quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Sísifo, Miguel Torga

 



Coimbra, 27 de dezembro de 1977


SÍSIFO

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga [1977], Diário: Vols. XIII a XVI. Lisboa: D. Quixote, [1983], p. 20.






Lê atentamente o poema “Sísifo” de Miguel Torga e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.

1. Explicita o sentido da primeira estrofe.

2. Mostra em que medida o sujeito poético sobrepõe o sonho à sua realização.

3. Interpreta o significado subjacente aos três versos finais do poema.

4. Justifica o título, relacionando-o com o conteúdo poema e com o mito de Sísifo.

5. Explica de que modo este poema pode ser considerado um “hino à condição humana”.

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 34 de Português – 12.º ano, sobre a poesia de Miguel Torga: Os poemas "Sísifo" e "A um negrilho", 2021-03-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e532506/portugues-12-ano - inicia no minuto 10’37’’:





Texto de apoio 1

Este poema não devia ter sido esquecido, porque ajuda quem o leia a perceber que não há nada de errado em começar de novo, pelo contrário, e também porque sugere que a loucura talvez seja a forma mais sã de sermos humanos.
Através da interpelação de uma segunda pessoa que tanto pode ser o próprio poeta, que consigo fala, como o leitor, que assim é implicado por aquele, este breve poema retoma o mito de Sísifo para construir uma espécie de hino à vida tal como ela se afigura à maioria de nós: uma demanda pejada de vicissitudes.
Todavia, este é um hino bastante melancólico, até porque, associado ao mito mais óbvio, surge outro, o de Tântalo, cujo castigo consiste na perpétua tentativa frustrada de alcançar os frutos que saciariam a sua fome. Assim se justifica que o poeta se/nos aconselhe a ir “colhendo / Ilusões sucessivas no pomar”: trata-se de frutos que, se não são proibidos, pelo menos são apetecíveis. Porém, não são totalmente satisfatórios: por mais que desfrutemos deles, “nenhum fruto” se exime da sua falsidade. Daí que o poeta/leitor/ser humano “nunca [fique] saciado”.
Dir-se-ia que o que sucede neste poema é semelhante ao que se passa no conto “Cegarrega”, também de Miguel Torga: retomam-se as narrativas clássicas para lançar sobre elas uma luz renovada, que tende a pôr em causa interpretações levianas ou pré-fabricadas a que nos tenhamos, porventura, habituado. O conto de Os Bichos recupera a fábula de Esopo, elogiando a louvável perseverança da cigarra, com a qual o poeta se identifica, e pondo em evidência a mesquinha insensibilidade da formiga, que não sabe (ou não quer) apreciar o triunfo que representa esse ruído estridente, que “até azamboa a gente”. O poema “Sísifo”, por seu turno, retoma o mito do rei de Éfira, condenado a empurrar um rochedo até ao topo de uma colina, no Inferno, durante toda a eternidade, já que este rolaria pela encosta abaixo sempre que estivesse prestes a chegar ao cume.
Recomeçar, nesta lenda grega (tal como no suplício de Tântalo), é, pois, uma terrível condenação. No poema, contudo, surge como uma espécie de conselho sábio oferecido por alguém que, desde logo, recomenda que a tarefa seja encarada com tranquilidade e vagar (“Se puderes, / Sem angústia e sem pressa”). E podemos concluir que existe a intenção de suavizar o carácter árduo e possivelmente frustrante de um percurso continuamente repetido, por meio de uma atitude mais optimista, que valoriza os aspectos positivos do esforço empreendido: o “homem” a quem o poeta se dirige é incentivado a assumir-se como senhor do seu destino e a usufruir das sucessivas oportunidades que a vida lhe oferece, na busca de realização.
Assim, o verbo recomeçar vê-se aqui aliviado da carga pesada, negativa, que os dois mitos gregos lhe conferem, para se converter numa poderosa forma de exercer a vontade própria, através da qual é possível alcançar a valorização pessoal e moral, por meio da autonomia (“os passos que deres […] Dá-os em liberdade”), da perseverança (“Enquanto não alcances / Não descanses”), da exigência (“De nenhum fruto queiras só metade”), da sabedoria (“Vendo / Acordado, / O logro da aventura”) e da hombridade (“És homem, não te esqueças!”).
Esta “aventura” não deixa de ser uma armadilha de enganos permanentes: o “pomar” está cheio de frutos que, mesmo depois de alcançados e degustados na totalidade, deixarão na boca humana um sabor a falsidade. As “Ilusões sucessivas” são para “colher”, sim. Porém, é crucial que as saibamos identificar como tal. Digamos que esse é o primeiro patamar da lucidez.
Condicionados que somos por toda a espécie de limitações, fraudes e quimeras, podemos, ainda assim, orgulhar-nos do “caminho” que escolhemos, contanto que saibamos ter a sensatez necessária para nos aceitarmos (ou reconhecermos) como somos, por mais insano que o nosso percurso de vida se afigure: “Vendo / Acordado, o logro da aventura”. Cada um de nós pode sentir-se infeliz, mas poderá sempre encontrar dentro de si a satisfação de se saber livre e saudavelmente louco. É esse o segundo patamar.
“És homem, não te esqueças!” – isto é: humanidade não é apenas consciência, é também livre arbítrio. É através da lucidez que se adquire o direito de ser dono da sua própria loucura: «Só é tua a loucura / Onde, com lucidez, te reconheças». E neste aparente paradoxo reside o expoente máximo da liberdade humana, e mesmo da humanidade, o traço distintivo da nossa espécie. Afinal, graças ao dom da consciência, só nós temos a capacidade para reconhecermos que somos insanos. De resto, sem loucura, o homem não seria mais do que um ser puramente racional. Ou, nas palavras de D. Sebastião, escritas pela pena de Fernando Pessoa: «besta sadia, / Cadáver adiado que procria».



