sábado, 26 de março de 2016

Todos ilhéus | All islanders, Nuno Costa Santos





Nuno Costa Santos

[N. Lisboa, 10.9.1974] De uma família açoriana foi criado em S. Miguel. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde dirigiu a revista Inventio.
É escritor e argumentista. Publicou, entre outros, os livros Dez Regressos e Os Dias Não Estão para Isso. Trabalhou em jornais, na rádio e na televisão e é associado das Produções Fictícias. Teve um programa no canal Q intitulado Melancómico. Escreveu o texto da peça É Preciso Ir Ver – uma Viagem com Jacques Brel e a biografia Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco. Colabora regularmente com a revista Ler e com a Sábado e tem um programa na Vodafone FM. Dá, regularmente, aulas de escrita criativa. Dirige a revista transeatlântico (número zero: setembro de 2014)

Adaptado de http://www.culturacores.azores.gov.pt/ e Azorean Spirit – SATA Magazine n.º 72, fevereiro-abril 2016


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Todos ilhéus

Ao me saberem açoriano, diversos continentais perguntam: "Nunca te fez confusão viver numa ilha?". Mesmo muitos dos que se encantam com as paisagens e o acolhimento, contam-me de um ocasional sentimento de claustrofobia, confessam que por vezes se sentem agoniados por estarem rodeados de mar, por não poderem atravessar fronteiras terrestres, fugir para outra banda, dar uma volta de carro até ao país do lado.
Respondo que não. Que nunca tive esse sentimento quando vivia a tempo inteiro na ilha de São Miguel nem o tenho sempre que regresso a casa e por lá fico, em trabalho ou em férias. Que nunca pensei: "Vivo numa ilha, estou tramado". Revelo até um escândalo: durante o meu crescimento nunca pensei que vivia numa ilha. Nunca reflecti sobre o assunto, muito menos acompanhado de bibliografia.
Nunca passei um minuto a matutar nas questões do "mar por todos os lados", do "isolamento", da "solidão", da "limitação". Estava demasiado preenchido. A ilha era a minha terra, onde tinha vivências contraditórias, umas alegres, outras não, como acontece em qualquer lugar do mundo.
Nem na fase das inquietudes habituais quis levantar voo para território distante. Na adolescência nunca senti o desejo urgente de me ir embora. Viajar para o continente e aí viver era apenas o percurso normal de quem havia terminado o liceu e queria prosseguir os estudos. Não passei tardes no quarto a fantasiar com a vida lisboeta e não fui para cima de uma rocha como um poeta romântico a imaginar os mundos "cosmopolitas" para lá do horizonte. Era feliz onde estava - tanto quanto pode ser feliz um adolescente. Com a sorte de ter uma família, um grupo de amigos, namoradas, uma vida cultural feita de muitos discos, livros e filmes que nos chegavam de fora com a velocidade certa, de beber fininhos bem tirados em cervejarias onde se falava, se debatia e se asneirava. A ilha nunca teve qualquer dramatismo, esse tipo de dramatismo de quem a vê de fora, mesmo quando está dentro.
A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas e de que quer sempre ir mais além do que o espaço que habita é um cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana. Claro que não me refiro ao sonho emigrante que muitos açorianos tiveram em alturas de dificuldades extremas. Penso naqueles que têm condições materiais mínimas e alcançaram à sua maneira uma posição de conforto e de pertença a uma comunidade com virtudes e naturais defeitos. Muitos deles, claro, associados ao desporto federado de comentar a vida dos outros.
É curioso perceber que muitos dos visitantes que partilham este sentimento repentino de estarem encerrados no meio do Atlântico, quando voltam ao ninho, pouco saem dos seus circuitos habituais. Pouco saem do seu roteiro, seja pessoal ou profissional. Não visitam bairros alheios. Não conhecem o nome das avenidas, das ruas, das freguesias da sua cidade. Vivem em ilhas ainda mais pequenas do que as ilhas onde por instantes se sentiram prisioneiros. Vai-se a ver e somos todos ilhéus. Pensem nisso.

