sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Memorando, Miguel Torga

"Quem adormece em democracia acorda em ditadura"
Grupo Antifascista Miguel Torga, https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17

 

 

Coimbra, 16 de dezembro de 1952

 

MEMORANDO

 

Senhor,

Se o meu tempo é de campos de concentração,

De bombas de hidrogénio e de maldição,

E de cruéis tiranos

Com pelos nos ouvidos e no coração,

Que ando eu a fazer aqui,

Funâmbulo de angústia

Com miragens de esperança?

Pois que não há lugar neste universo imundo

Para bucólicos prados de trigo e calhandras,

E foguetes festivos,

E chefes que eu eleja e destitua,

Corta lá no canhenho do destino

A humana condição de ser poeta!

Sinto em nome de todos que se calam

As vergastadas de absurdo e medo

Que consentes na alma dos mortais.

E como nada posso, senão isto:

Protestar, protestar,

Desta maneira inútil que tu vês

E o rebanho pressente,

Risco na ardósia dos obreiros laicos,

Que procuram sentido à tua obra,

O sagrado condão de dedilhar

Nas grades da gaiola que fizeste

Quando eras rapaz

E mal sonhavas quanto mal fazias.

Jovem deus criador,

Assombrado de cada imperfeição

Do barro da olaria,

Ias doirando esses desenganos

Com milagres gratuitos e originais.

Saía-te das mãos, cercada de incertezas,

A redonda amargura deste mundo;

Que remédio senão alguns harpistas

A entoar harmonias ideais!

Mas o tempo passou. Envelheceste.

Morreu-te a fantasia.

E queres a repressão dos que te negam

Ou te corrigem.

Eu e outros, perdidos neste inferno

Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,

Somos a consciência atormentada

Pelos anjos da guarda que te servem,

A trair os irmãos, tão condenados

Como eles.

Por caridade, pois,

E divina lisura,

Apaga lá no céu

A luz que representa

A vida destas pobres criaturas

Cuja missão traíste, por decrepitude.

Bardos da luz que punham nos teus olhos

E da graça do mágico universo

Que generosamente

Como um pomo irreal viam na tua mão,

Rangem agora os dentes de revolta

A falar de justiça,

De igualdade,

E de amor,

Coisas que já nem tu

Sabes que valores são.

Risca! Risca no livro etéreo

O infeliz e belo

Nome de Orfeu!

 

Miguel Torga, Diário VI

 

Silenciar Deus para ouvir o Poeta – e o homem

Ao primeiro verso, sabemos que ele dirige uma mensagem ao Senhor. O poeta questiona a Deus sobre os tempos difíceis e destaca o seu papel de homem esperançoso no meio de tanta tragédia. Se ele o está a questionar sobre isso, é porque acusa Deus de permitir que momentos cruéis desesperem a humanidade e pergunta-se por que, em meio a toda desgraça permitida por Ele, ainda assim mantém esperanças de modificar um quadro fatalista. Deus torna-se culpado por permitir que exista no mundo o que faz sofrer um coração humano e, então, o poeta culpa a um “Jovem deus criador, / Assombrado de cada imperfeição” de que ele na verdade tem medo de que conheçam sua imperfeição e não mais acreditem nele. Mas é o que acontece, inevitavelmente, em algum momento da vida do ser humano. Este cresce, evolui no tempo, começa a pensar e questionar e, não surpreendentemente, questiona também quem ou o que seja Deus. Isso não O não agrada muito e então reage: “Morreu-te a fantasia. / E queres a repressão dos que te negam / Ou te corrigem.”. Diante de tal impasse entre Deus e o homem consciente da imperfeição da divindade, o poeta pede a este que se esqueça dele e que não mais faça parte do mundo da fantasia divina: “Risca! Risca no livro etéreo / O infeliz e belo / Nome de Orfeu!”.

