QUESTIONÁRIO
1. Leia o início do conto:
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue
simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da
«Liga Internacional das Mulheres Inúteis»...
Qual lhe parece ser a atitude do narrador em relação a
Mónica?
O narrador demonstra:
- simpatia
- condescendência
- ironia
- admiração
http://cvc.instituto-camoes.pt/contomes/19/entrada.html
2. Vamos interpretar.
2.1. Ao enumerar todas as tarefas de Mónica, o narrador
pretende demonstrar que a personagem:
- tem os dias ocupados com muitas atividades importantes.
- tem muito tempo livre e poucas atividades.
- é desorganizada nas suas atividades diárias.
- tem os dias preenchidos com muitas atividades sem valor.
2.2. «Tenho conhecido muitas pessoas parecidas com Mónica».
A personagem é aqui apresentada como modelo relativamente a:
- características físicas, como cor de olhos e cabelo.
- maneira de ser e de viver.
- mau relacionamento com as pessoas.
- incapacidade de atingir o sucesso.
2.3. «Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao
amor e à santidade».
Fez tudo para:
- dedicar o seu tempo aos outros.
- ter um emprego estável.
- ser bem recebida pela sociedade.
- ter os dias menos ocupados.
2.4. «Como um instrumento de precisão ela mede o grau de
utilidade de todas as situações e de todas as pessoas».
A frase revela que Mónica é uma pessoa:
- que escolhe as companhias consoante precisa delas.
- que não gosta de ter amigos importantes.
- que gosta de perder tempo com os amigos.
- que gosta de ter muitos amigos.
2.5. Em relação ao marido, «quando ele é nomeado
administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada».
Esta frase significa que:
- Mónica se preocupa tanto com o marido que lhe resolve muitos
assuntos.
- ele é tão incompetente que tem que ser Mónica a decidir.
- ele só é nomeado porque ela já não tem tempo disponível.
- Mónica decide tudo por ele porque é ela que quer mandar.
2.6. Qual é a frase que melhor resume a vida da personagem?
Para Mónica:
- a família está em primeiro lugar.
- a solidariedade ocupa-lhe todo o tempo.
- o trabalho é o fator mais importante.
- a vida é um negócio.
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“Retrato de Mónica” no Exame Nacional de Português
Leia o texto desde “Mónica é uma pessoa tão extraordinária” até “Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.”
1. O retrato de Mónica adquire contornos de caricatura ao serviço da crítica social.
Explicite dois aspetos significativos da construção desse retrato.
2. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação.
Com a expressão «qualquer distração pode causar a morte do artista», o narrador pretende evidenciar que a perfeição perseguida por Mónica a obriga a uma
(A) autovigilância constante para se afastar do materialismo.
(B) tomada de decisão irreversível para combater a sua vulnerabilidade.
(C) autovigilância constante que a mantém focada no seu propósito.
(D) tomada de decisão irreversível que decorre de uma constante autocensura.
3. «Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio.»
Explique as afirmações do narrador acima transcritas.
CENÁRIO DE RESPOSTAS:
Nota prévia: Nos tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas ‒ à exceção das utilizadas no interior de cada uma das citações ‒ correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa. As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.
1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
- Mónica é caracterizada como «uma pessoa tão extraordinária» que consegue realizar múltiplas tarefas, ser bem sucedida e possuir riqueza («gloriosos bens» – l. 13), o que a torna aparentemente perfeita; porém, essa perfeição esconde uma mulher fútil («dirigente da “Liga Internacional das Mulheres Inúteis”» – l. 2), hipócrita e calculista, que «mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas» (l. 22);
- a acumulação exagerada e inverosímil de qualidades (por exemplo, «ser sócia de todas as sociedades musicais» – l. 7; «dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela» – l. 5; «estar sempre divertida [...] e ser muito séria» – ll. 7-8) produz um efeito negativo, mostrando que o objetivo do narrador é ridicularizar e não elogiar Mónica;
- a colocação em plano de igualdade de qualidades valorizadas socialmente, como «ser boa mãe de família» (ll. 1-2), e de atividades do quotidiano e insignificantes, como «comer iogurte» (l. 6), é reveladora da intenção satírica do narrador;
- a caricatura está patente em diversas passagens do texto, por exemplo, quando o narrador afirma que Mónica trabalha de sol a sol e que teve de renunciar à poesia, ao amor e à santidade, realçando o elevado grau de sacrifício e de calculismo que a personagem tem de impor a si mesma diariamente para obter prestígio social.