Crónica de Nuno Costa Santos in Azorean Spirit – SATA Magazine n.º 72, fevereiro-abril 2016





MIL FOLHAS

Entrevista: Nuno Costa Santos

Nascido em 1974, Nuno Costa Santos não é propriamente um novato no mundo da escrita, ainda que “Céu Nublado com Boas Abertas” (Quetzal, 2016), o seu primeiro romance, tenha chegado às livrariasapenas este ano. O percurso tem sido feito de livros de poesia ou contos, crónicas avulsas, aventurasbloguianas, programas radiofónicos e televisivos, o que faz deste primeiro livro uma estreia com muito embalo.
A partir de um livro do avô que encontrou numa estante como “um soldado esquecido”, Nuno Costa Santos ficcionou a história de um homem que regressa à sua terra para cumprir uma missão literária, atribuída sem destino específico mas com muita crença pelo seu avô morto: a recolha de histórias recentes da ilha de São Miguel, lá nos indescritíveis Açores. Um livro feito de histórias e tempos cruzados, de personagens que se confundem e fundem, atravessado por muitas referências literárias e uma banda-sonora de eleição. O Deus Me Livro esteve à conversa com Nuno Costa Santos na última edição das Correntes d`Escritas.
Quanto de ti passou para a personagem principal do livro, que regressa aos Açores para cumprir uma herança literária passada pelo avô?
Passou bastante, por um motivo. Ao dialogar com o livro de um avô que se expôs muito, a única forma de ser minimamente leal com esse projecto, de dialogar com esse livro, era eu próprio me jogar bastante como narrador/personagem/protagonista. O livro que encontrei é escrito na primeira pessoa e a viagem é feita na primeira pessoa. E as características da personagem têm muito a ver comigo, ainda que não seja eu. É mais velho, por exemplo, há pormenores, pequenos truques, ilusionismos que fazem parte do jogo da literatura. Mas respondendo à tua pergunta levei muito de mim para dentro do livro: do meu crescimento, da minha adolescência, das minhas opções, dos meus humores, dos meus ressentimentos e dos autores que fui lendo.
O livro tem algumas semelhanças estéticas com as obras de Sebald, desde o tom confessional – quase em forma de diário -, à inclusão de fotografias ou à utilização de muitas citações. Será este seu primeiro romance, também ele, um livro de memórias tocado pela magia da ficção? E que tenta fazer da memória arte, essa “inutilidade suprema” de que se fala ao cair do pano?
O Sebald bastante, mas também o Olivier Rolin do “BaKu”, por exemplo, livro editado pela Sextante e que tem também este lado marcado para a morte, de viagem, um livro que também usa fotografias. Assumo essa herança. Eu escrevo – e isto pode parecer um pouco arrogante – aquilo que gostaria de ler. Podia ter feito um livro mais convencional sob o ponto de vista da arquitectura, pegando na história dos meus avós, um casal que nos anos 40 do século passado é obrigado a separar-se por causa da tuberculose, e que ficam separados durante quatro anos e, ao fim de seis, o elemento masculino do casal tem de tirar um pulmão. Tudo isto dava um romance clássico, uma história de amor. Mas achei que tinha muito mais a ver comigo este diálogo com o livro, comigo próprio, esta espécie de livro do desassossego.
A certa altura lê-se isto: “Admiro nos homens não a valentia mas a capacidade diária de se esquecerem que um dia vão morrer”. Qual é a tua relação com a morte, e de que forma está esta presente na tua vivência?
Há quem diga que os poetas – no sentido genérico do termo – têm, desde muito cedo, uma consciência aguda da própria mortalidade. Eu lembro-me perfeitamente de quando comecei a pensar na morte. Antes disso tinha aquela ideia de que sempre que havia um problema terreno haveria sempre um depois, uma solução – muitas vezes encontrada pelos meus pais -, mas depois de me deparar com a morte comecei a sentir uma certa angústia. Sou uma pessoa muito vulnerável ao mundo, algo que tem tanto de bom como de mau. A parte má é ter essa consciência da sombra, é estar aqui num ambiente porreiro, com esta música, mas poder haver uma imagem que me remeta para a ideia de que vamos todos morrer, que isto vai ser tudo destruído, e que nem este edifício que é tão sólido vai sobreviver. A arte é uma forma de tentar resolver isso.
Pegando nas tuas palavras, “porque é que alguém que tem tudo para acreditar no divino não sente fé?” E não será esta, afinal, algo que todos nós buscamos, como o próprio João Pereira da Costa, que na Cova da Iria acabou por encontrar nada mais que “a pior das clausuras”?
Absolutamente. Aqui nas Correntes nota-se muito isso, há a crença na literatura. Há aqui pessoas que têm uma relação quase religiosa com a literatura, como se fosse um território no qual se pudesse acreditar. Eu tenho essa crença mas também a tendência para questioná-la, sabotá-la, para desconfiar dela. No lado especificamente religioso não fui baptizado, mas a minha mãe ensinou-me a rezar. Havia um pedido final que fazia sempre, que era “Deus faça com que não haja guerras nem tremores de terra”. Estamos todos à procura disso, mesmo os não crentes têm de ter alguma crença. Agora estamos a viver uma era de pequenas crenças, mundanas, como a gastronomia, o gourmet. Se me perguntares qual é a minha, é esta: a possibilidade de viver instantes de felicidade aqui na terra com os meus, com a minha comunidade, e tentar ser o mais solidário com as comunidades que estão distantes da minha. Tenho essa crença na solidariedade.

