Camões,
grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo1!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar2 c'o sacrílego Gigante3;
Como tu, junto ao Ganges4 sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo,
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante;
Ludíbrio5, como tu, da Sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.
Modelo meu tu és, mas... oh tristeza!
Se te imito nos transes6 da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
Bocage, Obra Completa.
Sonetos, Porto, Edições Caixotim, 2004
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1 cotejo (v. 2): comparo.
2 Arrostar (v. 4): enfrentar, afrontar,
suportar.
3 sacrílego Gigante (v. 4): gigante Adamastor.
4 Ganges (v. 5): rio da Índia.
5 Ludíbrio (v. 9): joguete, objeto de engano, ou de desprezo.
6 transes (v. 13): momentos difíceis e geradores
de angústia.
Questionário
sobre o poema “Camões, grande Camões, quão semelhante”, de Bocage.
1. Divida
o poema nas partes lógicas que o compõem, justificando a sua resposta.
2. Analise
o modo como, nas três primeiras estrofes, se estabelece a comparação entre o
sujeito poético e Camões.
3. Indique
os motivos que impedem a identificação total entre o «eu» e o modelo invocado.
4. Mencione
dois dos recursos estilísticos presentes no texto e os efeitos de sentido por
eles produzidos.
5. Identifique,
no poema, dois traços característicos da estética arcádica.
Explicitação
de cenários de resposta
1. O texto é constituído por
duas partes lógicas. Na primeira, o sujeito poético faz a enumeração das
semelhanças entre a sua vida e a de Luís de Camões, com a qual se identifica:
«Camões, grande Camões […] Modelo meu tu és…» (vv. 1-12). Na segunda, conclui
que só no infortúnio se assemelha ao seu modelo, pois em talento não pode
comparar-se com ele: «Mas, oh tristeza!... […] nos dons da Natureza» (vv. 12-14).
É a conjunção adversativa «Mas» que define uma oposição entre a relação de
identidade expressa na primeira parte e a impossibilidade de imitação de Camões
no plano poético, referida na segunda parte.
2. A comparação desenvolve-se
em dois momentos. No primeiro (vv. 1-2), o sujeito poético declara julgar o seu
destino («fado») idêntico ao de Camões. No segundo (vv. 3-11), enumera uma
série de analogias biográficas que visam demonstrar a verdade dessa semelhança:
um e outro, pelo mesmo motivo, tiveram de abandonar a pátria («perdendo o
Tejo») e, enfrentando os perigos da viagem («o sacrílego gigante»), partir para
a Índia, onde se viram na maior pobreza («penúria cruel»); ambos o sofrimento e
os desgostos amorosos levaram a desejar a morte.
3. Ao processo de
identificação desenvolvido nas quadras e no primeiro terceto, opõe-se, no
segundo terceto, a verificação da diferença que separa o sujeito poético do
modelo invocado: «Se te imito nos transes da Ventura / Não te imito nos dons da
Natureza». Ao proclamar Camões como seu ideal - «Modelo meu tu és» -, o «eu»
lamenta («oh tristeza!...») só ter em comum com ele a infelicidade («transe da
Ventura»), pois em talento poético («dons da Natureza») não se lhe pode comparar.
4. Recursos estilísticos
- comparação: «quão
semelhante», «igual causa», «Como tu»
- adjetivação: «grande Camões»,
«sacrílego gigante», «Ganges sussurrante»
- metáfora: «perdendo o
Tejo», «arrostar co’o sacrílego gigante», «dons da Natureza»
- personificação: «Ganges
sussurrante», «penúria cruel», «Sorte dura»
- antítese: «imito (v. 13)
/ «Não te imito» (v. 14)
- …
O examinando deverá referir-se
aos dois efeitos de sentido produzidos pelos dois recursos estilísticos
selecionados. Por exemplo:
- a antítese sublinha a
oposição entre aquilo que liga o sujeito poético a Camões – o infortúnio («transes
da Ventura») – e o que os separa – a diferença de talento poético («dons da
Natureza»);
- a metáfora «perdendo o
Tejo» expressa a tristeza, a saudade e a sensação de perda causadas pelo exílio.