2. (C) Com a expressão «qualquer distração pode causar a morte do artista», o narrador pretende evidenciar que a perfeição perseguida por Mónica a obriga a uma autovigilância constante que a mantém focada no seu propósito.
3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
- Mónica sabe sempre como agir para alcançar os seus objetivos, utilizando a sua inteligência para criar de si mesma uma imagem que ela considera perfeita e que vai ao encontro dos padrões da sociedade;
- a oposição inteligência/estupidez enfatiza a hipocrisia de Mónica, que, no fundo, se aproveita da ignorância/estupidez dos outros para os manipular.
Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)
Prova – versão 1: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-V1_net.pdf
Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-CC-VT_net.pdf
Poderá também gostar de saber que...
Há uma narrativa breve nos Contos
Exemplares de Sophia de Mello Breyner que sempre me impressionou. Chama-se “Retrato
de Mónica” e é uma sátira feroz da alta burguesia dominante sob a ditadura de
Salazar. Como o regime da sátira não é habitual em Sophia, este conto coloca-se
em manifesta dissonância em relação aos outros contos e à restante obra da autora.
Horácio, na sua Ars Poetica,
define a sátira como um género ao serviço da morigeração cívica, em nome de determinados
princípios e valores morais. “Ridendo castigat mores" é a conhecida
síntese que traduz esta conceção. É diferente o ponto de vista de Juvenal, que
considera a indignação como fonte de inspiração do poeta satírico e faz da sátira
um meio de condenar vícios ou defeitos pessoais, de forma violenta e crítica.
O conto “Retrato de Mónica” situa-se
entre estas duas conceções da sátira. O ataque é pessoal e a indignação é sem dúvida
o estímulo da criação, mas o alcance da crítica é social e político, em
consonância com o propósito de intervenção que preside à maior parte dos contos
da coletânea, assinalado aliás na dedicatória a Francisco Sousa Tavares: “Para
o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual”.
Mónica é, ao que parece, um retrato de
Cecília Supico Pinto, a famosa “Cilinha”, como era conhecida na época. Mulher
de Luís Supico Pinto, que ocupou importantes cargos políticos e administrativos
e foi um dos homens de confiança de Salazar, Cecília Supico Pinto criou o Movimento
Nacional Feminino, de que foi presidente entre 1961 e 1974. O Movimento
destinava-se a prestar apoio na guerra colonial e tornou-se um dos instrumentos
de propaganda da política ultramarina nos anos 60, graças sobretudo à
visibilidade pública da sua presidente, que, além de privar com o ditador e com
as altas patentes militares, era figura indispensável nas festas do “Natal dos
Soldados e das Famílias” e noutros eventos similares, e se deslocou várias
vezes a África em missões de ação psicológica.
Em “Retrato de Mónica”, Sophia mobiliza
todos os recursos irónicos para traçar a caricatura da mulher de sociedade que
“faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome”1,
íntima de poderosos e esteio fiel do ditador, numa relação de implicação que o
final do conto torna explícita:
“Há vários meses que não vejo Mónica.
Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando
com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há
evidentemente nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima e toda a
gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O
que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente
a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio, o mais firme
fundamento do seu poder”.
Este final torna evidente a estratégia
metonímica do conto: a metonímia, enquanto tropo de deslocação ou implicação, é
aqui uma forma indireta de representação do poder. O ponto de mira não é
propriamente o ditador – apesar de ele aparecer nomeado como o “Príncipe deste
Mundo” – mas sim as extensões da autoridade, na figura emblemática de Mónica.
Não menos conseguido é o modo de
estigmatizar a figura em questão, através da litotes. Em vez dos vícios ou
defeitos da personagem satirizada, à maneira convencional, são as qualidades
que são postas em realce:
“Mónica é uma pessoa tão extraordinária
que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente
da “Liga Internacional das Mulheres Inúteis”, ajudar o marido nos negócios,
fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos
jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a
gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer
bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde,
levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser
sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo
exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria”.
