Romance LIII ou das palavras aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra.
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas;
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão, podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!
Cecília
Meireles (1901-1964), “Romance 53 ou Das Palavras Aéreas” in Romanceiro da Inconfidência, Parte 3. Rio de Janeiro: Livros
de Portugal, 1953
Análise dos principais aspetos do poema
O poema
“Romance LIII ou das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, faz parte do Romanceiro
da Inconfidência, uma coleção de poemas inspirada na Conjuração Mineira,
uma rebelião fracassada contra o domínio colonial português no Brasil no século
XVIII.
No poema é explorada a dualidade das palavras como instrumentos de criação e destruição, de
liberdade e opressão, refletindo-se sobre o seu impacto profundo e muitas vezes
imprevisível na vida e história humanas.
O sujeito
poético começa por enfatizar a natureza fugaz das palavras. Elas são comparadas
ao vento que não retorna, indicando a sua transitoriedade e a rapidez com que
tudo pode ser formado e transformado por elas.
Apesar da
sua fugacidade, as palavras possuem uma potência estranha. Elas são capazes de
iniciar e direcionar o sentido da vida, cristalizar emoções como o amor,
incitar sonhos e audácias, mas também disseminar calúnias e causar derrotas.
As
palavras são descritas como frágeis como o vidro, mas poderosas como o aço.
Elas têm o poder de mover reis, impérios e povos, moldando o curso da história
e influenciando destinos.
O poema
aborda também a responsabilidade que vem com o uso das palavras. Elas podem
acusar, vigiar, prender, julgar e condenar. Podem ser usadas como instrumentos
de opressão ou libertação, dependendo de como são utilizadas.
Há um
contraste entre a leveza aparente das palavras, como "tênue seda", e a
sua capacidade de serem instrumentos de poder e justiça. Elas são tanto
símbolos de liberdade quanto de opressão, dependendo do contexto e da intenção
de quem as usa.
O poema termina
com uma reflexão sobre a ironia das palavras. Onde poderia haver perdão, elas
se tornam instrumentos de punição e sofrimento, exemplificado na imagem final
de "um homem que se enforca", mostrando como palavras mal empregadas
podem ter consequências trágicas e irreversíveis.
Exploração
de um fragmento do poema
AI, PALAVRAS!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Cecília Meireles, Obra
Poética
O título
da poesia está plenamente justificado nos três versos em que o vocativo comandado
pela interjeição aparece seis vezes e isto na 1.ª parte da composição, antes da
autora se espraiar em imagens significantes deste extraordinário e indefinível
significado que ela tenta sugerir, desde que, na 1.ª estrofe, diz «sois de
vento» , tentando já objetivar o referido significado numa imagem - o vento -
que, como as palavras, não se pode agarrar, o que aponta já para a incontável e
variada gama de signos que podem ser transmitidos pelas palavras.
Em toda a
poesia é evidente um misto de censura, acusação, elogio e angústia em que a
autora envolve - as palavras - intensificando esses sentimentos com o
emprego da referida interjeição.
O ritmo
ligeiro da poesia em verso de redondilha maior, sem rima consoante, e apenas, aqui
e além, uma certa musicalidade dada pela rima toante em o aberto - vossa,
retorna, transforma, nova, vossa,
porta, rosa, derrota, elabora,
retorta, poderosa, rodam - que
aparece alternadamente ao longo da poesia, está ao serviço da ideia que a
poetisa desenvolve desde o 3.° verso - a palavra é incorpórea, não se apanha,
não se vê, é efémera, móvel, na sua pronunciação, leve como o vento. No
entanto, à medida que o pensamento se desentranha, a poetisa vai concretizando
a afirmação do 2.° verso do 1.º dístico - «que estranha potência a vossa!» - e,
daí, a sucessão de valores denotativos e conotativos contidos nas - palavras.
A
pontuação colabora com a linguagem para traduzir o pensamento. Abundam as frases
exclamativas e reticentes que apontam para a função emotiva da linguagem ao
serviço desta mensagem poética que está, de certo modo, empenhada numa subtil denúncia
- o que está sugerido principalmente no último conjunto de versos.
«A Liberdade das almas.
ai! com letras se elabora .. »
Predomina
no texto o tempo verbal presente, o qual aponta para a intemporalidade das
afirmações da autora: foi, é e será sempre «estranha a potência das palavras».
A poetisa
debruça-se sobre este sugestivo signo - a palavra - e vai desdobrar em sucessivos
versos aquilo que ela pensa, em linguagem direta. Daí, os vocativos, os verbos na
2.ª pessoa e o possessivo vossa também na 2.ª pessoa.
A
obsessão com que se debruça sobre o tema é marcada:
- pelo
paralelismo: sois de vento, ides no vento
- pelas
repetições: há um verso que se repete três vezes - «Ai, palavras, ai,
palavras,»; o 1.º dístico repete-se no começo da 3.ª estrofe; o 4.º verso da 1.ª
estrofe também se repete integralmente no dístico que constitui a 2.ª estrofe
um tanto desgarrada, só formada de dois versos, mas fortemente incisiva no
contexto. Estas repetições transmitem à poesia um acentuado paralelismo
ideológico e uma cadência rítmica sugestivos do assombro que a poetisa sente e
deixa transparecer.
