A
LÍNGUA DO NHEM
Havia
uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Cecília Meireles,
Ou Isto ou Aquilo, 1964
Questionário
Classifica as afirmações em falsas (F) ou verdadeiras (V). Corrige as falsas.
1. O poema "A Língua do Nhem" é predominantemente descritivo.
2. As primeiras estrofes do poema apresentam a solidão como um problema sem solução.
3. A partir da terceira estrofe, os animais começam a imitar a velhinha, modificando o cenário de solidão.
4. A velhinha permanece triste mesmo com a companhia dos animais.
5. O poema é composto por seis quadras com versos de sete sílabas métricas.
6. A onomatopeia "nhem" é repetida seis vezes em várias estrofes do poema.
7. O uso de diminutivos como “gatinho” no poema expressa afetividade e intimidade.
8. Os artigos definidos e os diminutivos no poema indicam a proximidade e importância da relação entre a velhinha e o gato.
9. A onomatopeia “nhem” no poema representa a fala dos jovens.
10. Cecília Meireles utiliza os animais no poema para destacar a falta de comunicação e o descaso com os idosos.
11. Termos como “aborrecida”, “sozinha” e “ninguém” no poema reforçam a temática da solidão.
12. O poema não utiliza a personificação como recurso estilístico.
13. A repetição de sons e rimas no poema não tem importância estilística.
14. O poema apresenta influências da literatura oral.
15. O final do poema, com a velhinha contente, se assemelha ao "final feliz" dos contos de fada.
16. "A Língua do Nhem" é um poema que não se relaciona com o público juvenil.
Correção do questionário
1. Falso. O poema é narrativo, embora o título sugira uma ênfase descritiva.
2. Verdadeiro.
3. Verdadeiro.
4. Falso. A velhinha fica contente porque os animais a acompanham no "nhem-nhem-nhem".
5. Falso. O poema é composto por oito quadras com versos de seis sílabas métricas.
6. Verdadeiro.
7. Verdadeiro.
8. Verdadeiro.
9. Falso. “Nhem” representa a fala dos idosos e a solidão resultante da falta de interação.
10. Verdadeiro.
11. Verdadeiro.
12. Falso. A personificação é um dos expoentes do texto poético, mudando a língua dos animais.
13. Falso. A repetição é um recurso estilístico utilizado para criar ritmo e reforçar o tema.
14. Verdadeiro.
15. Verdadeiro.
16. Falso. A temática e a forma do poema capturam o interesse do público jovem, ligando-se a tradições populares.
Texto de apoio - análise
literária do poema “A língua do nhem”
O poema intitulado “A língua do
nhem” versa sobre a solidão e, simultaneamente, sobre a necessidade inerente ao
ser humano de relacionar-se com outro ser vivo.
Trata-se de um poema narrativo,
embora o título sugira que a ênfase se dará no plano descritivo. Portador de
uma estrutura do tipo começo-meio-fim, a história apresenta uma sucessão de
momentos encadeados entre si, deixando-nos informados do passado, do presente e
do futuro. E, segundo Tavares (2005, p. 65), essa
é uma das estruturas mais elementares que aprendemos na infância, e é de acordo
com ela que interpretamos nossa vida e tudo que acontece à nossa volta.
A problemática da solidão é
apresentada nas duas primeiras estrofes, como se não houvesse solução.
Entretanto, na terceira estrofe, o quadro começa a se modificar. O gato começa
a imitar a velhinha e os demais animais da história fazem o mesmo.
Embora a rotina se instale
novamente, minimizando, de certa forma, a solidão, a velhinha fica contente por
que todos os a acompanham no “nhem-nhem-nhem” (na última estrofe).
“A língua do nhem” se constitui de
oito quartetos constituídos por versos com seis sílabas métricas. O número de
sílabas, coincidentemente ou não, corresponde a seis vozes expressas em uma
linguagem onomatopaica “nhem” (reiterada também seis vezes) por todos os seres
animados no texto. A velhinha, o gato e os outros animais como cachorro, pato,
cabra e galinha interagem por meio do monossílabo “nhem” que finaliza quatro
estrofes, alternando com os oxítonos terminados em “ém” – “alguém”, “também”,
“além”, “ninguém”.