Esta é talvez a frase mais longa da
prosa narrativa de Sophia, prosa essa que, como veremos, obedece normalmente a
outras cadências e a outros metros. A acumulação, mais ou menos caótica e
levada até ao absurdo, é um recurso eficaz ao serviço da sátira. Acaba por
tornar inverosímil o retrato, produzindo um efeito de negação dentro da própria
afirmação. Ajudam à função demolidora outros tropos do pensamento, como a
hipérbole, a ironia, o “nonsense” e até o humor negro:
“A chegada de Mónica é, em toda a
parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que
Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem
tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é
nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são
o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando
para o triunfo da mesma firma.(...)
É por isso que Mónica, tendo renunciado
à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos
de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando
os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua.
E o sucesso de Mónica também(...)”.
O retrato é, de facto, notável. Mas se
pelo tom satírico e corrosivo ele se nos afigura dissonante dos restantes
contos, tem de comum com eles o carácter exemplar. A exemplaridade é, de facto,
um traço fundamental da coletânea, como o próprio título indica. Decalcado do
de Cervantes, Novelas Ejemplares, é um indicador incontornável, que
sublinha a determinação axiológica do texto. O prefácio de D. António Ferreira
Gomes à 3.ª edição dos Contos Exemplares, de 1970, começa por destacar
precisamente este aspeto: “Contos Exemplares – Provocação, desde o
próprio título!... Contar histórias, e histórias exemplares, nestes tempos de
literatura - romance, novela, filme ou poema – sem herói, sem personagens, sem
enredo, sem objeto, sem desfecho? Fazer exemplares estes contos, quando
certa literatura up to date se quer situar fora da moral e dos valores
(...), fora também da coerência e do bom senso, para instalar-se comodamente
(ou angustiada e nauseadamente, tanto vale!) na dispersão, na confusão, no
Absurdo, Angústia e Náusea?!”. Destacando a obra do contexto histórico-literário
dominante, o prefaciador louva a sã exemplaridade dos contos de Sophia no plano
humano e moral. Recorde-se que D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto a
partir de 1952, foi uma das vozes mais desassombradas da hierarquia
eclesiástica durante a ditadura. A sua famosa carta de 13 de julho de 1958 ao
Presidente do Conselho, criticando o regime corporativo e defendendo os valores
da doutrina social cristã, causou polémica e valeu-lhe o exílio durante dez
anos.
***
Cecília Supico Pinto
Quebrou
um silêncio com mais de três décadas e autorizou a publicação de uma biografia
que evoca sobretudo os anos da guerra colonial. Líder do Movimento Nacional
Feminino, Cilinha foi a mulher que, entre 1961 e 74, tentou servir a propaganda
da política colonial do regime
a Foi o
primeiro momento de visibilidade. Em 1949, quando o general Norton de Matos
lançou a sua candidatura à Presidência da República, o país assistiu a uma
inédita mobilização feminina conservadora. A iniciação na política de um vasto grupo
de mulheres, maioritariamente católicas, fez-se através do Movimento Nacional
Feminino (MNF), então liderado por Maria Teresa Andrade Santos. O MNF servia,
então, dois propósitos: apelava à participação ativa na campanha eleitoral do
marechal Carmona e assumia-se como uma espécie de movimento de resistência
contra as ideias propagadas pela Comissão Feminina do Movimento de Unidade
Democrática.
Depois
das eleições, a palavra de ordem que as mulheres do MNF exclamavam nos comícios
de Carmona - "ao serviço de Deus, da pátria e da família, o vosso grito de
mulher será sempre apenas este: presente!" - não se fez ouvir com tanto
estrépito. O MNF entrou em hibernação. Até 1961.
Para
quem acreditava, como Cecília Supico Pinto, que Portugal ia "do Minho a Timor",
o início da guerra nas "províncias ultramarinas", como ainda hoje
designa Moçambique, Angola e Guiné, não era o momento para recuos ou
hesitações. Cecília, educada numa família da alta burguesia lisboeta e
assumidamente monárquica, fez despertar o MNF e, na qualidade de sua
presidente, apelou à mobilização das mulheres para o apoio moral e assistencial
aos soldados que partiam para a guerra.
