sábado, 5 de julho de 2025

Espelho inicial, Maria Teresa Horta

 A IDEIA DO PRIMEIRO LIVRO

 

Sentia-se livre. Embora casada, tinha a sua vida. Estava implícito que seria assim. Raul Boaventura trabalhava na SONAPE, Teresa dispunha dos seus dias. A faculdade era uma novidade e um espaço feminino. Os rapazes, quando iam para aqueles lados, sentiam-se intimidados com tantas mulheres. Teresa escrevia de lápis na mão e caderno no colo. Escrevia em qualquer lugar, mal o poema lhe acontecia. Não era uma boa dona de casa, odiava o tempo que se perdia em tarefas sem nexo. Dirá que não tem vocação para a lida da casa. O marido pouco se importava com isso. Estava apaixonado, Teresa podia tudo, não havia qualquer problema. Gostava dos poemas que ela escrevia e o orgulho neles era tanto que os levou ao seu chefe, também ele adepto das coisas escritas e da literatura. O superior hierárquico de Raul Boaventura não tinha a menor dúvida – aqueles poemas precisavam de ser publicados: «O que está a sua mulher a fazer? Devia publicar!» E perguntou: «A sua mulher não tem um poeta de quem goste»

Raul falou em António Ramos Rosa (1924-2013) e o chefe foi categórico: urgia enviar os poemas ao autor. Para ele dizer de sua justiça, para que os poemas fossem lidos por outras pessoas, pelo maior número de pessoas possível. O marido ficou orgulhoso e estupefacto. Acreditava no talento da mulher, mas não esperava tanta euforia. Aconselhou Teresa a entrar em contacto com António Ramos Rosa. À época, o poeta residia em Faro, no Algarve, na cidade onde nasceu.

Com alguma falta de jeito, Teresa dispõe-se a escrever a António Ramos Rosa, começando por pedir desculpa pelo abuso. Mandou alguns poemas e deixou o número de telefone, para contacto posterior, e pensou que o mais certo era nunca obter resposta. Por um lado, desejava saber se o que escrevia possuía algum valor. Por outro, sabia, no seu íntimo, que as suas palavras se alinhavam de forma distinta, reflexo da jovem mulher que era e de quem tinha sido na sua infância dorida. Dois dias depois de enviar a carta, o telefone tocou.

Não será de somenos afirmar que o mundo de Teresa mudou naqueles segundos em que se dirigia ao telefone preto, sossegado em cima da mesinha. Não esperava aquela chamada. Talvez tenha pensado que seria uma das irmãs, Chilinha ou Rosarinho. Corria o mês de Agosto. Estava calor e era já o meio da tarde. Estava sozinha em casa. Teresa atendeu a chamada e ouviu a pergunta e a afirmação: «Maria Teresa Horta? Aqui António Ramos Rosa.»

Podemos imaginar as suas pernas a tremer, o estômago a encolher-se, as mãos a suar. Teresa viveu o momento com uma alegria imensa. O poeta dizia-lhe que tinha obrigatoriamente de publicar e que, para mais, existia uma ressonância nos seus poemas que a aproximam de outros poetas portugueses. Havia ali um espírito, uma família, garantia-lhe. «Temos de publicar este seu livro, Teresa!» Ela agradeceu, corou, sorriu de prazer, sentiu-se afogueada de contentamento. Era o seu corpo a reagir ao imenso prazer que sentia por ouvir aquelas palavras.

Ao lado de António Ramos Rosa estava outro poeta, Gastão Cruz (1941-2022), que pedia para falar com ela e lhe disse, ao telefone: «Gosto muito dos poemas, Teresa.» Adoptaram-na à distância e, para garantir esse elo, deram-lhe o número de telefone de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), então namorada de Gastão Cruz. Exortaram Teresa a procurá-la e, acrescentaram, era urgente encontrarem-se também com Luiza Neto Jorge (1939-1989). Todos pertenciam a uma família. Como poetas de uma geração, reconheciam-se e ressoavam uns nos outros. Gastão Cruz afirmou, ainda ao telefone: «Consigo, Teresa, isto parece um grupo. O que acha se publicarmos juntos?» Inesperadamente, Teresa era acolhida. Elogiada. Diziam-lhe que pertencia. Fizeram-na poetisa nesse mesmo instante – não para ela, mas para o mundo.

Foi invadida por uma profunda alegria. De surpresa e de confirmação. Sem demoras, telefonou a Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz já a tinha avisado: «Temos nova poetisa.» Combinaram encontrar-se na Universidade de Lisboa, que ambas frequentavam intermitentemente. A empatia foi imediata, proporcionou-se um certo reconhecimento na outra, de quem eram e do que escreviam. Partilharam alguns poemas, reconheceram-se. Nunca mais deixariam de se dar, mesmo que a vida as afastasse, a distância física era quase nada comparada com o que as unia. Na faculdade, Fiama e Teresa tornaram-se inseparáveis. Sofriam do mesmo mal. Sempre que calhava terem um teste, um exame, fosse a que disciplina fosse, ambas tinham mostras súbitas de febre. Chegavam aos 38, 39 graus. Era o corpo a negar-se a cumprir; a cabeça a pedir outros rumos. Não eram felizes ali, queriam terminar os estudos e, ao mesmo tempo, dispensavam aquele martírio de estudar coisas pouco apelativas, porque ambas sabiam qual era o destino, não havia margem para dúvidas: escrever, descobrir-se na escrita e ensaiar o avesso da vida, através da palavra. Eram – são – poetisas. O arrastar de cadeiras e trabalhos, exames e outras agruras académicas trouxe o cansaço e ambas acabaram por abandonar a faculdade no terceiro de cinco anos de curso.

Teresa instalou-se no maravilhamento. Foram dias de um abismo consolador. Ramos Rosa tornou a falar-lhe, no sentido de organizar um livro e de o enviar para Faro. Ele trataria de tudo para o imprimir, seria mais barato do que imprimir em Lisboa. Ela assim fez. Escolheu alguns poemas, hesitou, escreveu novos poemas, fez opções e começou um processo de construção do primeiro livro que usará em todos os outros: escrita à mão, papéis acumulados, a este poema segue-se este, depois aquele. Pára, recomeça, muda de ideias. Sem hesitação, nomeou o seu primeiro livro: Espelho Inicial. Por esses dias, o pintor Manuel Baptista (1936) ainda não partira para a capital francesa, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian; encontrava-se a passar férias em Faro, a terra que também o viu crescer. António Ramos Rosa desafiou-o: «Não farias tu a capa do primeiro livro da Teresa Horta?» O futuro artista aceitou e concebeu a capa que, até aos dias de hoje, Teresa tem como a capa perfeita.

 

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António Ramos Rosa tratou de tudo, tal como disse que faria. Teresa quase deixou de respirar quando, por fim, lhe chegou a casa uma caixa com ripas de madeira, bem pregadas. Estava ali o seu primeiro livro. E ela não conseguia vê-lo, apenas vislumbrar o que lá vinha, pelas gretas da madeira. Não tinha força física para abrir a caixa e, apesar de múltiplos esforços, teve de ter ajuda para abrir a caixa e pegar no seu primeiro livro. «Deu-se tudo ao mesmo tempo, foi uma coisa das deusas, houve interferência! Foi uma coisa natural, sem entraves.»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 129-133.

 

 

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