quinta-feira, 27 de junho de 2024

No comboio descendente, Fernando Pessoa


 

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...

 

s.d.

Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).  - 117.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4240

 



Análise do poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa

Estrutura e forma

O poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa é estruturado em três estrofes, cada uma com seis versos. A forma fixa do poema destaca-se pela ênfase na sonoridade das rimas, incluindo as internas. A repetição é um elemento crucial, visível na métrica, no ritmo, na estrutura sintática e nos recursos sonoros, como assonâncias e aliterações.

Função da repetição

A repetição no poema tem o propósito de induzir um estado de sonolência, semelhante às canções de ninar. A repetição sintática e semântica cria um efeito de relaxamento, que acalma e adormece os leitores, como se fossem crianças.

Primeira estrofe: de Queluz à Cruz Quebrada

Na primeira estrofe, o tom é de alegria e animação:

  • Sonoridade vibrante: A aliteração com a consoante /k/ e os encontros consonantais /kr/ e /br/ no verso "De Queluz à Cruz Quebrada" evocam o som e a confusão típicos de uma viagem animada de comboio.
  • Rima interna: A rima entre "Queluz" e "Cruz" reforça a ideia de repetição e alegria entre os passageiros.

Segunda estrofe: de Cruz Quebrada a Palmela

Na segunda estrofe, a atmosfera começa a acalmar:

  • Transição para a calma: A sonoridade indica uma diminuição na agitação, sugerindo que os passageiros estão a acalmar à medida que a viagem continua.

Terceira estrofe: de Palmela a Portimão

Na terceira estrofe, há uma mudança de tom:

  • Quebra da repetição: A estrutura paralela dos versos é interrompida pela expressão "Mas que grande reinação!", usada de forma irónica para indicar que, apesar da frase, a atmosfera agora é de sono.
  • Sonoridade nasal: O último verso "De Palmela a Portimão" destaca sons nasais, que sugerem um ambiente tranquilo e os passageiros adormecidos.

Análise alegórica

O poema não descreve apenas uma viagem de comboio animada e barulhenta, mas também representa alegoricamente o processo de adormecimento:

  • Transição de animação para sonolência: A sonoridade e a escolha das palavras ao longo do poema ilustram a transição da vivacidade para a calma e, finalmente, para o sono dos passageiros.
  • Linguagem infantil: Expressões coloquiais como "reinação" e "dar-lhes trela" evocam uma linguagem simples e infantil, reforçando a sensação de uma canção de ninar.

Conclusão

Fernando Pessoa, no poema "No comboio descendente", utiliza a repetição em múltiplos níveis para criar um efeito tranquilizante. O poema leva o leitor de um estado de alegria e excitação para uma serenidade sonolenta, refletindo o processo de adormecimento. A estrutura sonora e a escolha das palavras contribuem para essa transformação gradual, fazendo do poema uma rica alegoria do cair no sono.

 

Adaptado de: “Fernando Pessoa e Cecília Meireles: o encontro entre poesia e criança”, Alice Martha. Actas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada – Estudos Literários/Estudos Culturais. Universidade de Évora, maio 2001

 



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