No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...
s.d.
Quadras
ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e
prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1965. (6ª ed., 1973). - 117.
Disponível
em: http://arquivopessoa.net/textos/4240
Análise
do poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa
Estrutura
e forma
O poema "No comboio
descendente" de Fernando Pessoa é estruturado em três estrofes, cada uma
com seis versos. A forma fixa do poema destaca-se pela ênfase na sonoridade das
rimas, incluindo as internas. A repetição é um elemento crucial, visível na
métrica, no ritmo, na estrutura sintática e nos recursos sonoros, como
assonâncias e aliterações.
Função
da repetição
A repetição no poema tem o
propósito de induzir um estado de sonolência, semelhante às canções de ninar. A
repetição sintática e semântica cria um efeito de relaxamento, que acalma e
adormece os leitores, como se fossem crianças.
Primeira estrofe: de Queluz à Cruz Quebrada
Na primeira estrofe, o tom é de alegria e animação:
- Sonoridade vibrante: A aliteração com a consoante /k/ e os encontros consonantais /kr/ e /br/ no verso "De Queluz à Cruz Quebrada" evocam o som e a confusão típicos de uma viagem animada de comboio.
- Rima interna: A rima entre "Queluz" e "Cruz" reforça a ideia de repetição e alegria entre os passageiros.
Segunda estrofe: de Cruz Quebrada a Palmela
Na segunda estrofe, a atmosfera começa a acalmar:
- Transição para a calma: A sonoridade indica uma diminuição na agitação, sugerindo que os passageiros estão a acalmar à medida que a viagem continua.
Terceira estrofe: de Palmela a Portimão
Na terceira estrofe, há uma mudança de tom:
- Quebra da repetição: A estrutura paralela dos versos é interrompida pela expressão "Mas que grande reinação!", usada de forma irónica para indicar que, apesar da frase, a atmosfera agora é de sono.
- Sonoridade nasal: O último verso "De Palmela a Portimão" destaca sons nasais, que sugerem um ambiente tranquilo e os passageiros adormecidos.
Análise alegórica
O poema não descreve apenas uma viagem de comboio animada e barulhenta, mas também representa alegoricamente o processo de adormecimento:
- Transição de animação para sonolência: A sonoridade e a escolha das palavras ao longo do poema ilustram a transição da vivacidade para a calma e, finalmente, para o sono dos passageiros.
- Linguagem infantil: Expressões coloquiais como "reinação" e "dar-lhes trela" evocam uma linguagem simples e infantil, reforçando a sensação de uma canção de ninar.
Conclusão
Fernando Pessoa, no poema "No
comboio descendente", utiliza a repetição em múltiplos níveis para criar
um efeito tranquilizante. O poema leva o leitor de um estado de
alegria e excitação para uma serenidade sonolenta, refletindo o processo de
adormecimento. A estrutura sonora e a escolha das palavras contribuem para essa
transformação gradual, fazendo do poema uma rica alegoria do cair no sono.
Adaptado
de: “Fernando Pessoa e Cecília Meireles: o encontro entre poesia e
criança”, Alice Martha. Actas do IV Congresso Internacional da
Associação Portuguesa de Literatura Comparada – Estudos Literários/Estudos
Culturais. Universidade de Évora, maio 2001
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