quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O Mostrengo, Fernando Pessoa

 


 

O Mostrengo

 





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O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu1 ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»

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«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas2 que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»


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Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

 

9-9-1918

Fernando Pessoa, Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, Porto, Assírio & Alvim, 2014, pp. 89-90.

 

NOTAS

1 breu – escuridão.

2 quilhas – peças do fundo das embarcações.

 

Textos de apoio

 

O Mostrengo

Mostrengo, presente na Mensagem de Fernando Pessoa, corresponde à figura do Adamastor de Os Lusíadas, de Camões. Como este, é o guardião do Mar Tenebroso, no Cabo das Tormentas, mais tarde denominado da Boa Esperança.

Mostrengo é a personificação do medo e do receio. Como monstro é uma criatura contrária à natureza, à lei e à ordem estabelecida, mas, ao mesmo tempo, derivando etimologicamente do latim monstrum significa aquele que mostra, que revela. O Mostrengo, ao ser vencido, permitiu a revelação de um novo mundo aos Portugueses.

Tal como o Adamastor, surge como símbolo dos perigos e das dificuldades que se apresentam ao ser humano que quer conhecer novos mundos. É, também, símbolo das histórias fantásticas marítimas que amedrontavam. Ambos são não só o símbolo dos problemas a enfrentar quando se pretende explorar o desconhecido, mas também quando o homem deseja descer ao interior de si próprio.

A figura do Mostrengo mantém toda a simbologia do fantástico que se contava e que amedrontava mesmo os mais corajosos. O poema de Fernando Pessoa simboliza as dificuldades sentidas pelos portugueses na conquista do mar, contrapondo o medo com a coragem que permite que o homem ultrapasse os limites. Ao mesmo tempo, mostra a atitude de coragem do marinheiro português perante aquele ser imundo e grosso, vencendo os seus medos. O homem do leme torna-se o símbolo do Portugal que não tem medo e é representante de um povo de coragem que quer dominar os mares.

 

Porto Editora – O Mostrengo na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-12-07]. Disponível em 

 

***

Adamastor

É um dos gigantes mitológicos filhos da Terra, que se rebelaram contra Júpiter e foram vencidos.

N'Os Lusíadas (Canto V, 37-60), Camões apresenta-o metamorfoseado no Cabo das Tormentas, chamado depois da Boa Esperança, ameaçando os Portugueses com "naufrágios, perdições de toda a sorte/Que o menor mal de todos seja a morte ". Espera suma vingança de quem o descobriu (Bartolomeu Dias), de D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia e de Manuel de Sousa Sepúlveda, sua mulher e companheiros. Todos encontraram naquele local a morte, sendo tristemente famoso o naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda. Todas as profecias já faziam parte da nossa História Trágico-Marítima.

O episódio estrutura-se, basicamente, em dois momentos: a narrativa das ameaças e profecias da desgraça (V, 37-49) e a narrativa compungida da infelicidade amorosa do gigante (V, 50-60). Situado no momento central do Poema e no meio do Canto a que pertence, funciona como centro onde confluem as grandes linhas da epopeia: o real-maravilhoso (dificuldades e perigos da navegação do mar, sobretudo na passagem do Cabo), o lirismo amoroso (história de Amor fracassado) e a existência de profecias (histórias de Portugal).

A partir destas linhas, podemos descortinar o simbolismo do Adamastor. Em primeiro lugar, é o símbolo das forças cósmicas que o homem terá de vencer para alcançar a meta desejada; em segundo lugar, a sua destruição completa simboliza o domínio total dos mares pelos portugueses; em terceiro lugar, é o símbolo do anti-herói que desaparece para dar lugar aos verdadeiros heróis; finalmente, o seu drama amoroso simboliza e evidencia que o amor possessivo, o erotismo forçado, só pode levar à destruição.

 

Porto Editora – Adamastor na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-12-07]. Disponível em 

 

Propostas de exploração do texto

 

I – Questionário sobre o poema “O Mostrengo”, de Fernando Pessoa:

1. Relê a primeira estrofe do poema.

O que sente o homem do leme perante o mostrengo? Relaciona esse sentimento com três dos comportamentos do mostrengo.

 

2. Relê as falas do mostrengo.

Refere por palavras tuas em que consiste a ousadia do homem do leme.

 

3. Seleciona, nos itens 3.1. e 3.2., a opção que completa cada frase, de acordo com o texto.

3.1. O ritmo do poema é assegurado, entre outros aspetos, pelo uso de frases interrogativas e exclamativas, bem como pelo recurso a aliterações e a

A apóstrofes.

B anáforas.

C metáforas.

D versos em redondilha menor.

 

3.2. Na segunda estrofe, as interrogações presentes no discurso do mostrengo revelam, entre outros aspetos,

A indignação e inquietação.