Em
1963, já António de Oliveira Salazar, que então proibira todas as associações
de mulheres que não fossem agregadas ao regime, reconhecia publicamente os
efeitos das ações do MNF junto das tropas que combatiam no Ultramar. "Elas
servem de apoio aos que são tentados a descrer e hesitam e perturbam com
dificuldades que vós não receais e nós estamos seguros de vencer", disse o
então Presidente do Conselho, recolhendo uma ovação de centenas de mulheres.
Na
frente de combate
Há mais
de três décadas que o nome de Cecília Supico Pinto desapareceu da esfera
pública (com a exceção da referência que Pedro Abrunhosa lhe fez numa
entrevista ao Ípsilon, no ano passado, a propósito da "caridadezinha"
que abomina). Depois dos anos de silêncio, Supico Pinto decidiu aceitar o
desafio da historiadora Sílvia Espírito Santo e contar um pouco da sua vida,
centrando as recordações nos 13 anos da guerra colonial.
O
resultado dessas conversas que se alongaram por quatro anos é o livro Cecília
Supico Pinto - O rosto do Movimento Nacional Feminino (Esfera dos Livros), hoje
apresentado por Anne Cova e Fernando Dacosta na Sociedade de Geografia, em
Lisboa, às 18h30. Com a exceção do Expresso
(ao qual deu uma entrevista), a antiga líder do MNF, hoje com 86 anos, manteve
a sua recusa em falar com a comunicação social.
A obra
de Sílvia Espírito Santo não é uma biografia no sentido clássico do género. Não
se limita a transformar o livro num longo depoimento, nem faz dele um
repositório de memórias. Rejeitando a ideia de escrever uma biografia
laudatória ou hagiográfica, a investigadora do Centro de Estudos das Migrações
e Relações Interculturais procurou "o rigor", cruzando as recordações
de Cecília com factos históricos, depoimentos de mulheres do MNF, historiadores
e antigos combatentes, e também com a literatura sobre a guerra colonial.
Durante
os anos da guerra, Cilinha, como era conhecida, foi mais do que o rosto do MNF.
Pertencente ao topo da hierarquia do regime, era ela quem personificava todas
as actividades do movimento feminino - com um curso de Enfermagem na bagagem,
viajou incessantemente pela Guiné, Angola e Moçambique, entrou pelo mato
dentro, vestiu um camuflado para acompanhar os soldados na linha da frente dos
combates (o "baptismo de fogo" aconteceu nos arredores de Mueda,
Moçambique), aprendeu a disparar, dormiu ao lado de uma G-3, foi ferida pelos
estilhaços provocados pelo rebentamento de uma mina, na Guiné. Escreve a autora
do livro que Cecília "trabalhou para e entre homens", um acto
"socialmente reprovável" no Portugal da segunda metade do século XX.
Ao P2,
Sílvia Espírito Santo define-a como uma mulher "paradoxal": porque
"tem posições avançadas na defesa do empenhamento social das mulheres, mas
é uma antifeminista primária". As causas para as quais ela apelava estão
longe de traduzirem a emancipação das mulheres portuguesas. Até porque, sob a
capa do apoio prestado pelo MNF, o movimento operava a doutrinação ideológica e
moral junto das mulheres e dos combatentes.
Em
finais de 60, Cecília não poupou as mulheres que se organizaram contra a
política colonial. Por isso, considerou como um ato de "guerrilha
internacional" a reunião, em Helsínquia, da Federação Democrática
Internacional das Mulheres, na qual participou uma comitiva portuguesa do
Movimento Democrático das Mulheres.
Vigiada
pela PIDE
Quando
Cecília iniciou a sua "missão" no MNF, uma organização
"patriótica" de apoio aos militares e às suas famílias, não descurou
nunca os seus "deveres" enquanto "dama" do regime. Era
casada com Luís Supico Pinto, que começou por ser subsecretário de Estado das
Finanças, foi ministro da Economia, presidente da Câmara Corporativa e membro
do Conselho de Estado.
