sábado, 13 de julho de 2024

Poema da terra adubada, António Gedeão


 

Poema da terra adubada

Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

 

António Gedeão, Linhas de força. Coimbra, Tip. da Atlântida Ed., 1967

 

Linhas de leitura sobre o "Poema da terra adubada":

O poema "Poema da terra adubada" de António Gedeão apresenta uma reflexão sobre a guerra e as suas consequências, utilizando a natureza como um meio para expressar a violência e a morte que acompanham os conflitos armados. Composto por sete estrofes, o poema contrasta imagens da natureza com a presença e as ações dos soldados, sublinhando a desumanização e a brutalidade da guerra.

O poema começa com uma negação: “Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.” Essa negação cria um contraste entre a expectativa (faunos) e a realidade (soldados). As árvores, inicialmente descritas como belas e douradas, tornam-se o esconderijo dos soldados com granadas de mão. Essa dicotomia introduz imediatamente o tema da guerra, substituindo a inocência e a paz da natureza pela violência e agressão humana.

Na segunda estrofe, as árvores, elementos naturais e esteticamente agradáveis, são descritas como utilitárias para a guerra. A beleza natural é pervertida pelo uso militar, reforçando a ideia de que a guerra corrompe até mesmo a natureza.

Na terceira estrofe, o sujeito poético substitui o som natural do vento pelo movimento furtivo dos soldados. Esse verso sublinha a presença constante e perturbadora da guerra, mesmo em ambientes que deveriam ser tranquilos.

Na quarta estrofe, o sujeito poético utiliza uma imagem de luz, tradicionalmente associada à vida e à natureza, para descrever o brilho das lâminas das facas - o brilho súbito nas folhas verdes não é natural; é das lâminas das facas que os soldados seguram entre os dentes. Esse contraste destaca a presença sinistra e letal da guerra.

A cor vermelha, associada a flores como as papoilas, é transformada em uma metáfora para o sangue derramado dos soldados. Assim, na quinta estrofe, visualizamos a morte de uma maneira brutal.

O som da natureza, que normalmente incluiria insetos e pássaros, é substituído, na sexta estrofe, pelo som das balas, reforçando a presença invasiva e destrutiva da guerra no ambiente natural.

Na estrofe final, o sujeito poético une a imagem da guerra com a agricultura, sugerindo que os corpos dos soldados tornar-se-ão fertilizante para a terra. Isso cria a imagem da guerra como um ciclo destrutivo que, paradoxalmente, alimenta a vida futura.

 


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