B coragem e determinação.

C tranquilidade e autoridade.

D tristeza e desilusão.

 

4. Assinala todas as afirmações verdadeiras, de acordo com a globalidade do poema.

A O domínio do mostrengo é destacado pelo uso de possessivos.

B O homem do leme assume-se como personagem coletiva.

C A atitude dos protagonistas nunca se altera: um ameaça e o outro treme.

D O homem do leme, no confronto com o mostrengo, acaba por vencer o medo.

E O mostrengo é, para o homem do leme, um obstáculo inultrapassável.

 

5. O título, «O Mostrengo», destaca uma das personagens do poema.

Explica em que medida este destaque dado ao mostrengo contribui para reforçar o heroísmo do homem do leme.

 

6. Lê a estância 56 do Canto V de Os Lusíadas e a nota.

«Oh que não sei de nojo1 como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu' eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!»

 

Luís de Camões, Os Lusíadas, edição de A. J. da Costa Pimpão, 5.ª ed., Lisboa, IC-MNE, 2003, p. 137.

NOTA

1 de nojo – de vergonha.

 

6.1. Escreve um texto breve em que:

– identifiques a personagem que profere o discurso;

– refiras a causa da transformação dessa personagem num penedo;

– explicites a diferença entre o comportamento inicial do mostrengo no poema de Fernando Pessoa (vv. 1-16) e a atitude da personagem que profere o discurso na estância 56 do Canto V de Os Lusíadas.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Na resposta, deve referir-se:

– o que sente o homem do leme: medo;

– três comportamentos do mostrengo que desencadeiam o sentimento do homem do leme:

  • voar;
  • chiar;
  • rodar à volta da nau;
  • interpelar os tripulantes de forma assustadora;
  • surgir na noite «de breu».

 

Explicita, de forma completa, o que sente o homem do leme perante o mostrengo e relaciona esse sentimento com três dos comportamentos do mostrengo.

Exemplo:

O homem do leme ficou muito assustado, porque o mostrengo voava e chiava à volta da nau e falou de forma assustadora.

 

2. Na resposta, deve referir-se:

– o facto de o homem do leme ter ousado invadir o território do mostrengo;

– o facto de ninguém ter entrado antes nesse território.

 

Refere por palavras suas, de forma completa, em que consiste a ousadia do homem do leme.

Exemplo:

O homem do leme ousou invadir o território do mostrengo, onde ninguém tinha entrado.

 

3.1. Chave: (B)

 

3.2. Chave: (A)

 

4. Seleciona apenas as três opções corretas: A; B; D.

 

5. Na resposta, deve referir-se:

– o destaque dado pelo título: a grandeza do obstáculo a ultrapassar;

– o heroísmo do homem do leme: ser capaz de enfrentar um obstáculo tão difícil.

 

Explicita, de forma completa, em que medida o destaque dado ao mostrengo no título contribui para reforçar o heroísmo do homem do leme.

Exemplo:

O título reforça o heroísmo do homem do leme, porque destaca a grandeza do obstáculo que este teve de ultrapassar.

 

6.1. Na resposta, deve constar:

– a identificação da personagem que profere o discurso: o Adamastor;

– a causa da transformação do gigante Adamastor num penedo: o engano de amor / a ilusão de amor / pensar que estava a abraçar a amada;

– a diferença entre o comportamento inicial do mostrengo e a atitude do Adamastor: o mostrengo comporta-se de forma aterradora e o Adamastor assume uma atitude queixosa.

 

Aborda adequadamente os três tópicos.

Exemplo:

A personagem que profere o discurso é o Adamastor. O gigante transformou-se num penedo devido a uma ilusão de amor.

Podemos estabelecer uma relação de oposição entre o comportamento envergonhado do Adamastor e a atitude do mostrengo, já que este se revela muito agressivo e amedrontador.

 

Fonte: Prova Final de Português n.º 91 - 3.º Ciclo do Ensino Básico (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2019, 2.ª Fase

 

II – Texto expositivo sobre o Mostrengo e o Adamastor

Redige um texto expositivo, com um mínimo de 70 e um máximo de 100 palavras, em que apresentes linhas fundamentais de leitura do poema de Fernando Pessoa e em que relaciones este poema com o episódio «O Adamastor», de Os Lusíadas.

O teu texto deve incluir:

• uma parte introdutória, na qual identifiques as figuras que dialogam e o espaço onde se encontram;

• um desenvolvimento, no qual explicites as atitudes e os comportamentos das figuras que interagem e a forma como vão evoluindo ao longo do poema;

• uma parte final, em que relaciones o poema com o episódio «O Adamastor», de Os Lusíadas, apontando duas semelhanças entre ambos.

