quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Num Bairro Moderno, Cesário Verde

Giuseppe Arcimboldo


Num Bairro Moderno

A Manuel Ribeiro

 

I





II





III





IV





V





VI





VII





VIII





IX





X





XI





XII





XIII





XIV





XV





XVI





XVII





XVIII





XIX





XX








5





10





15





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Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre as ramas dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas de uma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo de uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira o cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces de uns alperces.

Subitamente – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros cheios de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha,
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças de um cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas–os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginga, vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!.. Se me ajudasse?!..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe dê Saúde!"
E recebi, aquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam de um excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

 

Cesário Verde. Lisboa, verão de 1877

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983

 


 


A visão impressionista da vida da cidade. O prosaísmo poético

Observemos alguns dos aspetos mais relevantes deste poema, como o de se tratar de um poema deambulatório em que um Eu vai «com as tonturas duma apoplexia» e sem pressas para o seu emprego; encontra nesse bairro moderno uma hortaliceira (o campo que dá saúde invade assim a cidade); ajuda-a a carregar a sua giga e recupera, assim, «as forças, a alegria, a plenitude, / Que brotam dum excesso de virtude / Ou duma digestão desconhecida» (um traço igualmente presente em Cesário é uma certa ironia e autoironia como se nota ao longo deste poema, em que não parece levar-se excessivamente a sério).

Entretanto, e sempre presente, a referência à luz, ao sol; das impressões luminosas recebidas progressivamente se faz a notação do passar do tempo, como em «fere a vista, com brancuras quentes, / a larga rua macadamizada»(note-se a sinestesia em brancuras quentes); em « E eu, apesar do sol, examinei-a», em «à luz do Sol, o intenso colorista», em «O Sol dourava o céu»; ou, mais para o fim do poema em «E o sol estende, pelas frontarias, / Seus raios de laranja destilada»(imagem bem inesperada e plástica). Por isso, é possível a visão surrealista da transformação dos vegetais num corpo humano gigantesco (lembrando a pintura de Arcimboldo).

Para além das sugestões visuais, surgem ao longo do poema, em quintilhas decassilábicas e rimadas, a descrição da vida matinal num bairro burguês, a que não falta a notação de aromas («bóiam aromas», «emanações sadias»), ou de sons («uma ou outra campainha/ Toca, frenética,» «oiço um canário», «ela apregoa»). E uma outra imagem de rara beleza: «Um pequerrucho rega a trepadeira / Duma janela azul; e, com o ralo / Do regador, parece que joeira / Estrelas». 

http://www.navedapalavra.com.br/resenhas/cesarioverde.htm (consulta em 2002-12-06)



Questionário sobre as estrofes I a XV do poema “Num Bairro Moderno”, de Cesário Verde

1. Este poema deixa-nos a impressão de uma poesia deambulatória.

1.1. Aponte os principais planos que se sucedem no poema, delimitando-os no texto e indicando os seres que nele se movimentam.

2. Há referências implícitas a duas classes sociais, apresentadas como antítese uma da outra.

2.1. Quais são essas classes sociais e qual a atitude do poeta em relação a cada uma delas?

3. O poeta transfigura o quotidiano numa pintura viva.

3.1. Indique as sensações de que se serve.

3.2. Distinga o objectivo do subjectivo.

3.3. Que simbologia encontra nesta fantasia? Justifique.

4. Demonstre que se trata de um poema realista, impressionista e parnasiano.

 

Chave de correção:

1.1. Para além do plano de fundo, o "Bairro Moderno", que dá título ao poema há, com efeito, intercalados nele, outros planos aparentemente distantes do central e entre si.

O primeiro surgirá na quarta estrofe, quando a atenção do poeta se prende na figura da rapariga. Cesário para, então, com a descrição que vinha fazendo (a do Bairro) para nos retratar a jovem. Assim que acaba, desvia logo a atenção para o desprezo do criado.

É agora que nos começa a elaborar a parte do poema que, se bem desconexa do tema central, será provavelmente a que se apresenta mais interessante – a fantasia que Cesário Verde constrói a partir da imagem dos vegetais da rapariga. A partira das formas simples e sobejamente conhecidas de frutas e hortaliças, o observador criativo que o poeta é vai edificar um corpo humano – processo que nos faz acompanhar ao pormenor.

Seis estrofes demoram esta concretização do fantástico, ao fim das quais retornamos à dimensão real do cenário de bairro em que Cesário se inseres, e à rapariga dos legumes.

Aproveita então o poeta para nos deixar, em tom de contraste com a fealdade da rapariga, a virtude que lhe reconhece na força e virilidade (de forma análoga à do que se passava com as varinas) que são as que, afinal, lhe conferem essa mesma fealdade.


2. As classes sociais em foco no poema serão, como se deduz, a burguesia e a da rapariga, um "arraia-miúda" de trabalhadores pobres.

A burguesia aparece representada pelas imagens ironicamente confortáveis dos "rez-de-chaussée" e dos almoços "fáceis" que aguardam o burguês típico.

A rapariga aparece-nos a retratar a classe a que pertence, por defeito vigorosa, que os olhos do poeta parecem ver explorada.

Há no meio a aparição do criado que, de forma irónica, se põe a menosprezar a rapariga afinal mais próxima dele do que quer julgar.


3.1. O poeta recorre a uma pluralidade de "ferramentas" literárias, entre as quais achamos diversas sinestesias: "fere a vista, com brancuras quentes", "as tonturas duma apoplexia"...


3.2. O objetivo estará aqui representado pelos elementos "reais" do quotidiano moderno as personagens e o cenário físico do bairro), enquanto o subjetivo se faz procurar pelos comentários que Cesário faz a esses elementos, bem como pela encenação meramente fantástica da figura humana nos legumes.


3.3. A simbologia vem associada a uma obsessão que o poeta vem nutrindo pelo campo e pelo ambiente naturalmente saudável desse último, encarnado nos tons fortes dos vegetais que se associa à anatomia do corpo imaginário ("ginja vívida, escarlate", "ossos nus, da cor do leite", "dedos rubros" ou "negras e unidas".


4. O poeta faz parte assumida e distinta de um triângulo de tendências literárias.

As evidências do realismo serão, com certeza, as mais óbvias, estando patentes nos próprios temas das obras de Cesário – as classes sociais e as respectivas divergências, o ambiente doentio da cidade.

Impressionista também nos parece evidente que seja, já que faz uso frequente e regular nas suas ilustrações de marcas do impressionismo como são as referências a tonalidades concretas e à caracterização por impressões pessoais dos determinados cenários. Note-se disto a propósito o próprio começo do excerto "Dez horas da manhã" em função da importância que tinha a hora do dia para os retratistas impressionistas.

O parnasianismo marca-se na admiração de Cesário Verde pelos conceitos de pureza e coragem – provas disto serão as descrições fascinadas e fascinantes da mulher loira que obceca o poeta ou, no presente excerto, "as forças, a alegria, a plenitude que brotam de um excesso de virtude ou de uma digestão desconhecida".

<http://www.terravista.pt/guincho/1625/Escola/CVerde.html> março de 1998


 

Poderá também gostar de:

  • Apresentação “Num Bairro Moderno” – recurso do manual escolar Entre nós e as palavras Português 11.º ano, Santillana, 2015



 


Num Bairro Moderno, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-12-01. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/num-bairro-moderno-cesario-verde.html


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