Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitetos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
Sobre os meses, sonhando as últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil em cima pela treva das palavras.
FALEMOS DE CASA...
Digamos que certo rei
D. João V, por virtudes de sucessão, se agilizava e a visão de franciscano
estreitasse ao reconhecer os pulmões temperados de um varão sucessor, as
implicações, ampliando a lente sobre a Vila de Mafra, seriam de uma dimensão
sombria.
Em redor desse edifício
‑ Convento, violento em porte e de ostentação suficiente para incomodar futuros
habitantes, irrompeu o casario, e com o vagar das obras que duram reinados, de
vulgares abrigos, tomaram a perenidade de outros materiais.
Digamos que o viajante
se depara com este espaço, admitindo ainda que o órgão ressoa das profundezas
da tubagem, e que o barroquismo se completa com carrilhões soando das veias de
metal.
Não estarão extintas,
as casas, soçobrando perante a obra feita?
Que outra respiração surge da terra, o fôlego dos
arquitetos, o eco dos passos perdidos; a chama de uma vela que se contrai
enquanto dedos franciscanos compilam segredos em volumes, tomos, memórias?
Erguidas as casas,
ressoa a memória que as pedras exalam.
A sensação de que a
mancha urbana estancou, embora a fenda persista, assustadora se olhada com incisão provocadora;
nasce do sentido trágico dos homens a avaliar a pulsação de acordo com as
inovações que se erguem como gigantes. Ainda que escola, casa de cultura, atração,
biblioteca infinita, o Convento marca com uma perícia avassaladora, a
persistência, a determinação do homem ‑ o arquiteto.
O
casario rebenta em pequenas frações, não concentrado em linha de força concorrente;
disperso, rege-se pela dimensão do coração de pedra central, rosácea concêntrica,
que numa tensão centrípeta estende a cal tentacular.
E se o espectro do abandono, paira sobre os traços,
no mapa de contornos, a cifra mágica pela qual se rege a reordenação do espaço, está na planta, na
fachada, na pedra, na cal. As casas não se podem extinguir, como o fogo, desfazendo-se
no pó dos dias; elas assombram, porque memória viva, porque metáfora, porque suspensão.
Quando se fala em recuperação, a
reconstrução é possível, mas importante é o readquirir funcionalidade, utilização, para
que reconhecidamente o passado desperte o urbano. A reordenação do tempo, o
refazer do espaço, são ofícios árduos, e os melhores reflexos desse labor são os espelhos da memória. Do
outro lado desse espelho, estão as respostas que o passado deixou traçadas nas
vilas esquecidas, aí onde ardem as memórias com maior fulgor que as obras
imperfeitas, que à força da diferença, carecem de fim.
Esta Vila só pelo facto de
existir contamina o passado e o futuro, reage compulsivamente, ainda que quase imóvel tremendo na córnea, ela
rebenta em
convulsões
de esperança,
da senda sagrada do regresso. E por mais nostálgico que
possa ser o
olhar
português, ele brilha e reconhece a força dos astros, encontra matizes claros
de outras terras, de outras gentes; porque o enigma envolve as pequenas vilas,
de passagem, ou perdidas na sofreguidão da terra.
É
a
imperfeição geométrica do casario, urdida pela força do Convento, que torna a
construção menos atroz, menos divina e terrível, contra a simetria que se urdem
os labirintos. E a dimensão dessa força, que deve ser enquadrada no organismo urbano,
respeitando a fornalha do tempo para moldar novas perspetivas, que ressoem como
os carrilhões: a nostalgia e ousadia na interpelação de deus, dos deuses...
Falemos de casas...
“Falemos de casa...”, Alexandra Negrão.
In: Lusíada. Arquitectura. - 0872-6256. - N. 1 (2001), p. 25-29
In: Lusíada. Arquitectura. - 0872-6256. - N. 1 (2001), p. 25-29
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