HORIZONTE VAZIO
Horizonte vazio em que nada resta
Dessa fabulosa festa
Que um dia te iluminou.
As tuas linhas outrora foram fundas e vastas,
Mas hoje estão vazias e gastas
E foi o meu desejo que as gastou.
Era do pinhal verde que descia
A noite bailando em silenciosos passos,
E naquele pedaço de mar ao longe ardia
O chamamento infinito dos espaços.
Nos areais cantava a claridade,
E cada pinheiro continha
No irreprimível subir da sua linha
A explicação de toda a heroicidade.
Horizonte vazio, esqueleto do meu sonho.
Árvore morta sem fruto,
Em teu redor deponho
A solidão, o caos e o luto.
Sophia de Mello Breyner Andresen
DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947,
Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1974, Lisboa,
Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial
Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de
Gastão Cruz.
Elabore um comentário do
texto que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- traços caracterizadores do
espaço representado;
- importância do vocabulário
relativo a «festa»;
- aspetos formais e recursos
estilísticos relevantes;
- valor simbólico de «Horizonte
vazio».
Explicitação de cenários de resposta
Traços caracterizadores do espaço representado
O espaço representado é o do
«Horizonte» do sujeito poético, caracterizado fundamentalmente pelos seguintes
traços:
- presença de elementos de uma
paisagem de beira-mar («pinhal verde», «naquele pedaço de mar», «areais»);
- associação a dois momentos
marcadamente distintos: o presente (dado pelos sentidos) e o passado (evocado
pela memória);
- vazio, finitude e esterilidade
(«Horizonte vazio», «linhas [...] vazias e gastas», «Árvore morta sem fruto»),
traços que marcam esse lugar no presente, na exata medida em que esse mesmo
lugar fora, no passado, cenário de um tempo (irremediavelmente perdido) de
festa e de sonho («esqueleto do meu sonho»);
- …
Importância do vocabulário relativo a «festa»
A terceira e a quarta estrofes
evocam a «fabulosa festa» de que o «Horizonte» se apresenta «hoje» esvaziado.
As palavras-chave dessa evocação pertencem ao léxico de «festa» - «bailando»,
«passos» de baile, «cantava» - e, referindo-se a «noite» e a «Claridade»,
encenam uma «festa» de luz e de movimento, de mágicos silêncios e de canto, que
atinge a plenitude «naquele pedaço de mar ao longe», onde «ardia/ O chamamento
infinito dos espaços».
A intensidade desta evocação,
convocada desde a primeira estrofe e expandindo-se nas estrofes centrais do
poema, confere ao passado perdido a dimensão de um tempo eufórico, de total
positividade para o «eu».
Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes
De entre os recursos estilísticos
presentes no texto, destacam-se os seguintes:
- a repetição «Horizonte vazio»
(vv. 1 e 15), presente no início da primeira e da última estrofes e, ainda, no
título, constitui o esvaziamento do «Horizonte» em polo semântico do poema;
- a apóstrofe «Horizonte vazio»
(v. 1), consagrando como um «tu» esse horizonte, marca a sua importância para o
«eu»;
- as personificações de «noite» e
de «claridade» - a «noite», descendo do «pinhal verde», «bailando em
silenciosos passos»; a «claridade», cantando -, com um forte e sugestivo efeito
descritivo, expressam a ideia de encantamento;
- a sinestesia do canto associado
à «claridade» («cantava a claridade») intensifica, pelo carácter musical da
luz, a própria ideia de «festa» luminosa;
- a antítese «noite» (v. 8) /
«claridade» (v. 11) realça a intensidade da «festa» e o seu carácter de tempo
pleno;
- as metáforas «esqueleto do meu
sonho» e «Árvore morta sem fruto», referentes a «Horizonte vazio», acentuam a
negatividade atual deste espaço, conotando-o com a morte e a esterilidade;
- …
Quanto aos aspetos formais,
salientam-se:
- estrutura estrófica: dois
tercetos e três quadras;
- estrutura rimática rica e
variada, mas irregular: rimas emparelhadas, interpoladas e cruzadas, com o
esquema A/A/B C/C/B D/E/D/E F/G/G/F H/l/H/I;
- estrutura métrica: versos
irregulares ou livres (variando entre seis e catorze sílabas);
- …
Nota - Para a atribuição da
totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada
suficiente a apresentação de quatro elementos, distribuindo-se obrigatoriamente
pelas duas categorias, recursos estilísticos e aspetos formais.
