sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Eucanaã Ferraz

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eucana%C3%A3_Ferraz

 

CALENDÁRIO

 

Maio, de hábito, demora-se à porta,

como o vizinho, o carteiro, o cachorro.

Das três imagens, porém, nenhuma diz

 

do que houve, para meu susto, àquele ano.

O quinto mês pulou o muro alto do dia

como só fazem os rapazes, mas logo

 

pelos quartos e sala convertia o ar em águas

definitivamente femininas. Eu

tentava decifrar. Mas

 

deitou-se comigo e, então, já não era isso

nem seu avesso: a camisa azul despia

azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

 

de si mesmas, eu diria, e não sei ter

em conta senão que eram o que eram. Partiu

do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

 

Maio, maravilha sem entendimento,

demora-se à porta, como o vizinho,

o carteiro, o cachorro. Porém,

 

nenhuma das três imagens, tampouco

este poema, diz do que houve, para meu susto,

àquele ano.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

O ATOR

 

Pensei em mentir, pensei em fingir,

dizer: eu tenho um tipo raro de,

estou à beira,

 

embora não aparente. Não aparento?

Providências: outra cor na pele,

a mais pálida; outro fundo para a foto:

 

nada; os braços caídos, um mel

pungente entre os dentes.

Quanto à tristeza

 

que a distância de você me faz,

está perfeita, fica como está: fria,

espantosa, sete dedos

 

em cada mão. Tudo para que seus olhos

vissem, para que seu corpo

se apiedasse do meu e, quem sabe,

 

sua compaixão, por um instante,

transmutasse em boca, a boca em pele,

a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

 

Daria a isso o nome de felicidade,

e morreria.

Eu tenho um tipo raro.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

POR VEZES, NÃO RARO

 

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.

 

No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.

 

Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.

 

Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.

 

Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002

 

UM FIO DE LUZ

 

Um fio de luz:

tesoura que baste

para tornar nítido

o que

 

sobre a cômoda,

sobre a mesa:

um lápis, uma pera,

um cálice,

 

que nossos olhos

podem anotar

sem complicação,

sem gula ou fastio.

 

Mesmo da morte a repentina

ternura, se vista de tal modo:

num vaso, haste, pétala

que cede.

 

Sobre a cômoda, sobre a mesa,

belezas que um nosso gesto

pode anexar ao peito

sem grande peso.

 

Ou, ainda, o peso nenhum

de quando nenhum atavio:

tábua

sem nada em cima.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002, p. 23

 

 

POESIA E SOBREVIVÊNCIA

A imagem de abertura do livro Desassombro é de um fio de luz que penetra o espaço íntimo da casa, recortando sutilmente essa penumbra até evidenciar, sobre a mesa, coisas tão comuns como “um lápis, uma pera, / um cálice”. Objetos de uso cotidiano, frutas que apodrecem; coisas que qualquer pessoa poderia ter em casa e que revelam a medida das nossas necessidades: escrever, comer, embriagar-se. Nesse espaço íntimo e assombrado pela consciência da finitude, uma luz tênue traz a possibilidade de reencantamento pelas coisas simples, pequenas e belas que foram deixadas sobre a mesa. Por outro lado, essa alegria implica simultaneamente no reconhecimento da morte, do fundo trágico da existência.

Ao notar a beleza das coisas que podemos sentir sem grande peso, como esses objetos domésticos, o homem toma consciência de que o seu destino é perdê-los. O enfrentamento com a morte parte de reconhecer que o peso, afinal, será suprimido por uma leveza que não cabe aos vivos. Esse “peso nenhum / de quando nenhum atavio: / tábua / sem nada em cima”, que se refere ao fim das tensões entre luz e sombra, alegria e penar. É especialmente notável a forma como o poeta consegue atenuar a tragicidade da morte ao afirmá-la enquanto ausência de peso, ausência de imagem. Uma leitura pouco atenta poderia inclusive confundir o sentido da estrofe final com a anterior, onde o que se afirma, ao contrário, é possibilidade da beleza e da alegria – apesar de toda precariedade. Os versos curtos e sutilmente recortados – que estabelecem um vínculo entre a forma do poema e a imagem do fio de luz – ajudam a suavizar o aspecto trágico que serve de fundo à alegria; a sombra que permite o aparecimento das pequenas cintilações.

No capítulo anterior, havíamos percebido alguns contrastes semelhantes em um poema de Eugénio Montale citado por Ítalo Calvino, assim como nos pequenos lucciole de origem luciferina descobertos em Bolonha por Pasolini. No entanto, como vimos, esses contrastes são agora articulados em um ambiente íntimo, longe da luz abrasadora dos postes públicos, nessa zona de apagamento onde o desejo pode se refazer em silêncio. No poema, a certeza do fim não é substituída por um otimismo ingênuo, mas também não dissipa o presente em pura negatividade. O permanente contato entre luz e sombra é não apenas necessário, como concerne apenas ao reino dos vivos, reino da imanência. Como afirma Silviano Santiago em seu texto “Um fio de luz: o poema, a esperança”, que apresenta o livro:

 

Entre assombros e desassombros (vale dizer: silêncio e palavra, entre trevas e luz, entre temor e coragem, entre descanso e trabalho, entre decadência e trabalho, entre o belo e o feio, etc.) se recheia o livro de poemas que estamos lendo. (SANTIAGO, 2002, p.11)

 

O mundo de que fala Eucanaã Ferraz não é desvinculado de seu entorno, nem da necessidade de trabalhar e cumprir os ritos do contemporâneo. O homem que experimenta a beleza ínfima dos objetos iluminados é o mesmo que se vê obrigado a reconhecer na finitude o fundamento da alegria. Mas “mesmo da morte a repentina / ternura, se vista de tal modo: / num vaso, haste, pétala / que cede” (FERRAZ, 2002, p.23). A experiência da morte só se torna fundamental na medida em que permite perceber os clarões que iluminam nossa precariedade; no peso da nossa condição trágica, alguns frágeis atavios.

 

Ler mais em: Sobrevivência da delicadeza na contemporaneidade e a poesia de Eucanaã Ferraz, Marcelo Mello. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2014.




CARREIRO, José. “Eucanaã Ferraz”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/eucanaa-ferraz.html



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