Essa seqüência dos animais talvez
represente uma gradação no tocante ao grau de aproximação existente entre o ser
humano e os bichos mencionados.
O uso dos artigos definidos a em
“a boa da velhinha” (segundo verso da segunda estrofe) e o em “ O gato que dormia”
(primeiro verso da terceira estrofe) e “ o gatinho a acompanhava” (terceiro
verso da quarta estrofe) denotam o facto de que a velhinha e o gato pareciam se
mais próximos ou então considerados os sujeitos mais importantes na comunicação
que se estabeleceu.
O diminutivo em “gatinho” expressa
a afetividade e a intimidade que se desenvolveu na relação velhinha-gatinho.
Acrescenta-se o respeito às pessoas de maior idade se expressa no uso do
diminutivo “velhinha” na primeira, segunda, terceira e sétima estrofes.
O “nhem”, onomatopéia bastante
utilizada pelos idosos, resultante, biologicamente explicitando, de uma espécie
de destruição progressiva e contínua dos neurônios, compõe o título como uma
constatação de uma seqüela dos vários anos vividos e da ausência de maior interação
humana.
Impressiona-nos a maneira em que
Cecília desnuda essa realidade dessa fase da vida, a gravada pelo desuso da
fala ou por não ter com quem falar, ou por ter sua fala ignorada ou reprimida
pelos mais jovens.
A autora envolve os animais (os
bichos) na “comunicação” com a velhinha, na tentativa, talvez, de minimizar o
estado de aborrecimento desta e de, ao mesmo tempo, protestar contra o descaso
ao idoso, que se inicia no âmbito familiar.
A solidão em que se encontra a
velhinha vai sendo descrita através da relação paradigmática marcada pela
associação semântica entre a temática solidão e termos presentes no poema que
denotam esse estado. Vocábulos como “aborrecida” (primeira estrofe), “resmungando”
e “sozinha” (segunda estrofe), “canto” (terceira estrofe), “resmungava” (quarta
estrofe), “padecia” e “ninguém” (sétima estrofe).
Os termos em destaque associados à
situação de solidão são representados por noções de estado
como em “aborrecida”, “sozinha”,
de ação como
em de companhia,
no caso de “ninguém”.
Estilisticamente, a personificação
é um dos expoentes desse texto poético, chegando a mudar a língua dos animais.
Como se tivessem se divertindo com a nova língua – “a do nhem” – o gato, o
cachorro, o pato, a cabra e a galinha passaram “noite e dia/naquela melodia/nhem,
nhem, nhem, nhem, nhem, nhem”.
Excetuando o gato, os outros
bichos vieram “de cá, de lá, de além” (último verso da quinta estrofe), do
mesmo modo que vêm nossos costumes, tradições, comportamentos, por meio,
também, da literatura oral a qual tem como significativo elemento a memória,
que vai sendo preservada pelo recontar o que ouviu – agregar
histórias de outros – considerada uma das necessidades
do ser humano por Araújo (2005).
Para evidenciar a relevância da
memória, Tavares (2005, p.106) traça um paralelo entre o mundo da cultura
escrita e o mundo da cultura oral, ao qual vai ao encontro da permanência da
Literatura Oral. Cecília, em Problemas
da literatura infantil, afirma: (...) é a Literatura
Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o
seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais
carecidos de letras.
Se visualizando de fora se vê
“mesmice”, reprodução, repetição, de dentro (como se fôssemos um deles) parecia
haver prazer naquele comportamento reiterado.
