Coimbra, 27 de dezembro de 1977
Lê atentamente o poema “Sísifo” de Miguel Torga e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.
1. Explicita o sentido da primeira estrofe.
2. Mostra em que medida o sujeito poético sobrepõe o sonho à sua realização.
3. Interpreta o significado subjacente aos três versos finais do poema.
4. Justifica o título, relacionando-o com o conteúdo poema e com o mito de Sísifo.
5. Explica de que modo este poema pode ser considerado um “hino à condição humana”.
Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 34 de Português – 12.º ano, sobre a poesia de Miguel Torga: Os poemas "Sísifo" e "A um negrilho", 2021-03-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e532506/portugues-12-ano - inicia no minuto 10’37’’:
Texto de apoio 2
Maria Helena da Rocha Pereira entende que no poema [“Sísifo”] “se combinam o nunca desmentido espírito de resistência do poeta, simbolizado no retomar sucessivo da tarefa de empurrar a pedra até ao cume da montanha, não obstante saber que a cada tentativa se seguirá nova queda, com a indomável ânsia de prosseguir o seu sonho”.206
José Carlos Seabra Pereira postula que “(…) em Miguel Torga justifica-se que consideremos que Anteu e Sísifo, Prometeu e Orfeu, Cristo e Camões, são estações analógicas na via crucis da agónica glorificação identitária.”208 Na nossa opinião, as figuras míticas, para além de o identificarem enquanto Homem, revelam-no também enquanto Poeta.
Aqui encontramos Sísifo, depois de a pedra ter inevitavelmente rolado pela escarpa abaixo. Recomeça…, incita o sujeito poético, usando contudo, as reticências, pois a ação implica construir e fazer um caminho que já se percorreu e conhecer de antemão que, depois de tudo, tem de se reconstruir e refazer. O eu lírico reconhece que é um caminho duro, mas os passos devem ser dados em liberdade. Conselheiro, e de forma quase sentenciosa, afirma: Enquanto não alcances / Não descanses. Ora, o verbo alcançar, aqui privado da sua transitividade, permite-nos completar a frase com o complemento direto que considerarmos adequado. Pode ser a ilusão, o sonho ou a aventura da segunda estrofe. Pode ainda ser a loucura humana, aqui positivamente encarada. Recordando-nos Horácio ou Ricardo Reis, a primeira estrofe termina proverbialmente: De nenhum fruto queiras só metade.
O início da segunda estrofe remete-nos novamente para o mito de Tântalo, embora aqui o homem seja mais ativo, colhendo os frutos do pomar, mesmo que sejam ilusões. Consciente (vendo, acordado, lucidez, reconheças) do seu fracasso, do seu logro, o ser humano deve continuamente, orgulhoso da sua condição (És homem, não te esqueças!), carregar a sua pedra.
Este poema é um hino à condição humana. Ao homem que cai e se levanta, continuando a carregar a sua cruz, referência bíblica tantas vezes recuperada por Torga. Ao Sísifo que, com suor e sangue, fez rolar a pedra até ao cimo do monte e agora a vê deslizar uma vez mais. Mas que, não mecânica, mas conscientemente, a recupera e recomeça o seu trabalho infinito. Não o faz resignado, pelo contrário, é sem angústia e sem pressa que retoma os seus passos no mesmo trilho. Assim é o Homem. Assim, o Poeta. O seu trabalho, manual e visceral, nunca está acabado.
Este Sísifo, pleno de sabedoria de vida, recupera os primórdios do mito. Segundo Pierre Brunel, discorrendo sobre a figura mítica, o antropónimo teria sido criado através de si e syphos, ou seja, “redoublement intensif de sophos”209, designando alguém muito sábio e subtil. “Sisyphe serait alors une manière de super-Ulysse”210. Por isso, esta figura é frequentemente associada aos poetas.
Sísifo empurra a pedra eternamente, mas porque dá continuidade às ações que praticara em vida, ele que foi o construtor de Acrocorinto. Pierre Brunel desfaz as dúvidas sobre eventuais paradoxos na análise da figura que tem um trabalho manual, mas que se religa ao intelectual:
“Désespérément retenu au sol par la pierre, et peut-être aussi par cette pensée de la terre qui l‟empêchait d‟aspirer à l‟Inconnu, il est l‟anti-poète par excellence. Tout au plus en fera-t-on le patron des ouvriers du verbe, de ceux qui manient les mots et les tropes comme il transportait les lourds moellons vers le sommet de l‟Acrocorinthe.”211
No poema apresentado, Torga, embora mantenha Sísifo na sombra de supliciado que é, acende nele os sonhos possíveis à humanidade.
O poeta conheceu em Homero, pela boca de Ulisses, este eterno condenado:
“Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,
Tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa. 112
Esforçando-se para empurrar com as mãos e os pés,
conseguia levá-la até ao cume do monte; mas quando ia
a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,
e rolava para a planície a pedra sem vergonha.
Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros
escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.”212
Ovídio também retrata este suplício e, embora o faça de forma muito sucinta (“Aut petis aut urges rediturum, Sisyphe, saxum”213), a repetição, as aliterações e o ritmo do único verso recuperam a mecanização da tarefa.
