(Camões e o jau António, pelo pintor belga Ernest Slingeneyer)
Uma das
razões pelas quais a vida de Camões continua a ser um objeto de permanente
fascínio é o facto de sobre ela sabermos quase nada. Além da realidade material
do livro «Os Lusíadas» publicado em 1572, são poucas as provas documentais que
atestam acontecimentos na vida de Camões (note-se que, na sequência do Concílio
de Trento, a obrigatoriedade dos registos de batismo só entrou em vigor no
reinado do cardeal D. Henrique). O que temos então de concreto? Há o documento
do perdão concedido por D. João III (7 de março de 1553), depois de Camões ter
sido preso por causa da briga em que se envolveu perto do Rossio (em Lisboa),
documento esse que também refere a partida iminente de Luís para a Índia. E há
vários documentos relacionados com a pensão («tença») que lhe foi concedida por
D. Sebastião.
Estes
documentos (conservados na Torre do Tombo) registam os nomes dos pais de Camões
(Simão e Ana). O documento de D. João III descreve o pai de Camões como
«cavaleiro fidalgo»; Camões é descrito como «mancebo». Especialmente
significativo é um dos documentos (1582) que confirma o pagamento da tença à
mãe de Camões, porque regista a data em que o poeta morreu: 10 de junho de
1580.
Além
destas informações muito parcas, tudo o que sabemos sobre a vida de Camões
baseia-se: (1) numa breve passagem sobre Camões na obra historiográfica do seu
amigo Diogo do Couto; (2) numa breve anotação de Domingos Fernandes (1607), que
dá o lugar do seu nascimento como sendo Coimbra; (3) em quatro biografias
escritas no século XVII, mais de três décadas após a morte de Camões.
Os
autores dessas biografias foram Pedro de Mariz (1613), Manuel Severim de Faria
(1624) e Manuel de Faria e Sousa (1639); e temos ainda uma segunda biografia
(póstuma) do mesmo Faria e Sousa (1685), diferente da primeira.
Assim, ao
tentarmos reconstituir a vida de Camões, vemo-nos logo confrontados com
informações contraditórias. Vejamos estes exemplos.
Quanto ao
ano em que Camões nasceu, o primeiro biógrafo (Mariz) nada nos diz (nem regista
o ano em que Camões morreu). Informa apenas que o poeta era filho de Simão Vaz
de Camões, «natural desta cidade». Qual cidade? O livro em que figura a
biografia de Mariz foi publicado em Lisboa (mas Mariz era de Coimbra). Severim
de Faria regista que Camões nasceu em 1517, em Lisboa («e não em Coimbra, como
alguns cuidaram»). Faria e Sousa (1639) regista também 1517 como o ano do
nascimento do poeta, não se comprometendo com o local de nascimento (em vez
disso, faz uma comparação entre Camões e o rio Nilo: de um e de outro,
desconhece-se o lugar do nascimento).
Mas, na
sua segunda biografia de Camões (1685), Faria e Sousa decidiu-se por Lisboa
como o lugar em que o poeta nasceu; e afirma que viu um documento de 1550 onde
se fazia menção de «Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores
de Lisboa na Mouraria; escudeiro de 25 anos, barbiruivo». Conclui que Camões
nasceu em 1524.
Ora Faria
e Sousa (fidalgo e erudito de Felgueiras, que viveu em Espanha e em Roma) foi
um comentador brilhante de Camões, mas é tudo menos fidedigno. Na mesma página
em que alvitra 1524 como ano do nascimento do poeta, propõe que Camões veio
estudar na Universidade de Coimbra em 1534. Temos logo dois problemas: o
caloiro Luís teria então dez anos de idade; além disso, em 1534, a Universidade
estava sediada em Lisboa (viria para Coimbra em 1537).
Quanto ao
documento que Faria e Sousa afirma ter visto, não inspira muita confiança. Nos
seus comentários à obra de Camões, Faria e Sousa está sempre a propor
alterações ao texto camoniano com base em manuscritos que ele diz ter visto
(sem explicitar onde nem quando; nem que manuscritos seriam). Teve também o
péssimo hábito de atribuir a Camões poemas de outros autores; e de lhes alterar
os textos a seu bel-prazer. A verdade é esta: apesar de ter sido um comentador
genial de Camões (sobretudo por causa da sua espantosa erudição nas letras
latinas), Faria e Sousa não é de fiar quando se trata de factos concretos. Esse
documento que ele alega ter visto é uma «prova» de facticidade muito duvidosa.