As
importantes funções que o marido foi exercendo aproximaram-na do Presidente do
Conselho. O historiador José Freire Antunes, citado no livro, designa-a como o
"duplo feminino" de Salazar. Ao P2, a historiadora explica: "Ela
tem a personalidade que ele gostaria de ter: é culta, desinibida, bem-nascida.
Por isso, ele sublimava-a".
Salazar
gostava de ouvir as anedotas que ela contava. Mas a relação não se alimentava
apenas de uma admiração mútua. Cilinha fazia-lhe relatórios sobre o que via e
ouvia quando regressava dos teatros de guerra e, para o chefe do Governo, esta
mulher era o perfeito meio de propaganda no terreno militar e junto da opinião
pública. A recompensa que ela recebeu foi esta: dentro e fora do regime, houve
quem a visse como a "primeira-dama" (foi o caso de Adriano Moreira,
ministro do Ultramar entre 1961 e 1962, conforme se pode ler no livro).
ima que mantinha com Salazar não impediu que o
seu telefone estivesse sob escuta e que todos os seus passos fossem vigiados
pela PIDE, conforme se pode constatar no arquivo da PIDE/DGS, na Torre do
Tombo. Questionada sobre o assunto, Cecília explicou que tinha conhecimento
destas acções de "vigilância" e que nada tinha a esconder. "Acho
que, a certa altura, ela pensou que estava acima da PIDE", nota a
investigadora, "porque não evitava certo tipo de conversas e chegava mesmo
a chamar este e aquele de fascista. Ela não tinha medo, é certo. Mas acho que a
PIDE a vigiava para a proteger."
Cecília
parecia conhecer de cor as malhas do salazarismo e sabia quais as regras para
uma boa convivência, o que lhe garantia um chorudo subsídio do Ministério da
Defesa e do Ministério do Interior. Entre essas regras estava a ausência de
qualquer tipo de reclamações. Só assim se justifica o facto de o Ministério de
Defesa se ter apropriado, sem burburinhos, de várias propostas idealizadas pelo
MNF. A saber: a gratificação de isolamentos dos militares em serviço nas
fronteiras, nova legislação para militares universitários, subvenções para as
famílias, deslocação e pagamento dos funerais dos militares mortos em combate.
Para o
MNF, e para a sua presidente, restavam os "louros" do envio de tabaco
e de revistas e da iniciativa das "madrinhas de guerra", uma cópia do
trabalho realizado pela Cruzada das Mulheres Portuguesas, liderada por Ana de
Castro Osório, durante a I Guerra Mundial.
Até
1974, a edição de revistas foi uma das faces mais visíveis do trabalho do MNF:
primeiro surgiu a Presença, depois a Guerrilha e, finalmente, a Movimento. Na
sede, na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, um pequeno estúdio de rádio emitia
para Angola, Moçambique e Guiné o programa Espaço e foi nesse mesmo estúdio que
o MNF gravou o disco Natal 71, uma coletânea que provocou polémica porque foi distribuída
nos campos de guerra, onde, como se podia imaginar, não existiam gira-discos.
"Exibicionismo"
em África
As reações
dos combatentes às atividades do MNF e às visitas a África de Supico Pinto
foram as mais diversas, constatou Sílvia Espírito Santo. "A partir da
segunda metade da década de 60, os militares mais politizados atacam o MNF como
forma de atacar o regime. Há outro tipo de militares que dizem os maiores
insultos sobre ela e há ainda uma faixa que vive dessas memórias e que enaltece
o trabalho do movimento", explica a investigadora, que recorreu ao romance
Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, para olhar o MNF pelos olhos dos que
partiam: "Reencontrei-as [as senhoras do MNF] no portaló do barco na manhã
da partida, encorajando-os com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão
viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por
intermédio dos anéis de brasão." Mas, fora dos territórios da guerra,
houve também ferozes ataques a Supico Pinto. Vinham sobretudo da Rádio Portugal
Livre, emitida em Argel pela Frente Patriótica de Libertação Nacional, que a
acusava de "exibicionismo" nas incursões a África.
