Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.
E que leão me beijou boca a boca, juba e cabelo
trançados numa chama única?
Esse beijo afundou-se-me até às unhas.
Aparelhou-me para besta
soberba, para o sono, o brilho, a desordem
ou a
carnificina. De que leite ardido, de que matriz
ou opulência terrena,
nos vem a danação? Se a pedra
tem uma raiz buscando vida em que teias de carne,
há em cima um Deus agudo,
de fenda no casco, e braços tão abertos que apanha todo o basalto,
como uma estrela elementar. Atrás
das rosáceas
desabrochadas. Do movimento de estátuas
arcangélicas plantadas no refluxo
da pedra. Boca:
bolha de sangue.
E há uma palpitação soturna, uma
delicadeza no cerne: o osso vertebral que assenta
ao meio, no ânus:
o falo — e em torno
gira a catedral. Lenta dança de Deus, da escuridão.
para o alto.
O leve poder da lua apenas queima os olhos.
Herberto Helder, Flash. Abril 1980.
Apud Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990
Notre Dame Gargoyle - Paris, Jen White (upload 25-04-2011) |
Gárgula.
Por
dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que
a mantém suspensa.
E
a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no
caos.
Esse
animal erguido ao trono de uma estrela,
que
se debruça para onde
escureço.
Pelos flancos construo
a
criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para
o fundo, com força atenta. Construo
aquela
massa de tetas
e
unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas.
Até ao centro da sua
árdua
talha de estrela.
Seu
buraco de água na minha boca.
E
construindo falo.
Sou
lírico, medonho.
Consagro-a
no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.
Herberto Helder, Última Ciência. 1985, revisto em 1987.
Apud Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990
Gargouille de la cathédrale Notre-Dame de l'Annonciation de Moulins. Foto de Vassil, 07/07/2009 |
Sem comentários:
Enviar um comentário