Vejamos
como justifica Cecília Meireles a significativa afirmação que faz no dístico exclamativo
com que inicia a poesia.
Note-se
que a poetisa diz: «Que estranha potência, a vossa!» e nesta expressão o significante
potência já, por si, mais quantitativo e ressonante que - poder -
vem ampliado pela expressão quantitativa - que - e qualificado pelo adjetivo
- estranha - que também aponta para uma indefinição, alargando o seu
sentido; e, de certo modo, prepara o qualificante do 4.° verso - «Sois de
vento». No mesmo verso, transpõe o possessivo - vossa - para o fim, o
que, numa frase elíptica do predicado, e alargada pela anástrofe - pois a ordem
direta seria - «Que estranha é a vossa potência!» transpõe o pensamento mais
para o indefinido e alonga-o mais do que se o possessivo acompanhasse o
substantivo.
«Sois de
vento, ides no vento» - Primeira definição que contrasta com a afirmação do 2.°
verso e que sugere a vaga, rápida, duração da palavra, quando
emitida oralmente, embora o seu efeito seja violento, forte, potente,
e tanto, que condiciona a vida do mundo. Por meio dela «tudo se forma e
transforma».
Logo
nesta estrofe, pois, paradoxalmente, diz das palavras - «sois de vento, ides no
vento». Note-se que neste verso, nas duas frases marcadas pelo paralelismo já
sugerido, se aponta para a fluidez da palavra, o que é reforçado pela repetição
do signo – vento – em especial à maneira de leixa-pren do 4.º para o 5.º verso
- ides no vento / no vento que não retorna. E, no entanto, apesar
da fugacidade da sua existência, é à custa dela, palavra, já se disse, que
«tudo se forma e transforma». Note-se, nestes dois últimos versos, o contraste entre
rápido e tudo, o jogo etimológico – forma e transforma
– e a rima interna, a fazer incisão sobre o poder da palavra e, de raspão, a
apontar, mesmo aqui, para o tema da mudança e para a irreversibilidade - no
vento que não retorna. O tempo passa, as palavras ficam, mas ajustadas a
novas ideias. O que foi denotação pode vir a ser conotação, mas fica.
No
dístico que constitui a 2.ª estrofe, a autora leva-nos a constatar mais um
paradoxo que é vincado pelo emprego de um verbo de movimento - ides - em
antítese com um verbo de estabilidade - quedais. Afinal, a palavra é
frágil - «Sois de vento, ides no vento -» (verba volant - as
palavras voam, diziam os latinos) e (contudo) «quedais com sorte nova!» Vai,
mesmo, mais longe e o ponto de exclamação traduz o espanto experimentado: não
só quedam, como quedam com sorte nova - isto significa a possibilidade que a
mesma palavra tem de se aplicar a sentidos vários e renovados, e de passar de
elemento caduco a elemento renovado, sempre rico de seiva que queda teimosamente.
Alarga, pois, neste dístico, o pensamento que começou a desdobrar-se com o
mesmo verso na 1.ª estrofe.
Na 3.ª
estrofe só aparece um adjetivo - estranha - num verso de um dístico que
se repete como um refrão, obsessivamente. A justificação da afirmação feita no
1.° dístico é transmitida, aqui, por substantivos predominantemente abstratos -
amor, sonho, audácia, calúnia, fúria, derrota... e outros não expressos,
mas que as reticências deixam supor. Note-se que, nesta série de definições
sugestivas de palavras, umas apontam para o seu aspeto positivo - amor,
sonho, audácia; outras para o negativo – calúnia, fúria, derrota – os
dois primeiros com a tónica em u e terminados em ditongo decrescente
fazem rima e anotam o sinal negativo que transmitem, e marcam uma certa
gradação crescente pois a calúnia leva à fúria e sucessivamente à
derrota onde a tónica em o aberta aponta para o nada, a
destruição. Serve-se, assim, de várias conotações mais restritivas que
desdobram a 1.ª afirmação de sentido genérico, coisificando a palavra
quando a faz - porta de saída para a expressão do pensamento. Também,
nesta estrofe, coisifica o estranho poder das palavras com uma imagem
sinestésica - gustativa (mel) e olfativa (perfume), a exprimir o amor
que sugestivamente cristaliza na objetivação expressiva da metáfora - em
vossa rosa. Através desta sugestiva e poética perífrase, traduz
simplesmente a força expressiva do sentimento que a palavra amor
significa numa gama variada de sensações. Note-se a sugestão dada pelo verbo cristalizar
- o qual polariza a fina essência do sentimento amoroso.