No livro, o protagonista diz ter trocado o surf pelas páginas irregulares de Artaud, Bréton ou Holderlin. Mais à frente fala-se de Ferreira de Castro, Alves Redol, Pessoa, Sá-Carneiro, Borges Kafka ou Joyce. São estas as influências ou, pelo menos, as tuas preferências no que diz respeito à literatura?
Falaste aí de uma mistura de referências minhas e do meu avô. Esses escritores neo-realistas foram muito absorvidos pelo meu avô, e foram eles que o sintonizaram muito para o sentimento de desigualdade social, que havia na terra onde morava, uma sociedade rural muito estratificada e pobre. No meu caso esses escritores iniciais, sobretudo Holderlin, Artaud, Breton, foram os que li em cima dos rochedos, em Rabo de Peixe, enquanto alguns dos meus amigos surfavam. Diverti-me, também fiz os meus tubos mas nas páginas da literatura. E acabávamos todos a beber uma imperial. Ou um fino como se diz aqui.
No que toca a música, há também uma diversificada banda sonora que vai de composições ao piano e Pink Floyd a sonoridades mais atrevidas como as dos My Bloody Valentine ou dos Jesus & Mary Chain. É esta também parte da banda sonora da tua vida?

Estou sempre a ouvir música. Ainda agora descobri uma banda de Manchester que me está a fascinar chamada Money, meio baladeira. Mas sim, os My Bloody Valentine fizeram parte da minha adolescência. Lembro-me de ter uma gravação em cassete que emprestei a um amigo que me disse que aquilo devia estar mal gravado. Também Jesus & Mary Chain, The Cure – muito – Joy Division, Bauhaus, B-52`s, mas coisas muito diversas como Meredith Monk, Michael Nyman, Wim Mertens, Miles Davis, Prince, muito daquele catálogo da 4AD, claro, que condiz na perfeição com a paisagem açoriana: como Cocteau Twins, Dead Can Dance, The Moon and The Melodies. Toda a minha vida insular foi cruzada pela música, e até já fiz um filme com amigos em que vou aos Açores buscar os discos que lá deixei, e que passam pelos Pixies, Stones Roses, Inspiral Carpets, Charlatans, nunca mais saía aqui. Mas vejo os discos como uma espécie de catálogo de amigos. A música para mim é tão importante como a literatura, só que nunca seria capaz de ser músico.
Será a vida isto mesmo, um “Céu Nublado com Boas Abertas”?
Acho que sim. A felicidade deste título tem a ver com isso. De se aplicar à meteorologia açoriana e muito à vida do meu avô. Céu muito nebulado, doença, sofrimento até ao limite, nervosismo, raiva e, depois, com boas abertas: a possibilidade de voltar a estar com a minha avó, de dançar, ler, de ter os filhos, de ser gerente bancário, de conseguir se reerguer. Acho que no fundo a vida de todos nós é isto.

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