terça-feira, 18 de outubro de 2022

Horizonte vazio, Sophia Andresen

 

 

HORIZONTE VAZIO

 

Horizonte vazio em que nada resta

Dessa fabulosa festa

Que um dia te iluminou.

 

As tuas linhas outrora foram fundas e vastas,

Mas hoje estão vazias e gastas

E foi o meu desejo que as gastou.

 

Era do pinhal verde que descia

A noite bailando em silenciosos passos,

E naquele pedaço de mar ao longe ardia

O chamamento infinito dos espaços.

 

Nos areais cantava a claridade,

E cada pinheiro continha

No irreprimível subir da sua linha

A explicação de toda a heroicidade.

 

Horizonte vazio, esqueleto do meu sonho.

Árvore morta sem fruto,

Em teu redor deponho

A solidão, o caos e o luto.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1974, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gastão Cruz.

 

Elabore um comentário do texto que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- traços caracterizadores do espaço representado;

- importância do vocabulário relativo a «festa»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- valor simbólico de «Horizonte vazio».

 

Explicitação de cenários de resposta

Traços caracterizadores do espaço representado

O espaço representado é o do «Horizonte» do sujeito poético, caracterizado fundamentalmente pelos seguintes traços:

- presença de elementos de uma paisagem de beira-mar («pinhal verde», «naquele pedaço de mar», «areais»);

- associação a dois momentos marcadamente distintos: o presente (dado pelos sentidos) e o passado (evocado pela memória);

- vazio, finitude e esterilidade («Horizonte vazio», «linhas [...] vazias e gastas», «Árvore morta sem fruto»), traços que marcam esse lugar no presente, na exata medida em que esse mesmo lugar fora, no passado, cenário de um tempo (irremediavelmente perdido) de festa e de sonho («esqueleto do meu sonho»);

- …

 

Importância do vocabulário relativo a «festa»

A terceira e a quarta estrofes evocam a «fabulosa festa» de que o «Horizonte» se apresenta «hoje» esvaziado. As palavras-chave dessa evocação pertencem ao léxico de «festa» - «bailando», «passos» de baile, «cantava» - e, referindo-se a «noite» e a «Claridade», encenam uma «festa» de luz e de movimento, de mágicos silêncios e de canto, que atinge a plenitude «naquele pedaço de mar ao longe», onde «ardia/ O chamamento infinito dos espaços».

A intensidade desta evocação, convocada desde a primeira estrofe e expandindo-se nas estrofes centrais do poema, confere ao passado perdido a dimensão de um tempo eufórico, de total positividade para o «eu».

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes no texto, destacam-se os seguintes:

- a repetição «Horizonte vazio» (vv. 1 e 15), presente no início da primeira e da última estrofes e, ainda, no título, constitui o esvaziamento do «Horizonte» em polo semântico do poema;

- a apóstrofe «Horizonte vazio» (v. 1), consagrando como um «tu» esse horizonte, marca a sua importância para o «eu»;

- as personificações de «noite» e de «claridade» - a «noite», descendo do «pinhal verde», «bailando em silenciosos passos»; a «claridade», cantando -, com um forte e sugestivo efeito descritivo, expressam a ideia de encantamento;

- a sinestesia do canto associado à «claridade» («cantava a claridade») intensifica, pelo carácter musical da luz, a própria ideia de «festa» luminosa;

- a antítese «noite» (v. 8) / «claridade» (v. 11) realça a intensidade da «festa» e o seu carácter de tempo pleno;

- as metáforas «esqueleto do meu sonho» e «Árvore morta sem fruto», referentes a «Horizonte vazio», acentuam a negatividade atual deste espaço, conotando-o com a morte e a esterilidade;

- …

 

Quanto aos aspetos formais, salientam-se:

- estrutura estrófica: dois tercetos e três quadras;

- estrutura rimática rica e variada, mas irregular: rimas emparelhadas, interpoladas e cruzadas, com o esquema A/A/B C/C/B D/E/D/E F/G/G/F H/l/H/I;

- estrutura métrica: versos irregulares ou livres (variando entre seis e catorze sílabas);

- …

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, distribuindo-se obrigatoriamente pelas duas categorias, recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Valor simbólico de «Horizonte vazio»

O «Horizonte vazio» representa simbolicamente o presente decetivo do «eu», figurando-o como um cenário de devastação e de morte (cf. vv. 1, 5, 15, 16 e 18). Nos tempos de «outrora», esse mesmo «Horizonte» fora, pelo contrário, espaço de «festa», de música, de abertura, de «claridade» (cf. vv. 2-3, 8, 10, 11 ), e é ao convocar a memória de uma vida de plenitude, de harmonia e de «heroicidade» - vida hoje perdida - que o «Horizonte» se torna, no presente, a representação espacial do vazio e da ausência, da negatividade e da solidão.

