Nesse tempo, levantávamo-nos às quatro da manhã, para
subirmos do Calhau até ao Curral da Pedra, o centro da freguesia. A camioneta
arrancava às cinco horas (ainda não havia autocarro, que a escolaridade e a
comunicação social haviam de fazer chegar lentamente ao vocabulário do
quotidiano, ao mesmo tempo que relegavam uma parte dele para esse escaninho das
velharias a que os especialistas gostam de chamar arcaísmos). Às nove horas,
depois de quarenta quilómetros de ilha e mais nove de Canal, desembarcávamos,
finalmente, na Horta, a cidade em frente.
Esse tempo era o de meados da década de cinquenta no Pico. E
a duração da viagem entre a Piedade, no extremo leste da ilha, e o Faial,
costumo usá-la como medida de referência: cinco horas dão hoje para chegarmos
de Ponta Delgada a Boston. Bem sei: tudo é relativo neste nosso mundo e, na
altura, seria outro o tempo necessário para cobrir a distância entre as ilhas e
o continente a oeste; mesmo assim, na sua dimensão relativamente imperfeita,
essa medida serve para mostrar como os Açores de hoje já não são os dessa
década, simultaneamente próxima e remota: afastada já na folha dos calendários
e no rol das suas dramáticas condições de vida, ela continua presente e íntima
no modo como aprendemos a apreender o mundo e a situar-nos nele.
Se eu quiser recuperar dessa época alguns traços que ajudem a
traduzir, agora, uma compreensão da vida e da (minha) existência insular,
aquilo que de imediato me ocorre é a noção de escassez (e esta poderá ser
também uma forma encapotada ou eufemística de nomear a penúria de bens
materiais, a sua redução àqueles mínimos que asseguravam uma vida gizada à
custa de expedientes quase diários, fruto de um engenho aguçado pela
necessidade, como a sabedoria popular se aprestava a esclarecer). Na verdade, a
consciência da escassez começava talvez por ser a de território sólido em que
assentássemos os pés, sempre ameaçados pela presença do mar e pelas suas
inesperadas e incontroláveis variações de humor: tudo era pequeno, a começar
pelo espaço e pelas terras que nos tinham saído em sorte (ou azar), mas isso
não impedia que cada deslocação de um sítio a outro da ilha fosse vivida com um
sentimento misto de excitação e lonjura, mesmo àqueles que, como a Calheta,
ficavam perto da Piedade. Tudo era pequeno e tudo era distante, para abreviar.
É certo que, na costa norte do Pico, tínhamos em frente a ilha de S. Jorge, uma
espécie de sentinela permanente, com as suas escarpas misteriosas, com as suas
gentes e vidas mais adivinhadas do que conhecidas; mas isso não anulava de todo
o sentimento de que a proximidade era, nesse caso, inseparável da condição de
afastamento e distância.
E no entanto… talvez tenha sido isso que me levou a indagar
aquilo que se escondia para lá do espaço circunscrito das ilhas, a interpretar
os sinais que desses mundos nos chegavam: um deles foi um colete axadrezado e
em tons de azul, chegado da América, como se fora feito para mim, e sobre o
qual suponho ter exercido a minha primeira análise estética, aos cinco anos de
idade. Nesse tempo, isto (também) era ser ilhéu. Mas os livros e a palavra
impressa foram simultaneamente os grandes sinais do mundo e o veículo que me
conduziu a outros, de variadas configurações, entre o real e o efabulado.
Na família não havia a Odisseia,
nem Os Lusíadas ou a Guerra e Paz nem sequer a Bíblia, aqueles livros que constroem o
futuro leitor de longo curso. Havia, isso sim, uns livros miúdos que nunca
soube de onde vinham, narrativas populares em folhetos de edição barata, a
história de Pedro Sem (Que Teve e Já Não
Tem), a história de João de Calais
(que só mais tarde eu soube que não devia ler-se como uma forma do verbo
calar).
E havia também pequenas brochuras impressas na costa leste
dos Estados Unidos, a Rosa do Adro,
em quadras que desfiavam uma história de enganos e desenganos, na cantilena do
seu ritmo e da sua rima. E havia ainda uma novela açoriana do princípio do
século, O Oiro da Califórnia, que
dividia os homens em bons e maus: um deles perdia-se no álcool e na solidão da
ilha das Flores, no entanto um irmão chegava da Califórnia para repor a ordem
familiar e a do mundo também.
Mas o grande livro da minha infância (depois de começar a
juntar letras) e da primeira adolescência foi outro.
Na loja do senhor Luís Sapateiro vendia-se quase tudo o que era
essencial para uma comunidade de consumos frugais e que, não raro, sobrevivia
ainda em regime de troca direta: açúcar, farinha, tecidos, petróleo, sal,
botões, cadernos, lápis para ardósias (as pedras xurdeirentas, que obrigavam a,
pelo menos, uma ação de higiene semanal). À esquerda de quem entrava, um
estreito armário de canto, envidraçado, guardava objetos de que perdi o nome e
a memória, pois era também aí que se encontrava um romance em tudo estranho e
longínquo: o título, John chauffeur russo,
e o autor: Max du Veuzit. Tudo nele me atraiu e despertou a curiosidade, a
diversidade da composição gráfica sobre a capa azul, o mistério de uma palavra
escrita que nada parecia ter em comum com aquele «chofer» que nos guiava pelas
estradas tortuosas da ilha em camionetas barulhentas e ronceiras; e eu estava
ainda longe de saber que um nome outro se escondia por trás desse disfarce
autoral. Nunca tive a coragem de pedir ao senhor Luís que me deixasse ao menos
folhear o romance, e o dinheiro desse tempo não dava para comprar livros.