A mensagem não é dirigida a Deus, mas para quem nele crê e quem tem olhos de ver. Miguel Torga, ao começar aos poucos a desacreditar do divino até tornar-se descrente dos métodos que levam ao sagrado, não faz disso um alarde e tampouco tenta convencer a todos os outros de que também não devam acreditar. Seu humanismo é verdadeiro e respeita quaisquer escolhas que se façam que não fira a integridade humana no seu sentido pleno. Mas isto não o impede de escrever em forma de contos, poesia ou até mesmo em relatos intimistas nos Diários sobre o que vê e pensa. E o que vê é uma humanidade sofredora e o que pensa é que não se trata de punições ou avisos celestes.

Ainda no cenário introduzido pelo poema, vemos uma guerra em que os direitos humanos foram violados em todas as suas instâncias e das formas mais cruéis e dolorosas. Arbitrariamente a dignidade humana foi levada ao chão e a vida de um ser humano passava arrastada em humilhação sem motivos. A torpeza mostrou-se num nível que jamais se havia visto e jamais imagina-se que possa repetir-se igual ou pior. No comando de toda essa atrocidade, estava um “líder” intolerante, justificando suas ações de domínio com algumas razões ditas religiosas.

Mas antes mesmo de considerar a origem ou a motivação de tal barbárie que certamente não foi apenas religiosa o que choca e admira é o facto de haver homens a destruir outros homens, em tudo iguais: mesmos direitos de viver, dividindo o mesmo espaço, com capacidade de pensar suas escolhas antes de agir. Segundo a filosofia existencialista, todo homem faz as suas escolhas individual e livremente, mas tudo reflete-se na coletividade. Por existirmos, somos livres para dar o real valor às coisas, ou melhor, “Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda nossa época.” (SARTE, 1973, p. 13) Portanto, se a humanidade passou por esse e tantos outros tempos tormentosos, é porque, a começar pela escolha de um homem, acabou por levar outros para a mesma escolha, e então acabou por criar tais épocas sofredoras à humanidade.

O modo como Torga escolhe demonstrar o que pensa é utilizando em sua literatura através da representação do imaginário do sagrado dominante, afinal, não adiantaria remar contra uma maré muito mais forte. O escritor pode nos emocionar em seus contos com narrativas tocantes de gente humilde, como as da sua terra, que, por vezes, acaba por agir mal com o próximo. Também pode ser irónico, como no poema Memorando”, e de alguma forma também em Nihil Sibi, numa breve narrativa quase mítica. Mas a mensagem do poeta transmontano sobre a relação de Deus com o homem busca ser sempre a mesma: a de não se deixar inutilizar a sua liberdade natural, posto que o homem é o único ser que existe antes de tudo. E, principalmente, não permitir isso em nome de uma essência externa, que advém de um produto do imaginário, formulado posteriormente à sua existência, e não anterior a ela.

 

Juliana Morais, Humanamente divino: o poeta transcendido e transfigurado em Nihil Sibi (1948), de Miguel Torga. Viçosa, MG, 2015.


"P'ra cá no Marão fachos não entrarão"
https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17


 

Orfeu e Plutão

Orfeu, que desceu ao mundo de Plutão, surge agora a seu lado no longo poema “Memorando”, espécie de prece num mundo aterrador e incompreensível, que não é digno de poesia.