***

Texto de apoio 2

Maria Helena da Rocha Pereira entende que no poema [“Sísifo”] “se combinam o nunca desmentido espírito de resistência do poeta, simbolizado no retomar sucessivo da tarefa de empurrar a pedra até ao cume da montanha, não obstante saber que a cada tentativa se seguirá nova queda, com a indomável ânsia de prosseguir o seu sonho”.206

José Carlos Seabra Pereira postula que “(…) em Miguel Torga justifica-se que consideremos que Anteu e Sísifo, Prometeu e Orfeu, Cristo e Camões, são estações analógicas na via crucis da agónica glorificação identitária.”208 Na nossa opinião, as figuras míticas, para além de o identificarem enquanto Homem, revelam-no também enquanto Poeta.

Aqui encontramos Sísifo, depois de a pedra ter inevitavelmente rolado pela escarpa abaixo. Recomeça…, incita o sujeito poético, usando contudo, as reticências, pois a ação implica construir e fazer um caminho que já se percorreu e conhecer de antemão que, depois de tudo, tem de se reconstruir e refazer. O eu lírico reconhece que é um caminho duro, mas os passos devem ser dados em liberdade. Conselheiro, e de forma quase sentenciosa, afirma: Enquanto não alcances / Não descanses. Ora, o verbo alcançar, aqui privado da sua transitividade, permite-nos completar a frase com o complemento direto que considerarmos adequado. Pode ser a ilusão, sonho ou a aventura da segunda estrofe. Pode ainda ser a loucura humana, aqui positivamente encarada. Recordando-nos Horácio ou Ricardo Reis, a primeira estrofe termina proverbialmente: De nenhum fruto queiras só metade.

O início da segunda estrofe remete-nos novamente para o mito de Tântalo, embora aqui o homem seja mais ativo, colhendo os frutos do pomar, mesmo que sejam ilusões. Consciente (vendoacordadolucidezreconheças) do seu fracasso, do seu logro, o ser humano deve continuamente, orgulhoso da sua condição (És homem, não te esqueças!), carregar a sua pedra.

Este poema é um hino à condição humana. Ao homem que cai e se levanta, continuando a carregar a sua cruz, referência bíblica tantas vezes recuperada por Torga. Ao Sísifo que, com suor e sangue, fez rolar a pedra até ao cimo do monte e agora a vê deslizar uma vez mais. Mas que, não mecânica, mas conscientemente, a recupera e recomeça o seu trabalho infinito. Não o faz resignado, pelo contrário, é sem angústia e sem pressa que retoma os seus passos no mesmo trilho. Assim é o Homem. Assim, o Poeta. O seu trabalho, manual e visceral, nunca está acabado.