A isto
somou-se a fria e distante relação que Cilinha mantinha com Marcelo Caetano,
nomeado Presidente do Conselho em 1968. Ela temeu que ele pusesse cobro à
guerra, considerava-o "desconfiado", dizia que lhe chamavam "o
pisca". Sílvia Espírito Santo nota que a animosidade já tinha muitos anos:
"Ele tomou posições sobre a monarquia que desagradaram a Cecília e ao
marido. E quando Luís Supico Pinto estava no Ministério da Economia, Marcelo
foi uma das pessoas que mais o criticaram por não saber resolver os problemas
económicos do pós-guerra".
Olhando
para as atrocidades da guerra, para o crescente número de mortos e estropiados
e para as péssimas condições de vida dos combatentes, Cecília nunca vacilou na
sua crença por uma nação "pluricontinental e plurirracial"? "Ela
sempre acreditou que o regime resolveria qualquer problema. E só nas vésperas do
25 de Abril é que alertou para a necessidade de se fazer alguma coisa, pois
considerava que a contestação no meio militar estava fora de controlo",
diz a autora.
A 25 de
Abril de 1974, Cecília rumou para a sede do MNF. "Tinha a presunção de
que, como eram os militares que faziam a revolução, ela estaria
protegida." Ditado o fim da guerra colonial, o MNF tinha os dias contados.
E a sua sede também, que foi depois ocupada pela famosa 5.ª Divisão, comandada
pelo coronel Varela Gomes. Em Junho de 74, o movimento foi oficialmente extinto
e Cecília Supico Pinto remeteu-se a um silêncio de décadas.
Quando
Sílvia Espírito Santo visitou a Rua das Janelas Verdes, em busca de recordações
sobre o trabalho do MNF, alguém lhe perguntou se era da PIDE. "Respondi
que a PIDE já não existia e a pessoa disse-me: "Isso é o que a senhora
pensa"."
Maria José
Oliveira, Público, 12-02-2008
A guerra
colonial e o Movimento Nacional Feminino (MNF)
Crónica de Carlos Esperança
Mais de cinquenta anos
volvidos sobre o regresso à Pátria, ainda é doloroso voltar aos sítios onde o
crime de ser português levou uma geração a sobreviver em condições precárias,
de armas na mão, para fazer uma guerra inútil, injusta e antecipadamente
perdida.
Recordo o embarque no cais
de Alcântara num qualquer dia de outubro de 1967, rumo a Moçambique, com
mulheres e meninas bem vestidas a ostentarem braçadeiras do MNF para a
coreografia do adeus aos mancebos que a sorte destinara a Moçambique.
Não assisti à pungência da
despedida, num misto de nojo e raiva. Preferi o camarote ao convés inclinado do
Vera Cruz, o silêncio do navio ao clamor do cais, a solidão ao ruído coletivo e
à cumplicidade com a coreografia das damas do MNF a saltitar na amurada.
Nutria pelo exército de
saias da D. Cecília Supico Pinto o mais profundo asco, o rancor de quem sabia
inútil a guerra e inglório o sacrifício. Aquelas braçadeiras lembravam-me as
suásticas do nazismo. Eram a versão aparentemente casta das prostitutas que os
exércitos toleram ou alugam. A D. Cecília usava os apelidos do Dr. Clotário,
seu marido e destacado fascista, que fez a vida nos governos de Salazar e na
Câmara Corporativa de que foi presidente durante 16 anos. Era uma salazarista
beata com especial devoção aos alferes da Guiné.
Ouvi o ronco da partida e
senti deslizar o navio gigante, puxado pelo rebocador, rumo à costa africana.
Quis esquecer as lágrimas dos meus camaradas e dos seus familiares e aquela
tropa de saias que estava ali para estimular o patrioteirismo dos que partiam,
indiferente a quem morresse.
A PIDE tinha-me impedido a
ida para Macau e, seguidamente, para Timor, em rendição individual, motivo por
que ocultei aos meus pais a data da partida e o destino. Aliás, só soube do
destino quando, em Viana do Castelo, o 1.º sargento quis pagar-me dois meses de
vencimento, habituais antes da partida, o que recusei por ter recebido a
importância devida, embora menor, por Macau.