Assim, o
dado mais concreto que temos sobre a vida de Camões é a carta de perdão de D.
João III (1553), da qual extraímos um elemento curioso sobre a personalidade de
Camões: o nosso Poeta fervia em pouca água e era um brigão. Por desconcertante
coincidência, este facto verídico (a rixa depois da qual Camões foi preso) não
é referido em nenhuma das primeiras quatro biografias de Camões.
O outro
facto verídico (a pensão ou tença concedida por D. Sebastião) é referido de
forma contraditória. Pedro Mariz (1613) dá a entender que a tença de 15.000
reis seria uma pensão de miséria. Mas Faria e Sousa (1685) exprime a opinião de
que era uma excelente pensão. Uma coisa em que todos os biógrafos concordam é a
pobreza em que Camões viveu toda a sua vida, devido à sua incapacidade de
segurar e gerir o dinheiro. Quanto mais tinha, mais gastava. Nisto, Camões
faz-nos pensar em Mozart (que ganhou tanto dinheiro, mas que viveu e morreu
esmagado por dívidas).
Destas
quatro biografias seiscentistas de Camões ressalta o enorme contraste entre a
alegada nobreza da sua linhagem (o poeta é referido como aparentado com os
maiores fidalgos de Portugal) e a pobreza na qual sempre viveu. Os biógrafos
também salientam as invejas e perseguições de que foi vítima, assim como a
ingratidão que Portugal lhe demonstrou enquanto era vivo. Pedro Mariz acertou
em cheio quando criticou a «natural propriedade Portuguesa de estimarem mais as
coisas de estrangeiros que as suas». Já éramos assim em 1613...
Foi Pedro
Mariz (1613) a registar pela primeira vez a figura do escravo que Camões trouxe
da Índia para Lisboa: se o Poeta «não tivera um jau, chamado António, que da
Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar», não teria
sobrevivido. Por «jau» deve entender-se «javanês» (Faria e Sousa [1685]
explicita que era «um escravo, cujo nome era António, natural de Java»).
Neste
quinto centenário de Camões, penso com muito carinho neste António, javanês,
que tratou de Luís quando ele estava prostrado pela miséria e pela doença.
Embora Camões tenha morrido sem um tostão num hospício de pobres, ainda bem que
houve um António («Jau») no fim da sua vida.
“Camões e Jau | Camões: 500 anos”,
Frederico Lourenço, Coimbra, 31-03-2024
A Grécia teve Homero e Roma teve
Vergílio. Itália teve Dante. Na literatura portuguesa, há um autor que não fica
um milímetro abaixo destes três génios supremos da arte poética: Luís de
Camões. Na verdade, os três génios supremos da poesia são quatro: Homero,
Vergílio, Dante e Camões.
Sabemos que Dante nasceu em
Florença e que Vergílio veio ao mundo perto de Mântua. Até sabemos a data exata
em que Vergílio nasceu: 15 de Outubro de 70 a.C. Mas, na incerteza sobre o
lugar do seu nascimento, Camões é um pouco como Homero. Havia tradicionalmente
sete cidades gregas que reivindicavam a honra de terem sido o berço de Homero;
mas, na realidade, ninguém sabia onde e quando o grande poeta grego nascera. No
caso de Camões, não serão sete as cidades que reclamam (de forma realista...) a
sua naturalidade: na contenda estão apenas Coimbra (referida como local do seu
nascimento por Domingos Fernandes em 1607); e Lisboa (referida nas biografias
que vieram depois).
Nenhum dos primeiros biógrafos de
Camões sabia ao certo o ano e o dia em que o poeta nascera. Acabou por se
convencionar 1524 ou 1525 como os anos mais prováveis para o seu nascimento,
por causa de um alegado indício documental (referido por Manuel de Faria e
Sousa no século XVII) de que Camões teria 25 anos em 1550; mas não podemos ter
a certeza. Teorias astrológico-astronómicas como as de Mário Saa (1940) e, mais
recentemente, de Carlota Simões apontam a possibilidade fascinante de Camões
ter nascido a 23 de Janeiro de 1524. Mas, para essa teoria ter chão em que se
possa apoiar, é preciso aceitar como autêntico um soneto cuja autoria camoniana
já foi posta em dúvida: o magnífico poema «O dia em que eu nasci moura e
pereça» (por «moura» entenda-se «morra»), do qual podemos dizer que, se não foi
Camões que o escreveu, decerto não se importaria de o ter escrito.