A repetição é um outro recurso
estilístico utilizado por Cecília. Essa, por sua vez, neste contexto se dá no
plano sonoro e vocabular. Os sons das rimas aborrecida/vida
(primeira estrofe), velhinha/sozinha
(segunda estrofe), cozinha/velhinha
(terceira estrofe), resmungava/acompanhava
(quarta estrofe), vizinha/galinha
(quinta estrofe), dia/melodia
(sexta estrofe), padecia/companhia
(sétima estrofe), abria/respondia
(oitava estrofe) e em estrofes, a
partir de palavras que estão na mesma estrofe e em estrofes diferentes (último verso
de todas as estrofes) “alguém / nhem / também / nhem / além / nhem / ninguém / nhem”
somado ao termo “nhem” repetido seis vezes consecutivas em quatro dos oito
versos, de forma alternada.
O tempo passado típico das narrativas,
tendo o imperfeito do indicativo do verbo “haver”
no início do poema indica uma situação que se sustenta há certo tempo e nos
remete a “Era uma vez...”, “Há muito tempo atrás...” Esse brincar com outros
tipos de texto promove o diálogo entre os tempos e conseqüentemente com o
sócio-cultural. A brincadeira com a linguagem associada ao se evidencia em
outros textos Especificamente, é possível estabelecer uma relação entre “A
língua do nhem” e a história “Os músicos de Bremen” e a canção “ A velha debaixo
da cama” do cancioneiro popular.
Os músicos de Bremen, do original
The Bremen Town – Musicians, dos Irmãos Grim, Jacob e Wilhelm, trata da
desvalorização de um asno, quando este chega à velhice. Seu dono o destrata e o
animal resolve abandonar a casa, em busca de dignidade, por meio da sua liberdade.
Talvez o nome dado pelos autores a
esse clássico da literatura infantil “Bremen” seja atribuído à Cidade
Hanseática Livre de Bremen, cidade alemã, localizada após San Marino, sendo a
mais antiga cidade-república do mundo. Conquistou sua emancipação política em 1646,
por ter demonstrado já em 1405 sua pretensão de autonomia.
Assim como os animais chegaram à
casa da “velhinha do nhem”, com exceção do gato por que já vivia com ela,
talvez por não forem respeitados e amados em suas próprias casas, os animais (o
asno, o cão, o gato e o galo) também buscaram um ao outro, como forma de combaterem
o desrespeito, a ingratidão e a solidão.
O enredo dessa estória estrangeira
é semelhante ao poema nacional – “A língua do nhem” e que merece um estudo
comparativo mais aprofundado.
O final do poema, assemelhando-se
ao clássico “final feliz” dos contos de fada, só aparece depois de um certo
suspense na penúltima estrofe com o uso do conectivo com a idéia de consecução
“De modo que...”, iniciando a estrofe, põe em dúvida o desfecho do que está sendo
narrado poeticamente, como um tom de ameaça. Esse suspense é explicitado por Tavares
(2005, p.67) ao discorrer sobre poema narrativo.
O diálogo entre esses dois gêneros
literários – o conto e o poema – um europeu e o outro nacional serve para
ilustrar, talvez, a influência européia que Cecília Meireles recebeu, já
mencionada no Capítulo II deste texto.
“A Língua do Nhem” remete também
ao cancioneiro popular “A velha a fiar” – um dos maiores clássicos que retrata,
de forma simples e recreativa, o interminável ciclo vicioso no qual estamos
presos. Ele funciona bem como jogo de memória.
Segundo o blog de Juliana (www.
Marmota.org/blog/2005/07/01/1315), surgiu a primeira vez em 1964, em um curta
metragem dirigido pelo cineasta Humberto Mauro. No blog há menção de ter sido
veiculado no programa Rá-Tim-Bum (TV cultura) e no Programa Os Trapalhões, com
outra versão e intitulado “A velha debaixo da cama”.
Tais ligações a essas raízes foram
possíveis devido a memória e a oportunidade que tivemos de nos depararmos,
quando criança, dessas criações.
Esses dois veículos midiáticos,
portanto, já revelam a viabilidade de poemas com a temática e a forma de “A
Língua do Nhem” interessarem ao público juvenil.
A
ludicidade em Cecília Meireles como sensibilização para a leitura na educação
fundamental, Walkíria Carvalho. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006
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