Nesta cantiga, o tema da insónia, provocada pela
ausência do amado, atinge um ponto de extrema tensão emocional e a nostalgia da
intimidade perdida - que ela também evoca - reveste-se de uma perturbante
flagrância sensorial.
David Mourão-Ferreira,
"Mais alguns trovadores do
período afonsino", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 277-282.
“XI-
Sen meu amigo manh’ eu senlheira - Juião Bolseiro”, Ilustração de Antonio García Patiño http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg |
Sem meu amigo manh'eu1
senlheira,2
e sol nom3
dormem estes olhos meus,
e, quant'eu posso, peç'a
luz a Deus
e nom mi a dá, per nulha4
maneira,
mais, se masesse com meu amigo,
a luz agora seria migo.5
Quand'eu com meu amigo
dormia,
a noite nom durava nulha
rem,6
e ora dur'a noit'e vai e
vem,
nom vem [a] luz nem
parec'o7 dia,
mais, se masesse com meu amigo,
a luz agora seria migo.
E segundo com'a mi
parece,
u8 migo9
mam10 meu lum'e meu senhor,
vem log'a luz, de que
nom hei sabor11,
e ora vai noit'e vem e
crece;
mais, se masesse com meu amigo,
a luz agora seria migo.
Pater Nostrus rez'eu mais de cento
por Aquel que morreu na
vera cruz,
que el mi mostre mui
ced[o]12 a luz,
mais mostra-mi as noites
d'Avento;13
mais, se masesse com meu amigo,
a luz agora seria migo.
Cantiga de Amigo de Juião Bolseiro
MANUSCRITOS: B 1165, V 771
(C 1165)
NOTAS:
1. maer - ficar
durante a noite, pernoitar.
2. senlheiro –
sozinho.
3. sol nom - nem
mesmo.
4. nulho –
nenhum.
5. migo – comigo.
6. nulha rem -
nada, coisa nenhuma.
7. parecer –
aparecer.
8. u – quando.
9. Em B e V, comigo.
10. maer - ficar
durante a noite, pernoitar.
11. haver sabor –
gostar.
12. cedo - em
breve, rapidamente.
13. Avento -
Advento. No calendário religioso, as quatro semanas que antecedem o Natal (note-se
que são as noites mais longas do ano).
PARÁFRASE:
Sem o meu amigo sinto-me
sozinha
e não adormecem estes
olhos meus.
Tanto quanto posso peço
a luz de Deus
e Deus não permite que a
luz seja minha.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Quando eu a seu lado
folgava e dormia
depressa passavam as
noites; agora
vai e vem a noite, a
manhã demora;
demora-se a luz e não
nasce o dia.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Diferente é a noite
quando ele aparece
meu lume e senhor e o
dia me traz;
pois apenas chega logo a
luz se faz.
Vai-se agora a noite,
vem de novo e cresce.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Padres-nossos já rezei
mais de um cento
implorando Àquele que
morreu na cruz
que cedo me mostre
novamente a luz
em vez destas longas
noites de Advento.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Cantares dos trovadores galego-portugueses, seleção, introdução, notas e adaptação de
Natália Correia, Lisboa, Editorial Estampa, 1978
NOTA GERAL:
Sem o seu amigo, sozinha, a donzela
não consegue dormir, e, por mais que reze para que chegue a manhã, a noite
parece não ter fim; quando dorme com o seu amigo, no entanto, acontece
exatamente o contrário: as noites passam num instante e é logo dia
(infelizmente). Assim, tentando ocupar o tempo (e chamar o sono), como adianta
na última estrofe, ela reza mais de cem Pai Nossos, sem resultado: sozinha, sem
o seu amigo, todas as noites são noites de Inverno, longas e intermináveis.
A descrição de uma insónia de amor ou
o modo como sentimos o tempo passar em diferentes circunstâncias estão no centro
desta bela cantiga de Juião Bolseiro (que retoma o tema em duas
outras cantigas, que formam, com esta, um pequeno
ciclo). Note-se, de resto, que o último verso do refrão acrescenta uma força
poética suplementar à cantiga, uma vez que, para além da leitura literal, ele
permite uma outra leitura: o amigo ausente é a luz que ilumina a sua vida.
É de salientar ainda que, se a
ausência do amigo é um dos motivos mais habituais nas cantigas de amigo, é
muito rara a indicação explícita da consumação do amor, como acontece aqui (na
referência às noites que ambos passaram juntos).
Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al.
(2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online].
Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22]
Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1195>.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
- O tema da insónia na literatura - e em particular o canto da solidão noturna - é também desenvolvido por Juião Bolseiro em cantigas como “Da noite d' eire poderam fazer” e “Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia” e por Pedro Anes Solaz/Pedr’Eanes Solaz na cantiga "Eu velida nom dormia".
- “Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html
CARREIRO, José. “Sem
meu amigo manh'eu senlheira, Juião Bolseiro”. Portugal, Folha de Poesia,
27-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/sem-meu-amigo-manheu-senlheira-juiao.html
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