Para a celebração dos 500 anos do
poeta, porém, não interessa tanto o rigor (impossível de estabelecer) da data
real do seu nascimento, mas sim a oportunidade que esta comemoração oferece aos
povos lusófonos de relerem o maior autor da sua língua. Porque, na realidade, a
melhor homenagem que podemos fazer a Camões é relermos a sua obra.
E no que consiste essa obra? À
semelhança de outros poetas portugueses no século XVI, Camões morreu sem que a
sua grande produção lírica (sonetos, canções, elegias, odes, éclogas,
redondilhas) tivesse sido publicada. Mas ele teve a sorte de ter conseguido
imprimir, em 1572, a sua obra-prima: «Os Lusíadas». Esta epopeia em 10 cantos
sobre a primeira viagem à Índia de Vasco da Gama representa um conseguimento
extraordinário. Embora muitos outros poetas, depois de Homero e Vergílio,
tenham tentado o género épico (tanto em grego e latim como nas línguas
vernáculas), o único que (na minha opinião) conseguiu compor um poema que está
no mesmo nível da «Ilíada», da «Odisseia» e da «Eneida» foi Camões.
A grande beleza de «Os Lusíadas»
está no manejo da língua portuguesa, veículo de expressão que Camões enriqueceu
com inúmeros latinismos - como demonstrou, há quase 100 anos, Carlos Eugénio
Corrêa da Silva. Antes dele, é claro, outros estudiosos já tinham posto em
relevo a matriz latina de «Os Lusíadas», sobretudo Manuel de Faria e Sousa (no
século XVII) e Augusto Epifânio da Silva Dias (no início do século XX). Uma das
consequências lamentáveis da insuficiente exposição dos portugueses atuais à
língua da Roma antiga é que ficam limitados na sua compreensão da brilhante
pirotecnia verbal de «Os Lusíadas».
Mas também não faltaram, sobretudo
na segunda metade do século XX, estudiosos de Camões que se situaram no
espectro oposto de Corrêa da Silva e dos seus antecessores. Estes opositores da
ideia de um Camões culto e erudito gostaram mais de ver no nosso Poeta um génio
destravado e ininstruído. O mais curioso é que esta oposição entre a leitura
humanística de Camões e a (digamos assim) «romântica» é reflexo da capacidade
da obra camoniana para provocar paixões: as quais propiciam, por sua vez,
olhares profundamente divergentes (porque subjetivos) sobre o poeta.
Eu diria que a obra de Camões é tão
proteica que acaba por funcionar como uma espécie de borrão de Rorschach, em
que cada pessoa vê aquilo que quer. O Estado Novo exaltou «Os Lusíadas» como
epopeia patriótica que justificava o Império português; mas outros leitores de
Camões (com destaque para António José Saraiva) conseguiram ver no poema marcas
de crítica ao imperialismo. A respeito da poesia lírica camoniana,
desenvolveram-se teorias atrás de teorias sobre as mulheres da vida de Camões.
Mas como os textos propriamente ditos não confirmam nem refutam a ideia de uma
mulher em especial que teria inspirado a poesia amorosa do poeta, cada leitor
vê o que quer ver.
Assim, o monárquico José Maria
Rodrigues, professor e amigo do rei D. Manuel II, escreveu um livro (dedicado à
memória do assassinado infante D. Luís Filipe) em que defendeu a teoria de que
a grande paixão de Camões fora por uma infanta.
No século anterior, o alemão Storck
insistira que a mulher era D. Catarina de Ataíde. No final do século XX, José
Hermano Saraiva irritou alguns professores universitários com um livro (a que
Américo da Costa Ramalho chamou «ignorante») em que defendia a ideia de que
Camões se apaixonou primeiro pela condessa de Linhares (D. Violante) e depois
por uma filha dessa condessa. Eu próprio escrevi um romance em que Camões teria
estado apaixonado por um filho da mesma D. Violante. Se alguma coisa disto
fosse verdade, teríamos na vida de Camões uma situação picantíssima, precursora
do filme «Teorema» de Pier Paolo Pasolini.
Mas não me parece que as tentativas
de vislumbrar o «Luís real» por trás da poesia de Camões valham a pena, nem que
possam alguma vez obter confirmação objetiva. Porquê? Porque a obra camoniana é
ao mesmo tempo velada e aberta. Acena com o artifício da confissão íntima, para
nos tirar sempre o chão debaixo dos pés, mercê das suas muitas contradições,
ambiguidades e vaguezas. Para mim, esta qualidade misteriosa constitui o maior
atrativo da lírica camoniana, do mesmo modo que me deslumbra a qualidade
polifónica e pictórica de «Os Lusíadas» (e não vou esconder que adoro os
latinismos...).