Depois, era já demasiado tarde para correr o risco de um desencanto. E nunca li
o romance de Max du Veuzit. Na sua não-leitura, ele acabou, mesmo assim, por
integrar o conjunto daqueles pequenos textos que me ensinaram a ultrapassar o
óbvio e o imediato e a embrenhar-me na realidade outra que a imaginação nos
avança e, através da qual, nos dá a ver a complexidade das relações, das
interações com que se escreve a realidade primeira que, por vezes, julgamos tão
linear.
O tempo trouxe-me a possibilidade de viajar regularmente
entre as ilhas, de pisar o seu chão e aos poucos conhecer as suas gentes; mais
tarde, o arquipélago ficou para trás e novos espaços se abriram ao meu olhar e
à minha experiência, nem sempre em circunstâncias que tenham deixado à memória
razões para sentir-se bem com os seus arquivos mais secretos. Em todo esse
tempo, no entanto, o conhecimento do mundo e do outro e a descoberta da
diferença e do estranho foram sendo construídos a partir da observação direta e
da leitura, a partir do real concreto e das palavras que o dizem.
Simultaneamente, a imagem de ilha foi-se revelando aquela que melhor definia a
minha perceção do mundo, era o modo que eu tinha de construir e situar-me num
espaço erguido à medida humana da nossa mão. Ainda antes de E. F. Schumacher o
ter escrito, eu já descobrira que, embora noutra perspetiva, small is beautiful
e espero não escandalizar ninguém se disser que, em pleno tempo de guerra, me
senti bastante confortável nesse mês e meio que passei na ilha de Bolama,
próxima do litoral da Guiné-Bissau, embora não suficientemente distante para
evitar os mísseis dos nossos inimigos. E mesmo agora sei que é sempre a partir
da construção imaginária de uma ilha em volta que me movimento e me sinto livre
e solto nas cidades que me acolhem e que elegi como minhas.
Depois de catorze anos de andanças e errâncias, regressei aos
Açores. As circunstâncias fizeram-me regressar, será, por certo, o modo mais
correto de dizer as coisas – mas o tempo tem o dom de esculpir e dar novos
contornos à matéria outrora informe, aparando as suas linhas dissonantes.
Agora, o avião pode transportar-me para fora do arquipélago e trazer-me de novo
a casa em menos tempo do que aquele que, ainda no início dos anos setenta, eu
gastava para viajar de Lisboa ao Pico ou vice-versa. A net faz-me chegar
rapidamente os livros e os CD que, através dela própria, vou descobrindo.
Sento-me diante do computador, ligo o skype e falo com as minhas filhas no
retângulo português ou com os meus sobrinhos nos confins do Brasil. Os meus
amigos estão por aqui e por ali, em muitos lados, e já não dependemos da
lentidão dos correios para trocarmos ideias e traçarmos projetos.
Os cosmopolitas esforçados dirão que acabaram as distâncias e
a experiência física do tempo suspenso. A verdade, porém, é que o mar continua
ali, como o dinossauro de Augusto Monterroso, e esta ilha que também se tornou
minha não vai além dos seus setecentos e cinquenta quilómetros quadrados mal
medidos, e é a maior. Algumas, menos povoadas e mais pequenas, provocam-me uma
sensação de espaço imenso e íntimo como só pude experimentar em África; no
limite da redução territorial, outras deixam-me uma desolação interior, uma
mágoa anónima que nenhumas palavras descreverão, e o desejo nada absurdo de
fugir, mesmo para outras ilhas, desde que afastadas do nosso universo próximo,
demasiado próximo, por vezes.
Daquelas por onde passo, tento sempre aprofundar o
conhecimento das suas gentes e da sua realidade física e guardar comigo os
sinais mais fidedignos de culturas que atestam, em concreto, experiências do
diverso, também por nelas se cruzarem o mesmo e o outro, o interior e o
exterior, em resultado de serem, as ilhas, placas giratórias ou encruzilhadas,
para socorrer-me do termo de Carl Sagan. Mesmo que isso implique aproveitar uma
folga num Curso de Verão em Tenerife e meter-me numa camioneta, agora chamada
guagua, e fazer os oitenta quilómetros entre Adeje e La Laguna para «visitar» a
Librería Lemus e nela me perder.
E assim me entendo como ilhéu: um homem sobre um rochedo,
rodeado de mundos, imaginados, concretos, por todos os lados. E sem sentir que
deva pedir desculpa por isso, seja a quem for.
Urbano Bettencourt,
https://urbanobettencourt.wordpress.com/2017/06/28/ser-ilheu-e-salvar-se-pelos-livros/
https://www.rtp.pt/acores/comunidades/ser-ilheu-e-salvar-se-pelos-livros-urbano-bettencourt_55339#undefined.gbpl
https://urbanobettencourt.wordpress.com/2017/06/28/ser-ilheu-e-salvar-se-pelos-livros/
https://www.rtp.pt/acores/comunidades/ser-ilheu-e-salvar-se-pelos-livros-urbano-bettencourt_55339#undefined.gbpl
Machlon Laarman |
David Stanley |
Pico © Onésimo T. Almeida |
Casa dos Vulcões (ilha do Pico), Urbano Bettencourt, 2022 |
“Ser ilhéu – e salvar-se pelos livros - Urbano Bettencourt”
in Folha
de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-09-2017. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/09/ser-ilheu-e-salvar-se-pelos-livros.html
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