https://pt.wikipedia.org/wiki/Eucana%C3%A3_Ferraz |
CALENDÁRIO
Maio,
de hábito, demora-se à porta,
como
o vizinho, o carteiro, o cachorro.
Das
três imagens, porém, nenhuma diz
do
que houve, para meu susto, àquele ano.
O
quinto mês pulou o muro alto do dia
como
só fazem os rapazes, mas logo
pelos
quartos e sala convertia o ar em águas
definitivamente
femininas. Eu
tentava
decifrar. Mas
deitou-se
comigo e, então, já não era isso
nem
seu avesso: a camisa azul despia
azuis
formas que eu não sabia, recém-saídas
de
si mesmas, eu diria, e não sei ter
em
conta senão que eram o que eram. Partiu
do
mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.
Maio,
maravilha sem entendimento,
demora-se
à porta, como o vizinho,
o
carteiro, o cachorro. Porém,
nenhuma
das três imagens, tampouco
este
poema, diz do que houve, para meu susto,
àquele
ano.
Eucanaã Ferraz,
Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
O ATOR
Pensei
em mentir, pensei em fingir,
dizer:
eu tenho um tipo raro de,
estou
à beira,
embora
não aparente. Não aparento?
Providências:
outra cor na pele,
a
mais pálida; outro fundo para a foto:
nada;
os braços caídos, um mel
pungente
entre os dentes.
Quanto
à tristeza
que
a distância de você me faz,
está
perfeita, fica como está: fria,
espantosa,
sete dedos
em
cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem,
para que seu corpo
se
apiedasse do meu e, quem sabe,
sua
compaixão, por um instante,
transmutasse
em boca, a boca em pele,
a
pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
Daria
a isso o nome de felicidade,
e
morreria.
Eu
tenho um tipo raro.
Eucanaã Ferraz,
Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
POR VEZES, NÃO RARO
Por
vezes, não raro,
basta
um gesto, sua borracha,
um
quase nada de alvaiade,
um
rasgo e só.
No
entanto, o carvão
de
certas palavras,
de
alguns nomes,
não
se apaga fácil.
Afogá-lo,
inútil:
o
maralto traz
de
volta cada sílaba
em
sal fortalecida.
Enterrá-lo?
Logo renascerá:
árvore
alta, trigo, praga.
No
fogo, irrompe a letra,
inda
mais sólida liga.
Há
que esperar do esquecimento
o
dente miúdo
e
lento roer a nódoa na língua,
o
travo no peito.
Eucanaã Ferraz,
Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002
UM FIO DE LUZ
Um
fio de luz:
tesoura
que baste
para
tornar nítido
o
que
sobre
a cômoda,
sobre
a mesa:
um
lápis, uma pera,
um
cálice,
que
nossos olhos
podem
anotar
sem
complicação,
sem
gula ou fastio.
Mesmo
da morte a repentina
ternura,
se vista de tal modo:
num
vaso, haste, pétala
que
cede.
Sobre
a cômoda, sobre a mesa,
belezas
que um nosso gesto
pode
anexar ao peito
sem
grande peso.
Ou,
ainda, o peso nenhum
de
quando nenhum atavio:
tábua
sem
nada em cima.
Eucanaã Ferraz, Dessassombro.
Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002, p. 23
POESIA E SOBREVIVÊNCIA
A imagem
de abertura do livro Desassombro é de um fio de luz que penetra o espaço
íntimo da casa, recortando sutilmente essa penumbra até evidenciar, sobre a
mesa, coisas tão comuns como “um lápis, uma pera, / um cálice”. Objetos de uso
cotidiano, frutas que apodrecem; coisas que qualquer pessoa poderia ter em casa
e que revelam a medida das nossas necessidades: escrever, comer, embriagar-se.
Nesse espaço íntimo e assombrado pela consciência da finitude, uma luz tênue
traz a possibilidade de reencantamento pelas coisas simples, pequenas e belas
que foram deixadas sobre a mesa. Por outro lado, essa alegria implica
simultaneamente no reconhecimento da morte, do fundo trágico da existência.
Ao notar
a beleza das coisas que podemos sentir sem grande peso, como esses objetos
domésticos, o homem toma consciência de que o seu destino é perdê-los. O
enfrentamento com a morte parte de reconhecer que o peso, afinal, será
suprimido por uma leveza que não cabe aos vivos. Esse “peso nenhum / de quando
nenhum atavio: / tábua / sem nada em cima”, que se refere ao fim das tensões
entre luz e sombra, alegria e penar. É especialmente notável a forma como o
poeta consegue atenuar a tragicidade da morte ao afirmá-la enquanto ausência de
peso, ausência de imagem. Uma leitura pouco atenta poderia inclusive confundir
o sentido da estrofe final com a anterior, onde o que se afirma, ao contrário,
é possibilidade da beleza e da alegria – apesar de toda precariedade. Os versos
curtos e sutilmente recortados – que estabelecem um vínculo entre a forma do
poema e a imagem do fio de luz – ajudam a suavizar o aspecto trágico que serve
de fundo à alegria; a sombra que permite o aparecimento das pequenas
cintilações.
No
capítulo anterior, havíamos percebido alguns contrastes semelhantes em um poema
de Eugénio Montale citado por Ítalo Calvino, assim como nos pequenos lucciole
de origem luciferina descobertos em Bolonha por Pasolini. No entanto, como
vimos, esses contrastes são agora articulados em um ambiente íntimo, longe da
luz abrasadora dos postes públicos, nessa zona de apagamento onde o desejo pode
se refazer em silêncio. No poema, a certeza do fim não é substituída por um
otimismo ingênuo, mas também não dissipa o presente em pura negatividade. O
permanente contato entre luz e sombra é não apenas necessário, como concerne
apenas ao reino dos vivos, reino da imanência. Como afirma Silviano Santiago em
seu texto “Um fio de luz: o poema, a esperança”, que apresenta o livro:
Entre assombros e desassombros
(vale dizer: silêncio e palavra, entre trevas e luz, entre temor e coragem,
entre descanso e trabalho, entre decadência e trabalho, entre o belo e o feio,
etc.) se recheia o livro de poemas que estamos lendo. (SANTIAGO, 2002, p.11)
O mundo
de que fala Eucanaã Ferraz não é desvinculado de seu entorno, nem da
necessidade de trabalhar e cumprir os ritos do contemporâneo. O homem que
experimenta a beleza ínfima dos objetos iluminados é o mesmo que se vê obrigado
a reconhecer na finitude o fundamento da alegria. Mas “mesmo da morte a
repentina / ternura, se vista de tal modo: / num vaso, haste, pétala / que
cede” (FERRAZ, 2002, p.23). A experiência da morte só se torna fundamental na
medida em que permite perceber os clarões que iluminam nossa precariedade; no
peso da nossa condição trágica, alguns frágeis atavios.
Ler mais em: Sobrevivência da delicadeza na contemporaneidade e a poesia de
Eucanaã Ferraz, Marcelo Mello. Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2014.
CARREIRO, José. “Eucanaã
Ferraz”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/eucanaa-ferraz.html
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