 

Cenário de resposta

Identifica as figuras que dialogam:

(a) Mostrengo e homem do leme.

 

Identifica o espaço em que se encontram:

(b) mar / «fim do mar» / Cabo da Boa Esperança / Cabo das Tormentas.

OU

nau (para o homem do leme) e «à roda da nau» (para o Mostrengo).

 

Explicita a atitude do Mostrengo:

(c) manifesta indignação pela afronta que representa a ousadia da invasão dos seus domínios.

 

Explicita a atitude inicial do homem do leme:

(d) manifesta medo ao tremer enquanto responde ao Mostrengo.

 

Explicita a evolução das atitudes e dos comportamentos das figuras:

(e) o homem do leme manifesta coragem e determinação, quando, vencido o medo, enfrenta o Mostrengo / o desconhecido;

(f) o Mostrengo mantém a sua atitude.

OU

o Mostrengo mantém a sua atitude, embora, na terceira estrofe, se registe o seu silêncio e apenas o

homem do leme intervenha.

 

Relaciona o poema com o episódio «O Adamastor», apontando duas semelhanças entre o poema e o episódio.

Por exemplo:

(g), (h) as figuras Mostrengo e Adamastor / o espaço / a interação entre a figura mitológica e a figura humana / a determinação face ao desconhecido.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Básico n.º 22 (Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro). Prova Escrita de Língua Portuguesa - 3.º Ciclo do Ensino Básico. Portugal, GAVE - Gabinete de Avaliação Educacional, 2009, 2.ª Chamada


Proposta de exercício expositivo sobre o Adamastor

 

Lê as estrofes 41 e 42 do Canto V de Os Lusíadas, a seguir transcritas, e responde, de forma completa e bem estruturada, ao item. Em caso de necessidade, consulta as notas e o vocabulário apresentados.

 

E disse: – Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas1

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados2 d’ estranho ou próprio lenho3;

 

Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento4,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos5

Estão a teu sobejo6 atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás de sojugar7 com dura guerra.

 

Luís de Camões, Os Lusíadas, edição de A. J. da Costa Pimpão, 5.ª ed., Lisboa, MNE/IC, 2003

 

VOCABULÁRIO E NOTAS:

1 quebrantas – quebras; violas.

2 arados – sulcados; percorridos.

3 lenho – barco.

4 húmido elemento – mar.

5 apercebidos – preparados.

6 sobejo – excessivo.

7 sojugar – subjugar.

 

Escreve um texto expositivo, com um mínimo de 70 e um máximo de 120 palavras, no qual explicites o conteúdo das estrofes 41 e 42.

O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão.

Organiza a informação da forma que considerares mais pertinente, tratando os sete tópicos apresentados a seguir. Se não mencionares ou se não tratares corretamente os dois primeiros tópicos, a tua resposta será classificada com zero pontos.

  • Indicação do episódio a que pertencem as estrofes.
  • Identificação da personagem referida através da expressão «gente ousada» (verso 1).
  • Explicitação de um aspeto que ilustre o carácter ousado dessa «gente» (verso 1).
  • Explicação do sentido da expressão «os danos de mi que apercebidos / Estão a teu sobejo atrevimento» (versos 13 e 14).
  • Indicação de um dos «danos» (verso 13) a que se faz referência, com base no teu conhecimento do episódio a que pertencem estas estrofes.
  • Justificação da importância dos dois últimos versos na glorificação do herói de Os Lusíadas.
  • Referência a uma semelhança entre estas estrofes e a Proposição de Os Lusíadas, relativamente à caracterização do herói.

 

Cenário de resposta

Indica o episódio:

(a) «O Adamastor»...

 

Identifica a personagem. Por exemplo:

(b) o povo português.

 

Explicita um aspeto. Por exemplo:

(c) trata-se de um povo que se aventurou a navegar em mares desconhecidos.

 

Explica o sentido da expressão:

(d) Adamastor refere-se aos castigos que preparou para punir o atrevimento dos portugueses.

 

Indica um dos «danos». Por exemplo:

(e) a ocorrência de naufrágios.

 

Justifica a importância dos dois últimos versos na glorificação do herói. Por exemplo:

(f) os versos glorificam o herói, uma vez que profetizam o domínio daquela região pelo povo português.

 

Refere uma semelhança. Por exemplo:

(g) tanto estas estrofes como a Proposição referem a determinação do herói no cumprimento da missão.

 

Nota – A ordem de apresentação da informação proposta no item não é vinculativa.

 

Fonte: Prova Final de Português n.º 91 - 3.º Ciclo do Ensino Básico (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2013, 1.ª Chamada

 

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“O Mostrengo, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 22-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-mostrengo-fernando-pessoa.html



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