Ao longo deste poema, Torga regista disforicamente as características dos nossos tempos, como se vivêssemos na era de Plutão. Neste século infernal, tempo de campos de concentração, de bombas de hidrogénio, de cruéis tiranos com pelos no coração (note-se a grande expressividade do disfemismo), não há espaço para a beleza (bucólicos prados de trigo), para a alegria (foguetes festivos), para a democracia (chefes que eu eleja e destitua), em suma, não há espaço para a coexistência da Poesia. O deus a quem se ora, ou a quem se dirige o lamento, outrora foi jovem e, quando criou a humanidade (barro da olaria), era capaz de milagres gratuitos e originais. Contudo, o ideal, o sonho, a fantasia, morreram. A utopia deu lugar à repressão e à censura. Os Orfeus deste mundo, poetas rebeldes e revoltados, são a consciência atormentada da humanidade. Os que já foram fonte da luminosidade apolínea (luz, bardos de luz, graça, mágico universo, generosamente, justiça, igualdade, amor), rangem agora os dentes de revolta, pois o deus criador esqueceu e apagou os valores. Perdidos neste inferno / onde nenhum Plutão os ouve ou os tolera, subversão da tradição ovidiana e vergiliana do mito, os poetas querem tornar-se umbra, recusando pactuar com a degradação das aetates (recuperação de Hesíodo e de Ovídio). O poeta quer deixar registada esta prece, para que seja recordada pelos vindouros (não é por acaso que este memorandum surge inscrito num Diário, com todas as implicações simbólicas que tal possa acarretar). A sua prece é também um manifesto – o Poeta prefere ver extinta a sua voz, a vê-la subjugada pelos horrores de um deus envelhecido e sem ideais. Assim, grita das profundezas do seu ser: Risca! Risca no livro etéreo / o infeliz e belo / nome de Orfeu, porque este é permanente e eterno, porque é portador da Beleza e dos Valores, e não quer ver-se amesquinhado pela degradação dos tempora e dos mores, no dizer ciceroniano.

Uma vez mais, Orfeu metaforiza o Poeta e a Poesia, que, embora portadores da mensagem e da Beleza apolíneas, são empurrados, qual Eurídice puxada para o abismo pelas forças infernais, para as sombras, não possuindo já a capacidade de serem o farol, o facho de luz que orienta e guia a escuridão da humanidade.

Em dois diferentes discursos, registados no Diário, um proferido em Roma, em 1952, e o outro em Bruxelas, em 1977, o poeta associou a poesia à liberdade e à oposição aos poderes obscuros que tentam controlar (ou até silenciar) as vozes dos filhos de Orfeu. Transcrevemos os excertos de ambos os discursos por ordem cronológica:

“A poesia aproxima-se das Catacumbas! O espaço social reduz-se de tal maneira à sua volta, que será no subsolo dos impérios que a pequena família dos crentes manterá aceso o seu culto, vivendo e morrendo na graça duma fidelidade sem quebras, à espera do grande dia em que a luz do sol seja de novo o resplendor de Apolo. Os Césares do transitório decretaram-lhe o fim, temerosos da sua radiante inutilidade, homens de má consciência que são votados a um arranjo do mundo onde só consentiriam o cântico dos próprios crimes que ninguém canta. E como fora da lei só há o recurso à clandestinidade, eis os iluminados de agora, os filhos de Orfeu, em vésperas duma comunhão secreta nas galerias subterrâneas do mundo. (…)” (Diário VI)

 

“Ao mesmo tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação para os poderosos. Em todas as épocas os césares pretenderam simplesmente aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os méritos. Confusamente conscientes de que para cada verso existe um eco, que o verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um poeta e haja quem saiba ouvi-lo se gera uma corrente de comunicação a partir da qual já nenhuma inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural do que o desejo de mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos encantatórios ou prestigiando os vates oficiais, promovidos a príncipes da rima.” (Diário XII).

 

A poesia, à semelhança do que sucede no poema “Ariane”, adquire o estatuto de anti-poder. Embora forjada por vezes nas catacumbas, na sombra, reveste-se de luz e ilumina os homens. Tal como em “Memorando”, não é compatível com os horrores cometidos pelos Césares do transitório. Pertencente ao reino de resplendor de Apolo, sucessivamente tem sofrido tentativas de aniquilamento. Contudo, não sucumbe nunca aos poderes instituídos pelo nigri fera regia Ditis (Ovídio, Metamorfoses, IV, 438. Tradução (op. cit., 117): “selvagem palácio do negro Dite [Plutão]”).

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

 

"E em qualquer fresta estava a Liberdade", Miguel Torga,
https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga
, 2022-02-23


 

Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 


 


Memorando, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-09-30. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/memorando-miguel-torga.html


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