Valor simbólico de «Horizonte vazio»
O «Horizonte vazio» representa
simbolicamente o presente decetivo do «eu», figurando-o como um cenário de
devastação e de morte (cf. vv. 1, 5, 15, 16 e 18). Nos tempos de «outrora»,
esse mesmo «Horizonte» fora, pelo contrário, espaço de «festa», de música, de
abertura, de «claridade» (cf. vv. 2-3, 8, 10, 11 ), e é ao convocar a memória
de uma vida de plenitude, de harmonia e de «heroicidade» - vida hoje perdida -
que o «Horizonte» se torna, no presente, a representação espacial do vazio e da
ausência, da negatividade e da solidão.
(Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de
29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138
e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE
[IAVE], 2003, 2.ª fase)
Análise do poema “Horizonte
Vazio”, de Sophia Andresen
Vamos a “Horizonte Vazio”, um belo poema de
Dia do mar que […] apresenta,
a partir do título, uma decidida impressão de vacuidade.
Como o “Horizonte” significa uma perspetiva
espacial infinita, ao defini-lo como “vazio”, Sophia aumenta de maneira
considerável o sentimento de oco, de vazio. O próprio “infinito” é
expressamente mencionado, na terceira estrofe, relacionado ao “mar”, que, por
sua vez, não é visto como um todo, mas sim como “um pedaço de mar”, colocado
num ponto de vista distante do sujeito, “ao longe”. Porém, mesmo “longe”, o
“mar” se destaca, pois “ardia”, numa singular operação imagística, que combina
a água ao fogo, sugerindo, talvez, o sol refletindo-se sobre a superfície do
oceano.
O sujeito se dirige ao “Horizonte”,
colocado no papel de interlocutor, quase como se estivesse frente a um espelho.
Na verdade, a sensação do oco parece estar mais dentro do eu, já que, como
lemos na última estrofe, o “Horizonte vazio” representa o “esqueleto do meu
sonho”, ou seja, um “sonho” já consumido e morto, do qual só sobrou a ossatura.
Já na primeira estrofe, o “nada resta”
evidencia o sentimento de falta, de algo irrecuperável, que se perdeu lá atrás,
num passado longínquo, sublinhado por termos vagos, como “um dia” e “outrora”.
O sentido da perda, da carência, é marcado, também, pelos adjetivos “vazias e
gastas” da segunda estrofe, colocados em contraponto a “fundas e vastas”. Um
dos adjetivos, inclusive, volta, em sua forma verbal, “gastou” (trata-se, a
propósito, do mesmo verbo utilizado no poema anterior), no último verso da
estrofe, no qual o sujeito assume um certo sentimento de culpa, por ter sido o
causador, através do “meu desejo”, do desgaste das “linhas”. Essas “linhas” parecem
referir-se ao “Horizonte”; no entanto, como estamos acostumados à linha
do horizonte, no singular, o emprego do plural pode
significar uma antropomorfização. Ou seja, as “linhas” seriam as linhas
do rosto, talvez do próprio sujeito, agora envelhecidas,
ou “gastas”, devido ao decorrer do tempo.
A memória do sujeito recorda um tempo que
passou, sem dúvida mais bem-sucedido (nos poemas de Sophia, o passado surge
sempre venturoso), pois ligado a uma “fabulosa festa”, cujos prováveis faustos
são acentuados pela aliteração. Trata-se de um passado irrecuperável, com a
irreversibilidade do tempo reforçada, na última estrofe, não só pelo
“esqueleto”, como também pela “Árvore morta sem fruto”, que contrasta
intensamente com o “pinhal verde” mencionado antes.
O último verso associa, de maneira
dolorosa, a “solidão” vivida pelo sujeito ao “caos” e ao “luto”, ligando o
estado de isolamento do sujeito aos sentimentos de confusão e perda, provocados
pela sensação de finitude.
O passado teria sido uma época luminosa,
plena, evocada por passagens como “um dia te iluminou” e “Nos areais cantava a
claridade”. Mas uma ocasião do passado, que poderia ter apresentado um momento
de coragem, a “heroicidade” referida na quarta estrofe, associa essa bravura ao
“pinheiro”, árvore de porte altivo, mas usualmente encontrada nos cemitérios.
“Horizonte Vazio” insiste nas imagens
inesperadas. A “noite” que, em outros poemas de Sophia, encontramos voltada
para a tristeza, a escuridão, a morte, o fim, aqui desce
“bailando em silenciosos passos”, numa
passagem na qual o poema volta-se para ele mesmo, pois, através do “bailando”,
reporta-se à “festa” da primeira estrofe.
AZEVEDO, Luiz Carlos de
Moura. O quarto, figuração do intimismo na poesia de Sophia de Mello
Breyner Andresen [doi:10.11606/D.8.2007.tde-07022008-112137]. São Paulo:
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
2007. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa.
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- Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17
“Horizonte
vazio, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-18.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/horizonte-vazio-sophia-andresen.html
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