A IDEIA DO PRIMEIRO LIVRO
Sentia-se
livre. Embora casada, tinha a sua vida. Estava implícito que seria assim. Raul
Boaventura trabalhava na SONAPE, Teresa dispunha dos seus dias. A faculdade era
uma novidade e um espaço feminino. Os rapazes, quando iam para aqueles lados,
sentiam-se intimidados com tantas mulheres. Teresa escrevia de lápis na mão e
caderno no colo. Escrevia em qualquer lugar, mal o poema lhe acontecia. Não era
uma boa dona de casa, odiava o tempo que se perdia em tarefas sem nexo. Dirá que
não tem vocação para a lida da casa. O marido pouco se importava com isso.
Estava apaixonado, Teresa podia tudo, não havia qualquer problema. Gostava dos
poemas que ela escrevia e o orgulho neles era tanto que os levou ao seu chefe,
também ele adepto das coisas escritas e da literatura. O superior hierárquico
de Raul Boaventura não tinha a menor dúvida – aqueles poemas precisavam de ser
publicados: «O que está a sua mulher a fazer? Devia publicar!» E perguntou: «A
sua mulher não tem um poeta de quem goste»
Raul
falou em António Ramos Rosa (1924-2013) e o chefe foi categórico: urgia enviar
os poemas ao autor. Para ele dizer de sua justiça, para que os poemas fossem
lidos por outras pessoas, pelo maior número de pessoas possível. O marido ficou
orgulhoso e estupefacto. Acreditava no talento da mulher, mas não esperava
tanta euforia. Aconselhou Teresa a entrar em contacto com António Ramos Rosa. À
época, o poeta residia em Faro, no Algarve, na cidade onde nasceu.
Com
alguma falta de jeito, Teresa dispõe-se a escrever a António Ramos Rosa,
começando por pedir desculpa pelo abuso. Mandou alguns poemas e deixou o número
de telefone, para contacto posterior, e pensou que o mais certo era nunca obter
resposta. Por um lado, desejava saber se o que escrevia possuía algum valor.
Por outro, sabia, no seu íntimo, que as suas palavras se alinhavam de forma
distinta, reflexo da jovem mulher que era e de quem tinha sido na sua infância
dorida. Dois dias depois de enviar a carta, o telefone tocou.
Não
será de somenos afirmar que o mundo de Teresa mudou naqueles segundos em que se
dirigia ao telefone preto, sossegado em cima da mesinha. Não esperava aquela
chamada. Talvez tenha pensado que seria uma das irmãs, Chilinha ou Rosarinho.
Corria o mês de Agosto. Estava calor e era já o meio da tarde. Estava sozinha
em casa. Teresa atendeu a chamada e ouviu a pergunta e a afirmação: «Maria
Teresa Horta? Aqui António Ramos Rosa.»
Podemos
imaginar as suas pernas a tremer, o estômago a encolher-se, as mãos a suar.
Teresa viveu o momento com uma alegria imensa. O poeta dizia-lhe que tinha
obrigatoriamente de publicar e que, para mais, existia uma ressonância nos seus
poemas que a aproximam de outros poetas portugueses. Havia ali um espírito, uma
família, garantia-lhe. «Temos de publicar este seu livro, Teresa!» Ela
agradeceu, corou, sorriu de prazer, sentiu-se afogueada de contentamento. Era o
seu corpo a reagir ao imenso prazer que sentia por ouvir aquelas palavras.
Ao
lado de António Ramos Rosa estava outro poeta, Gastão Cruz (1941-2022), que
pedia para falar com ela e lhe disse, ao telefone: «Gosto muito dos poemas,
Teresa.» Adoptaram-na à distância e, para garantir esse elo, deram-lhe o número
de telefone de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), então namorada de Gastão
Cruz. Exortaram Teresa a procurá-la e, acrescentaram, era urgente
encontrarem-se também com Luiza Neto Jorge (1939-1989). Todos pertenciam a uma família.
Como poetas de uma geração, reconheciam-se e ressoavam uns nos outros. Gastão
Cruz afirmou, ainda ao telefone: «Consigo, Teresa, isto parece um grupo. O que
acha se publicarmos juntos?» Inesperadamente, Teresa era acolhida. Elogiada.
Diziam-lhe que pertencia. Fizeram-na poetisa nesse mesmo instante – não para
ela, mas para o mundo.
Foi
invadida por uma profunda alegria. De surpresa e de confirmação. Sem demoras,
telefonou a Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz já a tinha avisado: «Temos
nova poetisa.» Combinaram encontrar-se na Universidade de Lisboa, que ambas
frequentavam intermitentemente. A empatia foi imediata, proporcionou-se um
certo reconhecimento na outra, de quem eram e do que escreviam. Partilharam
alguns poemas, reconheceram-se. Nunca mais deixariam de se dar, mesmo que a
vida as afastasse, a distância física era quase nada comparada com o que as
unia. Na faculdade, Fiama e Teresa tornaram-se inseparáveis. Sofriam do mesmo
mal. Sempre que calhava terem um teste, um exame, fosse a que disciplina fosse,
ambas tinham mostras súbitas de febre. Chegavam aos 38, 39 graus. Era o corpo a
negar-se a cumprir; a cabeça a pedir outros rumos. Não eram felizes ali,
queriam terminar os estudos e, ao mesmo tempo, dispensavam aquele martírio de
estudar coisas pouco apelativas, porque ambas sabiam qual era o destino, não
havia margem para dúvidas: escrever, descobrir-se na escrita e ensaiar o avesso
da vida, através da palavra. Eram – são – poetisas. O arrastar de cadeiras e
trabalhos, exames e outras agruras académicas trouxe o cansaço e ambas acabaram
por abandonar a faculdade no terceiro de cinco anos de curso.
Teresa
instalou-se no maravilhamento. Foram dias de um abismo consolador. Ramos Rosa
tornou a falar-lhe, no sentido de organizar um livro e de o enviar para Faro.
Ele trataria de tudo para o imprimir, seria mais barato do que imprimir em Lisboa.
Ela assim fez. Escolheu alguns poemas, hesitou, escreveu novos poemas, fez
opções e começou um processo de construção do primeiro livro que usará em todos
os outros: escrita à mão, papéis acumulados, a este poema segue-se este, depois
aquele. Pára, recomeça, muda de ideias. Sem hesitação, nomeou o seu primeiro
livro: Espelho Inicial. Por esses dias, o pintor Manuel Baptista (1936)
ainda não partira para a capital francesa, com uma bolsa da Fundação Calouste
Gulbenkian; encontrava-se a passar férias em Faro, a terra que também o viu
crescer. António Ramos Rosa desafiou-o: «Não farias tu a capa do primeiro livro
da Teresa Horta?» O futuro artista aceitou e concebeu a capa que, até aos dias
de hoje, Teresa tem como a capa perfeita.
![]() |
| https://www.biddingleiloes.pt/pt/auction/lot/id/44720 |
António
Ramos Rosa tratou de tudo, tal como disse que faria. Teresa quase deixou de
respirar quando, por fim, lhe chegou a casa uma caixa com ripas de madeira, bem
pregadas. Estava ali o seu primeiro livro. E ela não conseguia vê-lo, apenas
vislumbrar o que lá vinha, pelas gretas da madeira. Não tinha força física para
abrir a caixa e, apesar de múltiplos esforços, teve de ter ajuda para abrir a
caixa e pegar no seu primeiro livro. «Deu-se tudo ao mesmo tempo, foi uma coisa
das deusas, houve interferência! Foi uma coisa natural, sem entraves.»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 129-133.


Sem comentários:
Enviar um comentário