Este Sísifo, pleno de sabedoria de vida, recupera os primórdios do mito. Segundo Pierre Brunel, discorrendo sobre a figura mítica, o antropónimo teria sido criado através de si syphos, ou seja, “redoublement intensif de sophos209, designando alguém muito sábio e subtil. “Sisyphe serait alors une manière de super-Ulysse”210. Por isso, esta figura é frequentemente associada aos poetas.

Sísifo empurra a pedra eternamente, mas porque dá continuidade às ações que praticara em vida, ele que foi o construtor de Acrocorinto. Pierre Brunel desfaz as dúvidas sobre eventuais paradoxos na análise da figura que tem um trabalho manual, mas que se religa ao intelectual:

“Désespérément retenu au sol par la pierre, et peut-être aussi par cette pensée de la terre qui lempêchait daspirer à lInconnu, il est lanti-poète par excellence. Tout au plus en fera-t-on le patron des ouvriers du verbe, de ceux qui manient les mots et les tropes comme il transportait les lourds moellons vers le sommet de lAcrocorinthe.211

No poema apresentado, Torga, embora mantenha Sísifo na sombra de supliciado que é, acende nele os sonhos possíveis à humanidade.

O poeta conheceu em Homero, pela boca de Ulisses, este eterno condenado:

“Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,

Tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa. 112

Esforçando-se para empurrar com as mãos e os pés,

conseguia levá-la até ao cume do monte; mas quando ia

a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,

e rolava para a planície a pedra sem vergonha.

Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros

escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.”212

 

Ovídio também retrata este suplício e, embora o faça de forma muito sucinta (“Aut petis aut urges rediturum, Sisyphe, saxum”213), a repetição, as aliterações e o ritmo do único verso recuperam a mecanização da tarefa.

Contudo, conhecendo as duas versões do mito, de que Torga dispunha, entendemos que foi da Odisseia que ele bebeu a sua essência. Sísifo é o que sofre grandes tormentos (κραηρ λγε τονηα)214, o que carrega, com os seus próprios mãos e pés (τερζίν ηε ποζίν)215, a pedra monstruosa αν πελώριον)216. O Sísifo de Torga executa um esforçado trabalho manual, que, orgânico, lhe faz escorrer o suor (δρς)217 pelo rosto, levantando a poeira (κονίη)218 do chão. E, no entanto, esta visão do mito não o afasta da poesia. Muito pelo contrário, este condenado realiza um labor infindável muito semelhante ao que o poeta Miguel Torga tem com as palavras. Clara Rocha chega mesmo a afirmar que “o poeta é condenado da escrita”, “corta a pedra dos versos e afeiçoa-a num esforço de chegar ao cume da Poesia absoluta”219

Este é o ser que reencontramos em “Cantilena da Pedra”, poema que encerra o Diário X:

 

Coimbra, 30 de julho de 1968

 

CANTILENA DA PEDRA

 

Sem musa que me inspire,

Canto como um pedreiro

Que, de forma singela,

Embala a sua pedra pela serra fora…

Upa! que lá vai ela!

Upa! que vai agora!

A pedra penitente que eu arrasto

Tem o tamanho duma vida humana.

E só nesta toada a movimento,

Embora o salmo já me saia rouco.

Upa! meu sofrimento!

Upa! que falta pouco…”220

 

O canto do poeta, sem musa que inspire, é o de um simples obreiro, que, no seu labor manual quotidiano, transporta a sua pedra. Numa relação quase amorosa, o pedreiro-poeta não empurra já a pedra-poesia… Embala-a. E o cuidado que lhe dedica leva-o a usar a hipálage (pedra penitente), transferindo o seu sofrimento e condenação para a pedra poética. O pedreiro-Sísifo-poeta não para nunca, apesar do salmo rouco ou do seu sofrimento. A anáfora da interjeição, as exclamações e reticências, os versos curtos e oralizantes, dão-nos conta do percurso iterativo e sem fim.