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2003, 2.ª fase)

 



Análise do poema “Horizonte Vazio”, de Sophia Andresen

Vamos a “Horizonte Vazio”, um belo poema de Dia do mar que […] apresenta, a partir do título, uma decidida impressão de vacuidade.

Como o “Horizonte” significa uma perspetiva espacial infinita, ao defini-lo como “vazio”, Sophia aumenta de maneira considerável o sentimento de oco, de vazio. O próprio “infinito” é expressamente mencionado, na terceira estrofe, relacionado ao “mar”, que, por sua vez, não é visto como um todo, mas sim como “um pedaço de mar”, colocado num ponto de vista distante do sujeito, “ao longe”. Porém, mesmo “longe”, o “mar” se destaca, pois “ardia”, numa singular operação imagística, que combina a água ao fogo, sugerindo, talvez, o sol refletindo-se sobre a superfície do oceano.

O sujeito se dirige ao “Horizonte”, colocado no papel de interlocutor, quase como se estivesse frente a um espelho. Na verdade, a sensação do oco parece estar mais dentro do eu, já que, como lemos na última estrofe, o “Horizonte vazio” representa o “esqueleto do meu sonho”, ou seja, um “sonho” já consumido e morto, do qual só sobrou a ossatura.

Já na primeira estrofe, o “nada resta” evidencia o sentimento de falta, de algo irrecuperável, que se perdeu lá atrás, num passado longínquo, sublinhado por termos vagos, como “um dia” e “outrora”. O sentido da perda, da carência, é marcado, também, pelos adjetivos “vazias e gastas” da segunda estrofe, colocados em contraponto a “fundas e vastas”. Um dos adjetivos, inclusive, volta, em sua forma verbal, “gastou” (trata-se, a propósito, do mesmo verbo utilizado no poema anterior), no último verso da estrofe, no qual o sujeito assume um certo sentimento de culpa, por ter sido o causador, através do “meu desejo”, do desgaste das “linhas”. Essas “linhas” parecem referir-se ao “Horizonte”; no entanto, como estamos acostumados à linha do horizonte, no singular, o emprego do plural pode significar uma antropomorfização. Ou seja, as “linhas” seriam as linhas do rosto, talvez do próprio sujeito, agora envelhecidas, ou “gastas”, devido ao decorrer do tempo.

A memória do sujeito recorda um tempo que passou, sem dúvida mais bem-sucedido (nos poemas de Sophia, o passado surge sempre venturoso), pois ligado a uma “fabulosa festa”, cujos prováveis faustos são acentuados pela aliteração. Trata-se de um passado irrecuperável, com a irreversibilidade do tempo reforçada, na última estrofe, não só pelo “esqueleto”, como também pela “Árvore morta sem fruto”, que contrasta intensamente com o “pinhal verde” mencionado antes.

O último verso associa, de maneira dolorosa, a “solidão” vivida pelo sujeito ao “caos” e ao “luto”, ligando o estado de isolamento do sujeito aos sentimentos de confusão e perda, provocados pela sensação de finitude.

O passado teria sido uma época luminosa, plena, evocada por passagens como “um dia te iluminou” e “Nos areais cantava a claridade”. Mas uma ocasião do passado, que poderia ter apresentado um momento de coragem, a “heroicidade” referida na quarta estrofe, associa essa bravura ao “pinheiro”, árvore de porte altivo, mas usualmente encontrada nos cemitérios.

“Horizonte Vazio” insiste nas imagens inesperadas. A “noite” que, em outros poemas de Sophia, encontramos voltada para a tristeza, a escuridão, a morte, o fim, aqui desce “bailando em silenciosos passos”, numa passagem na qual o poema volta-se para ele mesmo, pois, através do “bailando”, reporta-se à “festa” da primeira estrofe.

 

AZEVEDO, Luiz Carlos de Moura. O quarto, figuração do intimismo na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen [doi:10.11606/D.8.2007.tde-07022008-112137]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa.

 

 

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Horizonte vazio, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-18. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/horizonte-vazio-sophia-andresen.html


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