natalia-correia-que-arrasou-marcelo-por-visitar-bairros-de-lata/
Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.
Calça à boca de sino de sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.
Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.
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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise
literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia,
2021 (3.ª
edição).
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