quarta-feira, 27 de julho de 2022

Sem meu amigo manh'eu senlheira, Juião Bolseiro

Nesta cantiga, o tema da insónia, provocada pela ausência do amado, atinge um ponto de extrema tensão emocional e a nostalgia da intimidade perdida - que ela também evoca - reveste-se de uma perturbante flagrância sensorial.

David Mourão-Ferreira, "Mais alguns trovadores do período afonsino", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 277-282.


“XI- Sen meu amigo manh’ eu senlheira - Juião Bolseiro”, Ilustração de Antonio García Patiño
http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg

         

 

Sem meu amigo manh'eu1 senlheira,2

e sol nom3 dormem estes olhos meus,

e, quant'eu posso, peç'a luz a Deus

e nom mi a dá, per nulha4 maneira,

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.5

 

Quand'eu com meu amigo dormia,

a noite nom durava nulha rem,6

e ora dur'a noit'e vai e vem,

nom vem [a] luz nem parec'o7 dia,

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

E segundo com'a mi parece,

u8 migo9 mam10 meu lum'e meu senhor,

vem log'a luz, de que nom hei sabor11,

e ora vai noit'e vem e crece;

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

Pater Nostrus rez'eu mais de cento

por Aquel que morreu na vera cruz,

que el mi mostre mui ced[o]12 a luz,

mais mostra-mi as noites d'Avento;13

mais, se masesse com meu amigo,

a luz agora seria migo.

 

Cantiga de Amigo de Juião Bolseiro

 

MANUSCRITOS: B 1165, V 771

(C 1165)

 

 

NOTAS:

1. maer - ficar durante a noite, pernoitar.

2. senlheiro – sozinho.

3. sol nom - nem mesmo.

4. nulho – nenhum.

5. migo – comigo.

6. nulha rem - nada, coisa nenhuma.

7. parecer – aparecer.

8. u – quando.

9. Em B e V, comigo.

10. maer - ficar durante a noite, pernoitar.

11. haver sabor – gostar.

12. cedo - em breve, rapidamente.

13. Avento - Advento. No calendário religioso, as quatro semanas que antecedem o Natal (note-se que são as noites mais longas do ano).

 

 

PARÁFRASE:

 

Sem o meu amigo sinto-me sozinha

e não adormecem estes olhos meus.

Tanto quanto posso peço a luz de Deus

e Deus não permite que a luz seja minha.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Quando eu a seu lado folgava e dormia

depressa passavam as noites; agora

vai e vem a noite, a manhã demora;

demora-se a luz e não nasce o dia.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Diferente é a noite quando ele aparece

meu lume e senhor e o dia me traz;

pois apenas chega logo a luz se faz.

Vai-se agora a noite, vem de novo e cresce.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Padres-nossos já rezei mais de um cento

implorando Àquele que morreu na cruz

que cedo me mostre novamente a luz

em vez destas longas noites de Advento.

Mas se eu ficasse com o meu amigo

a luz agora estaria comigo.

 

Cantares dos trovadores galego-portugueses, seleção, introdução, notas e adaptação de Natália Correia, Lisboa, Editorial Estampa, 1978


NOTA GERAL:

Sem o seu amigo, sozinha, a donzela não consegue dormir, e, por mais que reze para que chegue a manhã, a noite parece não ter fim; quando dorme com o seu amigo, no entanto, acontece exatamente o contrário: as noites passam num instante e é logo dia (infelizmente). Assim, tentando ocupar o tempo (e chamar o sono), como adianta na última estrofe, ela reza mais de cem Pai Nossos, sem resultado: sozinha, sem o seu amigo, todas as noites são noites de Inverno, longas e intermináveis.

A descrição de uma insónia de amor ou o modo como sentimos o tempo passar em diferentes circunstâncias estão no centro desta bela cantiga de Juião Bolseiro (que retoma o tema em duas outras cantigas, que formam, com esta, um pequeno ciclo). Note-se, de resto, que o último verso do refrão acrescenta uma força poética suplementar à cantiga, uma vez que, para além da leitura literal, ele permite uma outra leitura: o amigo ausente é a luz que ilumina a sua vida.

É de salientar ainda que, se a ausência do amigo é um dos motivos mais habituais nas cantigas de amigo, é muito rara a indicação explícita da consumação do amor, como acontece aqui (na referência às noites que ambos passaram juntos).

 

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1195>.

 

 

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CARREIRO, José. “Sem meu amigo manh'eu senlheira, Juião Bolseiro”. Portugal, Folha de Poesia, 27-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/sem-meu-amigo-manheu-senlheira-juiao.html


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