A figura mítica é, para Torga, aquele que nunca tem descanso, nem em férias, chegando mesmo a empurrar-se a si mesmo, como as seguintes entradas do Diário demonstram:

“E tento refazer com a imaginação o mundo fraterno e nobilitador que a realidade destruiu. Um destino de Sísifo, com intervalos em que é ele próprio que roda desamparado pelos abismos. E que, quando se levanta do trambolhão, tem de redobrar a energia para se empurrar e à pedra.”221

“Sísifo em férias, tento manter a forma a fazer abanar esta turística penedia em equilíbrio precário, metendo-lhe os ombros. Não posso acostumar mal o corpo.”222

Embora não presente em nenhum dos poemas selecionados, ou mesmo nos do Diário, consideramos pertinente, uma vez que discorremos sobre a palavra trabalhada artesanalmente, referir brevemente a figura de Hefesto ou Vulcano. Também ele metaforiza o poeta. À semelhança do deus ou de Sísifo, o poeta é o que põe mãos à obra, é o artífice, o que realiza o trabalho manual árduo (à semelhança do lavrador223, atividade que Torga tanto gostava de realizar e de que não abdicava nem na sua casa, em Coimbra – para tal, fez um pequeno quintal à volta do edifício, imergindo em Geia, mesmo estando na urbe). Contrasta, neste aspeto, com Orfeu, o músico. Vejamos as palavras que o próprio autor nos legou no prefácio da sua Antologia:

“A vivência a comunicar formulada de uma vez para sempre, numa linguagem ao mesmo tempo tributária e original, transparente e críptica, que diga esperança quando nomeia o desespero e nimbe os esplendores do progresso dum halo sagrado. Ora semelhante milagre apenas se consegue, se se consegue, mediante um trabalho aceso de muitas horas, muitos dias, muitos anos – o ferro cada vez mais incandescente e o forjador aureolado das chispas que saltam da bigorna.”224

A Poesia é, assim, também obra manual, orgânica e visceral, esforçadamente empurrada por um condenado ou minuciosamente forjada pelo deus ferreiro.

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do DiárioFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

_________

206 PEREIRA, Maria Helena da Rocha, “Os mitos clássicos em Miguel Torga”, Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988) 291.

208 PEREIRA, José Carlos Seabra, “Identidade autoral e identidade nacional em Miguel Torga”, in AA. VV., Miguel Torga e a Literatura Intimista - Actas do Colóquio (Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra – Departamento de Cultura, 2005) 10.

209 BRUNEL, Pierre (dir.), “Sisyphe”, Dictionnaire des Mythes Littéraires (s/l: Editions du Rocher, 1994) 1295.

210 Ibidem.

211 Idem, 1300.

212 Odisseia, XI, 593-600. Tradução in op. cit., 197.

213 Metamorfoses, IV, 460.

214 Odisseia, XI, 593.

215 Idem, v. 595.

216 Idem, v. 594.

217 Idem, v. 599.

218 Idem, v. 600.

219 ROCHA, Clara, “A paz possível é não ter nenhuma”, in AA. VV., Sou Um Homem de Granito: Miguel Torga e o Seu Compromisso, seleção, organização e apresentação de Francisco Cota Fagundes (Lisboa: Salamandra, 1997) 97 e 98, respetivamente.

220 Diário X, 1136.

221 Diário VI, 656.

222 Diário XV, 1665.

223 “Nestes dias assim (e nos outros) o que me apetecia era acabar com a literatura por uma vez, e ir para S. Martinho cavar. Mas depois ponho-me a pensar se, no meio da lavoura, o meu destino de poeta me não faria erguer os olhos da leiva, contemplar o céu ou a alma, e escrever a seguir um poema na pá da enxada.”, in Diário II, 189.

224 Antologia, 24.



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  • O mito de Sísifo e o poema de Miguel Torga: o "até breve" de José Alberto Carvalho | Jornal das 8 | TVI Player: No final do Jornal das 8 de domingo, José Alberto Carvalho fez uma alusão ao mito de Sísifo: a lenda da mitologia grega acerca do mais arguto dos seres do Olimpo, que enganou o próprio Zeus e também o deus da morte, representado "numa espécie de escultura cinética que representa um movimento perpétuo". A escultura em Lego inspirou um poema profundo e nobre do português Miguel Torga, que o jornalista partilhou nesta altura, à luz da experiencia social e individual que temos vivido.  É com isto que quero dizer "até breve", concluiu José Alberto Carvalho.

 



  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013


 


 


CARREIRO, José. “Sísifo, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 29-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sisifo-miguel-torga.html



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