Camões, 500 anos. Neste centenário
de Camões, é minha intenção partilhar convosco, de várias maneiras, os
pensamentos e as interrogações que a obra camoniana me suscita. Até breve!
“Rumo ao 5.º centenário de Camões | Camões: 500
anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 24-03-2024
O Velho do Restelo - lamento chocar-vos - talvez não
seja um homem. Poderá ser uma mulher. Estaríamos a falar, no fundo, da Velha do
Restelo.
Por incrível que pareça, foi na jesuítica revista
«Brotéria» que se deu o primeiro passo que levaria, ulteriormente, ao
desvendamento da identidade escondida do Velho do Restelo, concretamente no
número que saiu em Novembro de 1980.
Nesse volume da revista, o Dr. Joaquim Carvalho
publicava um artigo sobre Os Lusíadas em que argumentava o conhecimento, por
parte de Camões, do poema «Argonáutica», escrito por Apolónio de Rodes no
século III antes da era cristã.
Segundo a análise feita pelo Dr. Carvalho a passos do
poema «Argonáutica» (na tradução latina que Camões lera) e a passos d' Os
Lusíadas, haveria pormenores de riquíssimo significado que não eram
compreensíveis, na epopeia camoniana, a não ser que aceitássemos que Camões
estava a remeter para o antigo poema helenístico.
Li o artigo do Dr. Carvalho há muitos anos e, de
imediato, a pista de vasculhar em Apolónio de Rodes galvanizou a minha atenção.
Seria possível....? Faria sentido....? Seria aqui que eu encontraria a base
para justificar a minha intuição de que o Velho do Restelo era, na realidade,
uma Velha....?
Pensei logo na estância IV.90 d' Os Lusíadas, em que
uma mãe chorosa se despede do filho que vai embarcar para a Índia.
Meu Deus.... parecia-me óbvio! Estes versos eram a
recriação camoniana da despedida chorosa da mãe de Jasão, antes de o filho
embarcar para a Cólquida («Argonáutica» I.261-291).
Pus-me, na altura, a estudar debaixo do microscópio o
Canto I da «Argonáutica», comparando-o com o canto IV d' Os Lusíadas. Não me
saía da cabeça a ideia obsessiva de que o Velho do Restelo era um disfarce da
VelhA do Restelo.
A resposta apareceu em dois versos misteriosos do
poema de Apolónio de Rodes («Argonáutica» I.315-316). Esses versos fizeram-me
perceber que o Velho agoirento de Camões é o desenvolvimento de algo que
Apolónio elide.
Ou seja: Camões faz-nos ouvir a voz à qual Apolónio
tira a fala. As palavras que ficaram por dizer no poema do século III a.C. são
ditas, pela pena de Camões, no século XVI português.
Que palavras são essas? No poema de Apolónio, somos
colocados perante este momento de mistério e de silêncio: no momento em que os
Argonautas estão já a dirigir-se para a nau, avança ao seu encontro uma mulher
idosa.
Esta anciã é sacerdotisa de Ártemis e tem algo de
urgente para dizer ao herói, Jasão. No entanto, a multidão arrasta o herói até
à praia, antes que a anciã consiga verbalizar a sua profecia.
Apolónio pinta em dois versos a imagem da Velha
deixada para trás. Vêmo-la sozinha, silenciosa, na berma do caminho. As
palavras que lhe ficaram atravessadas na garganta nunca mais serão proferidas -
mas Apolónio consegue transmitir a sensação quase palpável de que a sua
importância é (ou teria sido) premente.
Nunca mais serão proferidas? Teriam ficado para sempre
não ditas, se Camões não tivesse ressuscitado a velha sacerdotisa de Ártemis,
colocando as palavras que ela nunca pôde dizer em voz alta na boca do Velho do
Restelo:
«Vã cobiça.... ó fraudulento gosto.... Que mortes, que
perigos, que tormentas, que crueldades.... Dura inquietação d'alma.... mísera
sorte, estranha condição!»
Ora diz-se que os maiores intérpretes literários não
são as pessoas das Letras, mas sim as pessoas dos sons, criadoras de música.
Ninguém entendeu melhor Goethe do que o compositor Hugo Wolf; ninguém entendeu
melhor a poesia de Michelangelo do que o mesmo Wolf ou Benjamin Britten;
ninguém entendeu melhor a poesia de Rainer Maria Rilke do que Paul Hindemith.