As peripécias que rodearam
o embarque e o destino que me coube levaram-me a decidir só vir a Portugal se,
nas segundas férias, já não estivesse em zona de guerra. Não queria aumentar a
ansiedade dos meus pais.
Como a Companhia esteve
toda a comissão em zona de guerra, embora de perigosidade moderada, passei as
férias em Nampula com idas à deliciosa Ilha de Moçambique, hoje património da
Humanidade.
Foi nas segundas férias
que um dia senti dores intensas, logo tornadas lancinantes. Fui atendido à
porta de armas por um psiquiatra conhecido através de um amigo, Cachucho
Rodrigues, médico do meu batalhão e colega dele de curso e que, por motivos de
saúde, não concluíra ainda a especialidade.
Chamava-se Adriano Vaz
Serra e viria a ser catedrático de Psiquiatria da Universidade de Coimbra. De
pistola à cinta, vestido de alferes e de oficial-dia ao Hospital, disse-me que
tinha um cálculo renal e ordenou que me acompanhassem ao serviço de Urologia.
Esqueci mais facilmente as
dores pungentes do cálculo de oxalato de cálcio, que acabou por sair, do que a
visita de personagens do MNF à enfermaria, tia e sobrinha, de cerca de 50 e 20
anos respetivamente, e uma figura menor que segurava as ofertas.
Entrou à frente a mais
velha e exuberante, acompanhada da de 20 anos, muito apetitosa, sobretudo para
quem tinha muitos meses em zona de guerra. Era a coronela Canelhas, mulher do
coronel do mesmo nome, dirigente do MNF, em visita aos internados na única
enfermaria onde não perguntava a cada um pela doença ou acidente que sofrera,
quase sempre moléstias de contágio, resistentes aos antibióticos, e que não era
prudente indagar.
Entrou na enfermaria a
gritar «então estão melhores (?), curem-se depressa que a Pátria precisa de
vós», «hoje, trago um bolo muito bom, que aqui a minha sobrinha faz anos e vai
casar no domingo (?)», e começou pela minha cama, a primeira das 3 do lado
direito da enfermaria, a perguntar, com um sorriso que lhe aproximava as
orelhas da comissura dos lábios, ou vice-versa, se queria um maço de cigarros:
- Obrigado, fumo cachimbo.
- Ah!..., mas quer uma
fatia de bolo…
- Obrigado, sofro de
diabetes juvenil,
e o sorriso esvaiu-se,
tornou-se-lhe agreste a voz,
- Quer aerogramas?
- Obrigado, escrevo
cartas,
e a sobrinha, pasmada, a
olhar-me, enquanto a tia se apressava a despachar as prendas ao serviço da
Pátria, imóvel, a ouvir-me dizer-lhe, de forma rude, uma grosseria saída do
ódio visceral, com raiva incontida:
- Tão nova e bonita e já
nesta vida…
…e o rubor a tomar conta
dela, presa ao chão, até à despedida da tia, de costas para nós, depois de ter
aviado uma fatia de bolo, um maço de cigarros e uns tantos aerogramas a cada um
dos outros 5 camaradas que ocupavam a enfermaria, a sair apressada pela porta por
onde entrara, a gritar de novo, já de costas, «curem-se depressa que a Pátria
precisa de vós», e a sobrinha, desnorteada e muda, a recuperar o atraso e,
talvez, a perceber que o desprezo que merecera era superior ao desejo masculino
que julgaria despertar.
Foi o primeiro e último
encontro com a fauna do MNF, sem consequências ou saudade.
Crónica de Carlos Esperança,
Coimbra, 4 de julho de 2020
Disponível em: https://www.facebook.com/carlos.esperanca.1/posts/pfbid0Siw2EkDWB7ru6y3XD4UfKGbcy5ifHfbff7qonuq3YQcbJBRKk5WyaCwSTeTfQGekl,
26-02-2023
“A poesia é
oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível |
RETRATO DE MÓNICA, Sophia Andresen” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 18-04-2018 (última atualização: 26-02-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-poesia-e-oferecida-cada-pessoa-so-uma.html
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