Giuseppe Arcimboldo |
Num Bairro Moderno
A Manuel Ribeiro
I |
|
Dez
horas da manhã; os transparentes |
Cesário Verde. Lisboa, verão de 1877
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
A visão
impressionista da vida da cidade. O prosaísmo poético
Observemos alguns
dos aspetos mais relevantes deste poema, como o de se tratar de um poema
deambulatório em que um Eu vai «com as
tonturas duma apoplexia» e sem pressas para o seu emprego; encontra nesse
bairro moderno uma hortaliceira (o campo que dá saúde invade assim a cidade);
ajuda-a a carregar a sua giga e recupera, assim, «as forças, a alegria, a plenitude, / Que brotam dum excesso de virtude
/ Ou duma digestão desconhecida» (um traço igualmente presente em Cesário é
uma certa ironia e autoironia como se nota ao longo deste poema, em que não
parece levar-se excessivamente a sério).
Entretanto, e
sempre presente, a referência à luz, ao sol; das impressões luminosas recebidas
progressivamente se faz a notação do passar do tempo, como em «fere a vista, com brancuras quentes, / a
larga rua macadamizada»(note-se a sinestesia em brancuras quentes); em « E
eu, apesar do sol, examinei-a», em «à
luz do Sol, o intenso colorista»,
em «O Sol dourava o céu»; ou, mais
para o fim do poema em «E o sol estende,
pelas frontarias, / Seus raios de laranja destilada»(imagem bem inesperada
e plástica). Por isso, é possível a visão surrealista da transformação dos
vegetais num corpo humano gigantesco (lembrando a pintura de Arcimboldo).
Para além das sugestões visuais, surgem ao longo do poema, em quintilhas decassilábicas e rimadas, a descrição da vida matinal num bairro burguês, a que não falta a notação de aromas («bóiam aromas», «emanações sadias»), ou de sons («uma ou outra campainha/ Toca, frenética,» «oiço um canário», «ela apregoa»). E uma outra imagem de rara beleza: «Um pequerrucho rega a trepadeira / Duma janela azul; e, com o ralo / Do regador, parece que joeira / Estrelas».
http://www.navedapalavra.com.br/resenhas/cesarioverde.htm
(consulta em 2002-12-06)
Questionário sobre as estrofes I a XV do
poema “Num Bairro Moderno”, de Cesário Verde
1. Este poema deixa-nos a impressão de uma poesia deambulatória.
1.1. Aponte os principais planos que se sucedem
no poema, delimitando-os no texto e indicando os seres que nele se movimentam.
2. Há referências implícitas a duas classes sociais,
apresentadas como antítese uma da outra.
2.1. Quais são essas classes sociais e qual a
atitude do poeta em relação a cada uma delas?
3. O poeta transfigura o quotidiano numa pintura viva.
3.1. Indique as sensações de que se serve.
3.2. Distinga o objectivo do subjectivo.
3.3. Que simbologia encontra nesta fantasia?
Justifique.
4. Demonstre que se trata de um poema realista, impressionista e
parnasiano.
Chave de correção:
1.1.
Para além do plano de fundo, o "Bairro Moderno", que dá título ao
poema há, com efeito, intercalados nele, outros planos aparentemente distantes
do central e entre si.
O primeiro surgirá na quarta estrofe,
quando a atenção do poeta se prende na figura da rapariga. Cesário para, então,
com a descrição que vinha fazendo (a do Bairro) para nos retratar a jovem.
Assim que acaba, desvia logo a atenção para o desprezo do criado.
É agora que nos começa a elaborar a parte
do poema que, se bem desconexa do tema central, será provavelmente a que se
apresenta mais interessante – a fantasia que Cesário Verde constrói a partir da
imagem dos vegetais da rapariga. A partira das formas simples e sobejamente
conhecidas de frutas e hortaliças, o observador criativo que o poeta é vai
edificar um corpo humano – processo que nos faz acompanhar ao pormenor.
Seis estrofes demoram esta concretização do
fantástico, ao fim das quais retornamos à dimensão real do cenário de bairro em
que Cesário se inseres, e à rapariga dos legumes.
Aproveita então o poeta para nos deixar, em
tom de contraste com a fealdade da rapariga, a virtude que lhe reconhece na
força e virilidade (de forma análoga à do que se passava com as varinas) que
são as que, afinal, lhe conferem essa mesma fealdade.
2.
As classes sociais em foco no poema serão, como se deduz, a burguesia e a da
rapariga, um "arraia-miúda" de trabalhadores pobres.
A burguesia aparece representada pelas
imagens ironicamente confortáveis dos "rez-de-chaussée" e dos almoços
"fáceis" que aguardam o burguês típico.
A rapariga aparece-nos a retratar a classe
a que pertence, por defeito vigorosa, que os olhos do poeta parecem ver explorada.
Há no meio a aparição do criado que, de
forma irónica, se põe a menosprezar a rapariga afinal mais próxima dele do que
quer julgar.
3.1.
O poeta recorre a uma pluralidade de "ferramentas" literárias, entre
as quais achamos diversas sinestesias: "fere a vista, com brancuras
quentes", "as tonturas duma apoplexia"...
3.2.
O objetivo estará aqui representado pelos elementos "reais" do
quotidiano moderno as personagens e o cenário físico do bairro), enquanto o
subjetivo se faz procurar pelos comentários que Cesário faz a esses elementos,
bem como pela encenação meramente fantástica da figura humana nos legumes.
3.3.
A simbologia vem associada a uma obsessão que o poeta vem nutrindo pelo campo e
pelo ambiente naturalmente saudável desse último, encarnado nos tons fortes dos
vegetais que se associa à anatomia do corpo imaginário ("ginja vívida,
escarlate", "ossos nus, da cor do leite", "dedos
rubros" ou "negras e unidas".
4.
O poeta faz parte assumida e distinta de um triângulo de tendências literárias.
As evidências do realismo serão, com
certeza, as mais óbvias, estando patentes nos próprios temas das obras de
Cesário – as classes sociais e as respectivas divergências, o ambiente doentio
da cidade.
Impressionista também nos parece evidente
que seja, já que faz uso frequente e regular nas suas ilustrações de marcas do
impressionismo como são as referências a tonalidades concretas e à
caracterização por impressões pessoais dos determinados cenários. Note-se disto
a propósito o próprio começo do excerto "Dez horas da manhã" em
função da importância que tinha a hora do dia para os retratistas
impressionistas.
O parnasianismo marca-se na admiração de
Cesário Verde pelos conceitos de pureza e coragem – provas disto serão as
descrições fascinadas e fascinantes da mulher loira que obceca o poeta ou, no
presente excerto, "as forças, a alegria, a plenitude que brotam de um
excesso de virtude ou de uma digestão desconhecida".
<http://www.terravista.pt/guincho/1625/Escola/CVerde.html>
março de 1998
Poderá também gostar de:
- Apresentação “Num Bairro Moderno” – recurso do manual escolar Entre nós e as palavras Português 11.º ano, Santillana, 2015
- Análise do poema “Num Bairro Moderno”. Publicada por Prometeu em https://portugues-fcr.blogspot.com/2019/05/num-bairro-moderno.html, 2019-05-20
- “Para uma síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Num
Bairro Moderno, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-12-01.
Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/num-bairro-moderno-cesario-verde.html
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