Em 1975, um jovem de 12 anos chamado Frederico
assistiu, no Teatro Nacional de São Carlos, à récita da ópera «O Canto da
Ocidental Praia», de António Vitorino d'Almeida. A ópera não foi especialmente
bem recebida pelo público e a segunda coisa de que me lembro dessa ocasião foi
de ouvir a minha mãe no intervalo, a conversar com o que se chamava na altura o
grupo dos «habitués» de São Carlos, sobre a última récita em que a minha mãe lá
tinha ouvido ópera. E todos diziam que, no «Così fan tutte» de Mozart, Teresa
Stich-Randall tinha sido sublime. O que equivalia a dizer que a presente ópera
portuguesa, com os seus cantores portugueses, não era grande coisa.
Se a ópera era grande coisa ou não já não vos saberia
dizer - nem eu confiaria hoje naquilo que teria sido meu gosto
musical aos 12 anos. Mas há, de facto, uma coisa dessa récita que ficou na
minha cabeça para sempre: a figura do Velho do Restelo, que entra em cena a
cantar «Ó vã cobiça!». Não me esquecerei nunca do chapéu à infante D. Henrique
na cabeça da cantora.
Sim, da cantora. Porque o Velho do Restelo - pelo
menos é essa a minha recordação - foi cantado por uma mulher, Dulce Cabrita.
Em 1975, os jesuítas da «Brotéria» ainda não tinham
publicado o artigo que levaria a que, graças ao Dr. Carvalho e (já agora) à
minha modesta pessoa, todos percebêssemos o que poderia estar por trás desta
intuição artística.
Mesmo sem o Dr. Carvalho e sem estas especulações do
futuro Frederico Lourenço (que, em 1975, como já referi, ainda só tinha 12
anos), mesmo assim, a abrir o Verão quente de 1975, o Velho do Restelo
assumira-se no palco do Teatro Nacional como Velha do Restelo, saudosa de uma
«Idade d'ouro» que, sem que ela o soubesse, estava lentamente a nascer: o
Portugal do pós 25 de Abril, de que todas e todos nos podemos orgulhar.
João Afonso Lima (Beira,
1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e
irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular
portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua
colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e
Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.
O poema "Mar Me
Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer,
do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página
da Lusofonia.
Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca
Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho
que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.
Luarmina ensombreada de um qualquer
silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia
de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.
Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se
embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.
Luarmina foi aprendendo mil defesas para
as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e
outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas
exatas memórias.
E como diz o avô Celestiano "o
coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e
apazigua ausências.
Avô Celestiano é a sabedoria do tempo.
Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e
conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.
"O que faz andar a estrada? … o
sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que
servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)»
Natália
Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação
dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e
colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em
maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)
Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita
não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente
para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade
de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas
e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma
durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que
outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números
começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E
isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.
Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O
monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra
os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram
partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o
povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas.
Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura.
Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só
assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é
obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é
obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela
educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.
A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um
poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este
papel”:
A subscrição foi submetida com
sucesso! Parte
inferior do formulário A mão ao assinar este papel arrasou
[uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
[taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu [domínio
sobre o homem por ter escrito um [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como [outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para [derramar.
O ato de escrever solidifica o pensamento, e este,
muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de
uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito,
para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no
terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade
monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras
baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei
económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu
o seguinte em 1910:
“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram
proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente
com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica
recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa
geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente
os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o
leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de
protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é
sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas
dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”
Voltando às ruínas:
O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de
ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma
espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser
pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e
o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só
para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.
A certa altura, durante a colonização inglesa da
Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia
era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra,
para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico
decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma
pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não
funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada,
corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da
História, capazes de coisas bem piores.
Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os
números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura
e a própria noção de humanidade.
Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma
crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta
desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto
pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para
criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens
apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.
O autor
revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à
estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números
ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma
sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as
necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação
e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade
mais bela e significativa.
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e
Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977
"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013)
Pode causar estranheza ao leitor porque a
receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação
de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto
literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano
Novo.
De acordo com o sujeito poético, quatro
ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do
arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou
sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão
perfeito no dia a dia que passe despercebido.
O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um
Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe,
enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.
O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar
por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si.
Tentei
fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um
telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.
Os prós
esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha
avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo
vazio.
E logo
ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo
em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como
se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a
resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e
se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.
Schopenhauer,
condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que
qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num
mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.
Mas que
ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!
