segunda-feira, 8 de novembro de 2021

um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito Poesia e Resistência (Portugal) realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para o ILCML


Resposta de Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937):


Quê?

um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.

vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?

Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.

E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.

E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.

Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.

Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.


 Respondem os poetas (de Portugal):

https://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/




       Poderá também gostar de ler:

 

A heterogeneidade das práticas discursivas a que damos o nome de poesia reflete-se em diferentes conceitos de resistência, tão variáveis quanto as poéticas que lhes estão associadas. “Não há opressão maior e mais infame que a da língua”, escreveu Alberto Pimenta, e a poesia desenvolve mecanismos de resistência que assentam na consciencialização deste facto. Mas, por outro lado, talvez se tenha vindo a criar alguma resistência aos usos que a poesia de tradição moderna reivindicou para “as palavras da tribo”.

Reportando-se ao mundo contemporâneo, Pimenta constatava recentemente: “nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem”. Porquê “ainda bem”? Por que precisa a poesia deste estar à margem? E se não faz falta (?), por que razão continua? As “operações” poéticas de Alberto Pimenta e os diálogos que estas mantêm (ou recusam) com outras poéticas portuguesas contemporâneas serão o ponto de partida para algumas possíveis respostas.

 

Ler mais em: “Tensões e Implicações entre Poesia e Resistência na Contemporaneidade Portuguesa”, Rosa Maria Martelo. In: elyra 2, 12/2013: 37-53 – ISSN 2182-8954. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/25/28

 



CARREIRO, José. “um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/um-ambar-na-cova-da-mao-alberto-pimenta.html



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