Contudo, conhecendo as duas versões do mito, de que Torga dispunha, entendemos que foi da Odisseia que ele bebeu a sua essência. Sísifo é o que sofre grandes tormentos (κραηέρ‟ ἄλγε‟ ἔτονηα)214, o que carrega, com os seus próprios mãos e pés (τερζίν ηε ποζίν)215, a pedra monstruosa (λᾶαν πελώριον)216. O Sísifo de Torga executa um esforçado trabalho manual, que, orgânico, lhe faz escorrer o suor (ἱδρὼς)217 pelo rosto, levantando a poeira (κονίη)218 do chão. E, no entanto, esta visão do mito não o afasta da poesia. Muito pelo contrário, este condenado realiza um labor infindável muito semelhante ao que o poeta Miguel Torga tem com as palavras. Clara Rocha chega mesmo a afirmar que “o poeta é condenado da escrita”, “corta a pedra dos versos e afeiçoa-a num esforço de chegar ao cume da Poesia absoluta”219
Este é o ser que reencontramos em “Cantilena da Pedra”, poema que encerra o Diário X:
Coimbra, 30 de julho de 1968
CANTILENA DA PEDRA
Sem musa que me inspire,
Canto como um pedreiro
Que, de forma singela,
Embala a sua pedra pela serra fora…
Upa! que lá vai ela!
Upa! que vai agora!
A pedra penitente que eu arrasto
Tem o tamanho duma vida humana.
E só nesta toada a movimento,
Embora o salmo já me saia rouco.
Upa! meu sofrimento!
Upa! que falta pouco…”220
O canto do poeta, sem musa que o inspire, é o de um simples obreiro, que, no seu labor manual quotidiano, transporta a sua pedra. Numa relação quase amorosa, o pedreiro-poeta não empurra já a pedra-poesia… Embala-a. E o cuidado que lhe dedica leva-o a usar a hipálage (pedra penitente), transferindo o seu sofrimento e condenação para a pedra poética. O pedreiro-Sísifo-poeta não para nunca, apesar do salmo rouco ou do seu sofrimento. A anáfora da interjeição, as exclamações e reticências, os versos curtos e oralizantes, dão-nos conta do percurso iterativo e sem fim.
A figura mítica é, para Torga, aquele que nunca tem descanso, nem em férias, chegando mesmo a empurrar-se a si mesmo, como as seguintes entradas do Diário demonstram:
“E tento refazer com a imaginação o mundo fraterno e nobilitador que a realidade destruiu. Um destino de Sísifo, com intervalos em que é ele próprio que roda desamparado pelos abismos. E que, quando se levanta do trambolhão, tem de redobrar a energia para se empurrar e à pedra.”221
“Sísifo em férias, tento manter a forma a fazer abanar esta turística penedia em equilíbrio precário, metendo-lhe os ombros. Não posso acostumar mal o corpo.”222
Embora não presente em nenhum dos poemas selecionados, ou mesmo nos do Diário, consideramos pertinente, uma vez que discorremos sobre a palavra trabalhada artesanalmente, referir brevemente a figura de Hefesto ou Vulcano. Também ele metaforiza o poeta. À semelhança do deus ou de Sísifo, o poeta é o que põe mãos à obra, é o artífice, o que realiza o trabalho manual árduo (à semelhança do lavrador223, atividade que Torga tanto gostava de realizar e de que não abdicava nem na sua casa, em Coimbra – para tal, fez um pequeno quintal à volta do edifício, imergindo em Geia, mesmo estando na urbe). Contrasta, neste aspeto, com Orfeu, o músico. Vejamos as palavras que o próprio autor nos legou no prefácio da sua Antologia:
“A vivência a comunicar formulada de uma vez para sempre, numa linguagem ao mesmo tempo tributária e original, transparente e críptica, que diga esperança quando nomeia o desespero e nimbe os esplendores do progresso dum halo sagrado. Ora semelhante milagre apenas se consegue, se se consegue, mediante um trabalho aceso de muitas horas, muitos dias, muitos anos – o ferro cada vez mais incandescente e o forjador aureolado das chispas que saltam da bigorna.”224
A Poesia é, assim, também obra manual, orgânica e visceral, esforçadamente empurrada por um condenado ou minuciosamente forjada pelo deus ferreiro.
Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.
_________
206 PEREIRA, Maria Helena da Rocha, “Os mitos clássicos em Miguel Torga”, Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988) 291.
208 PEREIRA, José Carlos Seabra, “Identidade autoral e identidade nacional em Miguel Torga”, in AA. VV., Miguel Torga e a Literatura Intimista - Actas do Colóquio (Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra – Departamento de Cultura, 2005) 10.
209 BRUNEL, Pierre (dir.), “Sisyphe”, Dictionnaire des Mythes Littéraires (s/l: Editions du Rocher, 1994) 1295.
210 Ibidem.
211 Idem, 1300.
212 Odisseia, XI, 593-600. Tradução in op. cit., 197.
213 Metamorfoses, IV, 460.
214 Odisseia, XI, 593.
215 Idem, v. 595.
216 Idem, v. 594.
217 Idem, v. 599.
218 Idem, v. 600.
219 ROCHA, Clara, “A paz possível é não ter nenhuma”, in AA. VV., Sou Um Homem de Granito: Miguel Torga e o Seu Compromisso, seleção, organização e apresentação de Francisco Cota Fagundes (Lisboa: Salamandra, 1997) 97 e 98, respetivamente.
220 Diário X, 1136.
221 Diário VI, 656.
222 Diário XV, 1665.
223 “Nestes dias assim (e nos outros) o que me apetecia era acabar com a literatura por uma vez, e ir para S. Martinho cavar. Mas depois ponho-me a pensar se, no meio da lavoura, o meu destino de poeta me não faria erguer os olhos da leiva, contemplar o céu ou a alma, e escrever a seguir um poema na pá da enxada.”, in Diário II, 189.
224 Antologia, 24.
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- “A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
- “VICENTE, um palimpsesto torguiano”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2015-11-23
- “A Criação do Mundo (1937-1981), Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Sísifo, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 29-09-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sisifo-miguel-torga.html
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