Quando
comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que
não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma
enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.
É sempre
bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê
os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar
a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.
Essas
pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os
pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos
deprimidos do curral.
Schopenhauer
era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa,
e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida.
Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores)
que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.
Boas
entradas!
Crónica de Miguel Esteves
Cardoso, jornal Público, 31-12-2023
***
Antes de
acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a
enfrentar as agruras do próximo ano.
Poeta:
pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura
cómica.
Obviamente
haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem
poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira
de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.
E
obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma
perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má
tipo gripe, cancro ou joanetes.
Ainda
assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo
para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir
em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.
Repito,
até porque a repetição faz parte da poesia:
Poeta:
pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura.
De preferência, cómica.
Ao longo de sua carreira, Manuel
Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja,
eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo
como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas,
procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que
o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]
“Poética” integra o quarto livro de
poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930.
Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a
poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas.
Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética,
talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico
Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores
poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais
significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus
procedimentos líricos» (2003, p.107).
Quanto ao poema estar de acordo com
os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o
livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre
1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no
Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do
movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que
está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).
De acordo com “Poética”, a poesia
deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas,
dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma,
“Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que,
na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois
libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas
sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos”
(Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu
livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa
liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no
livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou,
como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade”
(apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa
da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um
fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).
Observamos que há um enunciado no
qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o
lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto
de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não
desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer
que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato
antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia
modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da
liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção
com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da
revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador
(a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou
seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo
livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os
valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está
afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no
movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética
renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um
abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que
era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).
Constatamos que o tema principal
deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu
título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES
apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera
características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo
lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas
são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é,
que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema
pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se
agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso
figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado,
funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de
apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro”
(Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos
universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso
figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou
farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e
sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o
último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras
contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de
cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de
rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos.
Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do
“lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há,
na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a
experimentação de novas formas artísticas.
Os quatro percursos figurativos
apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da
opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de
aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso
a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987,
p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja
pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de
interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos,
bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade –
corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais.
Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer
qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em
oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a
liberdade do “fazer poético”.
Diante do que foi exposto até aqui,
percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das
amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível
narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais
especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos
principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à
poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico
compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta
questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor
inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).
Com
relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma
“liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos
livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.
1.
Com
base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:
A) Critica
o lirismo louco do movimento modernista.
B)
Critica todo e qualquer lirismo na literatura.
C) Propõe
o retorno ao lirismo do movimento clássico.
D) Propõe
o retorno do movimento romântico.
E) Propõe
a criação de um novo lirismo.
Resposta: Alínea E.
Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que
demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”,
consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel
Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando
assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao
movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética,
razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não
retomou ao movimento clássico).
Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada
correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia,
tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se
originava das coisas corriqueiras da vida.
2.
Assinale
a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel
Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.
A) No poema, o poeta faz uso do
verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas
características associam o poema a correntes de vanguarda.
B) Nos versos “Todas as palavras
sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja
no poema a predominância da função poética.
C) No poema, o autor ressalta
como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos,
revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.
D) A leitura dos versos da quinta
estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta
Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas
românticos.
E) No poema, Manuel Bandeira faz
uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto
na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a
rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema
pertencente à estética Moderna.
Resposta: alínea C.
3.
Analise
as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema
acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.
( ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a
inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos
bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo
tradicional.
( ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos”
(20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos
destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido
original do texto e quanto à regência.
(
) Nos versos “Será contabilidade
tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de
cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora
possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o
gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio
de modificadores.
(
) O sinal gráfico ( [ ) nos
versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos,
assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras
gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e
literário.
(
) No verso “Quero antes o lirismo
dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem
como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos
loucos.
Assinale a alternativa correta,
de cima para baixo.
A) F – F
– F – V – F
B) V – V
– V – F – F
C) V – V
– F – V – F
D) V – F
– V – V – F
E) F – F
– V – F – F
Resposta: alínea D.
(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do
vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf;
gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)
Proposta de escrita
criativa
Já estudamos a construção e o
objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o
“Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o
poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético
predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de
nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa
realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.
Poética
ou ____________
Estou farto ____________
Do(da) ____________
Do (da) ____________
Estou ____________
Abaixo os(as) ____________
[...]
Quero ____________
O(a) ____________
O(a) ____________
O (a) ____________
- Não quero mais saber do(da) ____________
(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível
em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)