terça-feira, 7 de março de 2023

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo. (Ricardo Reis)

 







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Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
        Nem pela primavera
        Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
        Com mais sossego amemos
        A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
        Não puxemos a voz
        Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
         (Não para mais nos serve
        A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
        Agora duas vezes
        Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
        E sob uma outra espécie
        De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares1, ali na eternidade,
        Como quem compõe roupas
        O outrora componhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
        Naquilo que já fomos,
        E há só noite lá fora.

 

Ricardo Reis, Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

 

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1 Deuses lares (verso 26) – deuses domésticos que protegem a habitação e a família.

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Relacione o sentido do primeiro verso com as referências à Natureza presentes nos versos 2 a 4.

2. Refira as normas de vida expostas nos versos 5 a 24, fundamentando a sua resposta com referências textuais pertinentes.

3. Explicite os valores simbólicos do espaço e do tempo em que ocorrem as recordações do passado.

4. Explique o conteúdo das duas últimas estrofes enquanto conclusão do poema.

 

Cenários de resposta

1. No primeiro verso, o sujeito poético expõe a ideia de que tudo ocorre num contexto preciso, determinado pelo curso natural das coisas.

As referências à Natureza presentes nos versos 2 a 4 sustentam esta ideia, fornecendo exemplos concretos. Estes mostram que a cada estação do ano corresponde um ambiente específico: no inverno, há frio e neve e é na primavera que as árvores florescem.

2. De acordo com os versos 5 a 24, é importante:

– viver de forma moderada e tranquila – «Com mais sossego amemos / A nossa incerta vida.» (vv. 7 e 8);

– evitar todo o esforço inútil – «Não puxemos a voz / Acima de um segredo» (vv. 11 e 12);

– lembrar o passado de forma ligeira, despreocupada e breve – «E casuais, interrompidas sejam / Nossas palavras de reminiscência» (vv. 13 e 14);

– rememorar as histórias «que nos falem» (v. 20) da «infância» (v. 21).

3. As recordações do passado ocorrem:

– numa noite de inverno, que, metaforicamente, corresponde à velhice;

– à «hora dos cansaços» (v. 10), propícia à rememoração e ao diálogo calmo e íntimo;

– à «lareira» (vv. 9 e 25), espaço associado ao conforto e à proteção.

4. As duas últimas estrofes sintetizam as ideias apresentadas anteriormente. Reafirma-se que a passagem do tempo conduz inevitavelmente à noite da vida e à recordação do «outrora» (v. 28).

Chegado este momento, deve adotar-se uma atitude serena, semelhante à dos «Deuses lares» (v. 26), e rememorar o passado de modo a tornar a passagem do tempo aceitável e agradável no presente.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 1.ª Fase

 


 

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