Nesta
mesma estrofe merecem um comentário especial os dois últimos versos «Sois o
sonho e sois o audácia». É, aparentemente, um verso mais curto, a sugerir a
rapidez do sonho e a violência da audácia, é um verso copulado, marcado pelo
paralelismo em que o 2.º membro marca já a transição para a série de sugestões
expressivas do último verso, as quais se desbobinam em frase assindética,
dissociando os vários momentos negativos do emprego das palavras, numa
gradação crescente, como já sugerimos.
É, porém,
na última estrofe que o pensamento da poetisa se vai abrir definitivamente a
transmitir a mensagem poética que vem sendo anunciada desde o princípio. A
poesia é uma chamada de atenção para a estranha potência das palavras,
não empenhada, fundamentalmente, como Manuel Alegre no soneto intitulado - As
Palavras - que é poesia de combate, de denúncia, ou como Eugénio de Andrade
que, com a poesia, igualmente intitulada, se situa no cruzamento dos dois, numa
poesia carregada de conotação e, por isso, menos objetiva na sua mensagem, mais
próxima da pintura abstrata e mais pessoal. Também Ruy Belo em «Homens de
palavra(s)» e Egito Gonçalves no poema «Com palavras» põem à nossa
consideração a referida estranha potência das palavras que de cada um de
nós faz um dicionário (mais ou menos volumoso). como diz o prosador, ou um
arquivo, como sugere o segundo. O mesmo tema inspira, pois, cinco artistas que,
embora se toquem em alguns pontos, têm, contudo, uma marca própria.
Cecília
Meireles oferece ao nosso pensamento uma poesia, fruto de uma análise marcadamente
objetiva, alertando-nos, sem nos obrigar a esforços para descobrir o que ela não
teve interesse em esconder.
Por isso
a 4.ª estrofe é a cúpula e sugestivamente nela predomina a imagem concreta para
provar essa estranha potência das palavras. Novamente o contraste entre:
- o
valor positivo delas - pois que, com letras - com palavras - se dá
ou se tira a liberdade (note-se o seu quê de amargura que traduz a
interjeição ai! e a insegurança sugerida pejas reticências);
- e o
valor negativo - são fina retorta onde se contêm os venenos humanos. Na química,
é a retorta elemento de trabalho para o bem e para o mal. Pois a autora conota,
com este objeto. o poder destruidor, negativo das palavras. O seu aspeto
negativo é significado concretamente e conotativamente por uma retorta onde se
fabricam os venenos humanos - alguns dos quais já foram sugeridos no
último verso da estrofe anterior. E, novamente, a poetisa nos leva a constatar
essa estranha potência, nas duas comparações concretizantes e paradoxais
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
a primeira superlativada pela
repetição do adjetivo frágil onde a comparação é feita com o vidro,
estabelecendo o mesmo grau de fragilidade; a segunda, determinada pelo adjetivo
poderosa, faz-se com o aço (e aço, aqui, pode conotar, por sinédoque, armas)
e marca a superioridade das palavras em relação às armas. A exclamação que
fecha estes quatro versos vinca bem o assombro que tal paradoxo determina.
Assinale-se,
nestes dois versos comparativos, uma espécie de quiasmo: - os adjetivos estão
nos extremos e os substantivos no meio, obrigando o 2.º verso a uma anástrofe
um tanto violenta. Colocando os adjetivos em lugar de relevo, a nosso ver,
torna mais expressivo o paradoxo.
A poesia
termina com dois versos que polarizam o pensamento que, gradualmente, se foi
desentranhando - as palavras são o grande motor do mundo -, pensamento que é transmitido
num crescendo de valores que o penúltimo verso sugere: os Reis são superados pelos
impérios e tudo pelos tempos. Veja-se a ligação assindética destes quatro
elementos que, dissociados. marcam melhor os quatro valores.
Estes
dois versos são reticentes pois que o que foi enunciado no penúltimo verso não
abarca toda a incalculável missão das palavras. Muito mais situações poderiam
ser equacionadas, e, mesmo assim, nunca cobririam toda a estranha potência das
palavras. Até o verbo rodar indica essa gravitação do mundo rotativamente a
partir do centro vital que são as palavras.
Poucos
são os adjetivos no texto e os poucos que há são abstratizantes.
Predominam
os substantivos, marcadamente abstratos, ao serviço da mensagem poética que
roda em torno de uma definição, o que solicita, naturalmente, o predomínio do
substantivo.
Dois sons
têm um certo relevo na poesia: a sibilante e a labiovelar (f, v). Parece-nos que
eles poderão ajudar a sugerir a mobilidade e a fluidez das palavras e também a
sua potência, (f. v.) - o que é principalmente sensível nas duas primeiras
estrofes.
Cecília
Meireles foi, pois, muito feliz nesta poesia, quer pelo rico conteúdo
ideológico que encerra, quer pela leveza e naturalidade com que conseguiu
sugeri-lo.
Lilás
Carriço, “Exploração do poema – Ai, Palavras!” in Literatura Prática
11.º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4.ª ed.) (1.ª ed.: 1977)
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