segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

«Tudo o que faço ou medito», Fernando Pessoa


 






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Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

 

13-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).  - 177. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2275

 

I - Leitura orientada do poema “Tudo que faço ou medito”, de Fernando Pessoa

Definição do tema

O poema constrói-se em torno do sentido da existência do poeta e da tomada de consciência desse sentido – pergunta-se o poeta não só o que é, mas o que faz e o que quer fazer. É um tema integrante da problemática do existencialismo, frequentemente levantada pela corrente da época, o modernismo, que rege, pelo menos em parte, a obra de Fernando Pessoa.

 

O conflito do poeta apoia-se num raciocínio antitético:

O recurso que o poeta utiliza mais predominantemente parece ser a antítese, presença constante na dialéctica do ser: "o infinito" e o "nada", a "alma lúcida e rica" que consegue ser simultaneamente um "mar de sargaço". (Vem regularmente associado ao paradoxo, ao que só é se o não for, tomando especial notoriedade a ideia do "mar onde bóiam fragmentos de um mar".) (vv. 10-11)

 

O verso que nos mostra uma síntese chocante dessa dialética interior e individual do sujeito poético é o que conclui o poema: "Não o sei e sei-o bem"

 

A antítese projeta-se ao nível da consciência do eu:

(Outra forma paradoxal é a do raciocínio que não analisa só as coisas, mas também a tomada de consciência delas – paradoxal na medida em que se põe em causa a si próprio, se envolve num novelo de abstração quase lunática.)

 

O "mar de sargaço" é a melhor ideia desse estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de tomar, de assumir que toma a percepção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à procura de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se aproxima. É a insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística do que é.

 

A relação de sentido entre «um mar de sargaço» (8) e «um mar d'além» (10):

A dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo (1), o Infinito (3) – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que «bóiam lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que se reflectem ainda vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável marca de crença esotérica (secreta oculta misteriosa) num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido...)

 

Nesta auto-análise, Pessoa manifesta a impossibilidade de uma transparência do "ser":

O ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.

A pessoa do poeta parece assim querer justificar a ignorância sobre si próprio com a complexidade sempre crescente do ser que priva o poeta da lucidez que procura nessa análise introspectiva.

 

Recurso estilístico utiliza o poeta para fazer recriar em nós essa impossibilidade:

Em compasso com as antíteses evidentes, temos no poema metáforas quando o poeta procura ilustrar-se a si mesmo e ao que pensa "um mar onde bóiam fragmentos de um outro mar". Tomamos aqui os fragmentos como formas diferentes de pensar, que assolam o primeiro mar (o próprio Pessoa) e se apropriam dele.

Adaptado de http://gape.ist.utl.pt/~pferreira/Escola/FPessoa.html (consultado em 06-12-2002) e de Para compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais, Porto Areal Editores, 2001.

 ***

 

II - Questionário sobre poema “Tudo que faço ou medito”, de Fernando Pessoa

1. Na primeira estrofe, apresenta-se uma oposição entre «querer» e «fazer». Explicite essa oposição.

2. Ao tomar consciência das limitações da sua capacidade de agir, que sentimento invade o sujeito poético? Transcreva as expressões em que se apoia a sua resposta.

3. Mostre a expressividade, a nível semântico e a nível fonético, das metáforas: «Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de sargaço».

4. Qual a relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»?

5. Identifique a figura de estilo presente nos últimos dois versos do poema. Justifique-a em cada uma das ocorrências.

(Adaptado de Prova Escrita de Português, 11.° ano, Cursos Complementares Diurnos, 1991, 1.ª Fase, 2.ª Chamada)

 

Chave de correção:

1. Oposição entre «querer» e «fazer»:

- imaginação («querer») = sonho, desejo de absoluto;

- realização = insatisfação, limitação, incompletude.

2. Sentimento invade o sujeito poético ao tomar consciência das limitações da sua capacidade de agir: desencanto, frustração, deceção, desapontamento, insatisfação, malogro.

Expressões exemplificativas: «Que nojo de mim fica / Ao olhar para o que faço!» (vv. 5-6) («nojo»: repugnância; náusea; asco; pesar; tristeza; luto).

3. Expressividade das metáforas: «Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de sargaço»:

- A nível semântico: contraste entre a limpidez e o valor conotados com a expressão «lúcida e rica» e o opaco e o imundo de «mar de sargaço». O "mar de sargaço" é a melhor ideia desse estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de tomar, de assumir que toma a perceção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à procura de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se aproxima. É a insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística do que é. O ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.

- A nível fonético: oposição entre as vogais doces «i», «u» da primeira expressão e o fonema áspero aberto de «mar de sargaço».

4. Relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»:

A dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo, o Infinito – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que «boiam lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que se refletem ainda vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável marca de crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido...).

A interpretação processa-se a dois níveis: 1.º - o SER consciente está aquém e manifesta-se como o vestígio (fragmento) do subconsciente. 2.º - marca de crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido…

5. A figura de estilo comum aos últimos dois versos do poema é a antítese:

- no v. 11, opõe o sentir ao pensar e mostra o estado confuso do sujeito poético;

- no v. 12, exprime um conhecimento intuído que não percecionado pela razão e mostra também o estado confuso do sujeito poético.

 

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