5. Traços característicos da
estética arcádica
- soneto, forma neoclássica
- hipérbato («Da penúria
cruel no horror me vejo»)
- personificações e alegorias
abstratas («Sorte», «Céu», «Ventura», «Natureza»)
- imitação de Camões
- …
Fonte: Exame Nacional
do Ensino Secundário n.º 537. Cursos Complementares Noturnos - Liceal e
Técnicos. Prova Escrita de Português (Índole Científica). Portugal, 1998, 2.ª
fase
Outro questionário
sobre o poema “Camões, grande Camões, quão semelhante”, de Bocage.
Apresente,
de forma bem estruturada, as respostas aos itens.
1. Proceda a uma
divisão fundamentada do poema nas partes lógicas que o constituem.
2. Indique três
traços comuns a Camões e ao sujeito poético, com base nas duas quadras e no
primeiro
terceto.
3. Refira dois
dos efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente na segunda estrofe.
4. Analise a
importância do último terceto na construção do sentido global do poema.
Explicitação
de cenários de resposta
1. O poema pode dividir-se
nas seguintes partes constitutivas:
– primeira parte (vv. 1-2) – exposição de uma
afirmação geral: semelhança existente entre o «fado» do «eu» e o de Camões,
quando comparados;
– segunda parte (vv. 3-4, segunda quadra e
primeiro terceto) – desenvolvimento: fundamentação da ideia anterior, através
do paralelismo existente entre a figura de Camões e o «eu»;
– terceira parte (segundo terceto) – conclusão:
infelicidade do «eu», dada a impossibilidade de uma identificação total entre
si e o modelo invocado, perante a superioridade do talento poético de Camões.
Nota – É considerada válida qualquer outra divisão
do texto em partes lógicas, desde que devidamente fundamentada.
2. O sujeito poético
considera o seu «fado» «semelhante» ao de Camões, dadas as coincidências de episódios
e de circunstâncias vividos por ambos. Assim, são comuns aos dois sujeitos os
seguintes aspetos:
– o abandono da pátria
pelo mesmo motivo («Igual causa nos fez, perdendo o Tejo» – v. 3), levando-os a
enfrentar o temível mundo desconhecido, simbolizado pelo mito camoniano do
gigante Adamastor («Arrostar c’o sacrílego Gigante» – v. 4);
– o período relativo à
vida na Índia, no Oriente («junto ao Ganges sussurrante» – v. 5), marcado pelo «horror»
de uma pobreza extrema («Da penúria cruel» – v. 6);
– as paixões infelizes,
resultantes de amores impossíveis, irrealizáveis e recordados à distância («gostos
vãos, que em vão desejo» – v. 7);
– a condição de «saudoso
amante» (v. 8), chorando («carpindo» – v. 8) a ausência do objeto amado;
– o sofrimento, como
consequência dos enganos e das desditas provocados pelo destino cruel («Ludíbrio,
como tu, da Sorte dura» – v. 9), conduzindo o «eu» ao desejo da morte e da «paz
na sepultura» (v. 11).
3. A anáfora «Como tu» (v. 5
e v. 7) tem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:
– enfatizar o processo de
comparação («cotejo») realizado pelo sujeito poético, como se enuncia nos versos
1 e 2;
– acentuar, pelo
paralelismo formal, a proximidade biográfica existente entre o sujeito e a
figura do «grande Camões»;
– intensificar a visão que
o «eu» tem de Camões, como alguém a quem gostaria de imitar, ou seja, como seu
modelo;
– …
4. O último terceto, chave do
soneto, assume particular relevo na construção global do sentido do texto, na
medida em que permite uma reinterpretação das estrofes anteriores e, em
particular, da afirmação inicial do sujeito poético acerca da semelhança
existente entre si e o «grande Camões» (vv. 1-2). Com efeito, no último
terceto, restringe-se o paralelismo traçado pelo sujeito poético entre si e
Camões («quão semelhante» – v. 1), já que:
– se sublinha a «tristeza»
do «eu» perante a certeza de que a similitude com o seu «Modelo» se limita ao
plano biográfico («Se te imito nos transes da Ventura» – v. 13);
– se demonstra que o
sujeito poético está consciente da sua distância, em génio poético, relativamente
a Camões («Não te imito nos dons da Natureza» – v. 14).
Fonte: Exame Nacional
do Ensino Secundário n.º 734 - 11.º e 12.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei
n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação
Educacional, 2008, 2.ª Fase
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