sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Encoberto ou o Rosicrucismo na Mensagem, de Fernando Pessoa

 

Mensagem, de Fernando Pessoa

Terceira Parte: O Encoberto

Pax in excelsis

I - Os Símbolos

 


 

Quinto

O ENCOBERTO

 

Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

s.d.

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 87. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/102

 

ROSACRUZ


«A Rosa é, simultaneamente, o Cristo e o Encoberto, ambos são a Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação» (Silva Carvalho: 1981). Ou seja, a vida que, metade de nada, morre e se regenera. (Veríssimo: 2000, 141)

 

Rosicrucismo

Do rosicrucismo pode ler, numa enciclopédia ou num livro da especialidade, as suas remotas origens, os seus fundadores, as sociedades secretas que inspirou, a sua pretensa ligação à Maçonaria, aspetos que não cabem no âmbito deste estudo. O nosso propósito é bem mais modesto: trata-se tão-só de saber qual o interesse que o tema tem para a compreensão da Mensagem, designadamente do poema […] “O Encoberto” […].

Sobre o poema, ouçamos Carlos Castro da Silva Carvalho (1981, 32):

«Que símbolo é esse? Uma Rosa (A Vida, o Cristo, A Rosa do Encoberto) numa cruz (morta do mundo, o Destino, morta e fatal), isto é, o símbolo da rosacruz: sobre uma cruz, à volta do centro definido pelos dois madeiros, sete rosas, envolvendo uma oitava, essa implícita, no centra; o todo inscrito numa estrela de cinco pontas.

Este símbolo é, para os rosacruzes, um símbolo de geração que ‘contém a chave da evolução passada, constituição presente e desenvolvimento futuro do homem, além do método de realização desse desenvolvimento’ [Silva Carvalho cita Max Heindel]; a cruz representa o homem: ‘O madeiro maior representa o corpo, os dois horizontais, os dois braços, o madeiro curto, superior, representa a cabeça…’ e a Rosa, essa, o Libertador, o Cristo, o Cabeça Central, ‘… e a rosa está colocada no lugar da laringe’.»

[Outros autores situam esta rosa sobre o coração, símbolo da alma e da faculdade do conhecimento, simbologia ligada à do Sol, presente no poema.]


ROSACRUZ


Note, também, que o percurso seguido por Carlos Castro da Silva Carvalho lhe permite, com elevado acerto, concluir, intersecionando a religiosidade da rosa cruz com o misticismo nacionalista, que «a Rosa é simultaneamente o Cristo e o Encoberto, ambos são a Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação.»

Não menos importante é constatar, sem nos alongarmos na simbologia esotérica que atravessa o poema, que a rosa é, na iconografia cristã, o símbolo das chagas de Cristo e do sangue, que derramado, representa a redenção, a regeneração da vida, a ressurreição, a imortalidade. A mesma simbologia é, hereticamente, atribuída ao Encoberto no poema.

A estes elementos vem juntar-se o facto de «O Encoberto» ser justamente o quinto dos símbolos que a Mensagem inclui. Note que o número cinco é símbolo de um novo ciclo que começa, denunciado também, no poema, no ciclo do sol, saído da noite (e da morte), desde a «aurora ansiosa» ao despertar, passando pelo «dia já visto», onde a Rosa surge, significativamente, com um símbolo fecundo, divino e final.

Pressupõe este novo ciclo um recomeço, já anunciado nos «Símbolos» que, na Mensagem, precedem o poema consagrado ao Encoberto. Trata-se do já profetizado regresso de D. Sebastião, não do D. Sebastião «que houve» (M, 42), que este morreu em Alcácer, mas do que com Deus se guardou, i. e., um D. Sebastião mítico, sacralizado, profeta que, a si próprio, se anuncia como Messias. Note as maiúsculas heréticas em «O» e «Esse»:

É O que eu me sonhei que eterno dura,

É Esse que regressarei.

(M, 81)

Há de regressar, com a legitimidade de quem é o Desejado, (e aqui o rosicrucismo liga-se à simbologia da Demanda), «Galaaz com pátria», bramindo a «Excalibur do Fim», trazendo consigo o Quinto Império, a «Eucaristia Nova» contra a apatia do presente. Um regresso tornado indispensável e do qual se espera.

Que a sua Luz ao mundo dividido

Revele o Santo Graal!

(M, 84)

Uma espera que vive na ânsia e na impaciência do eu do poema que dá forma ao terceiro dos «avisos»:

Quando virás a ser o Cristo

De a quem morreu o falso Deus,

E a despertar do que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

Bibl.: Carlos Castro da Silva Carvalho, «Aspectos formais do nacionalismo místico da Mensagem», in Colóquio/Letras, n.º 62, julho de 1981, p. 26

 

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 119-121

 

 

A trajetória do Cristo e a sustentação do discurso prospetivo

Como temos visto, os poemas, tratando de um presente negativo, marcado pelo decaimento e pelo ostracismo da nação portuguesa, voltam-se para um futuro em que se dará o ressurgimento da proeminência de Portugal, principal tematização da última parte da obra. Essa tematização de Mensagem se explica pela atualização do ato preditivo próprio do discurso messiânico (..., então b), que envolve uma necessária sustentação (se a, ...).

No messianismo português, a crença numa condição de nação eleita é o que sustenta a previsão de retomada de uma proeminência análoga à do passado. Em última análise, os poemas que tematizam a constituição de Portugal (sobretudo na parte 1, Brasão) e seus feitos gloriosos durante a expansão ultramarina (notadamente na parte 2, Mar Português) constituem uma forma de busca de comunhão em torno da crença nessa eleição.

Mais concretamente, porém, há poemas que permitem observar uma sustentação do discurso preditivo na homologação da história de Portugal com a do Cristo. Essa aproximação, que atravessa diferentes poemas da obra, aparece no segundo poema, O das quinas, no qual se apresenta a “verso-máxima”: “Compra-se a glória com desgraça”. Ressalta-se aí o valor do sofrimento, tido como uma marca de eleição num processo de espiritualização associado a Portugal, como se viu, por exemplo, no poema “O Quinto Império”, já analisado. A confirmação dessa máxima se dá a partir do exemplo prototípico do Cristo: “Foi com desgraça e com vileza / Que deus ao Cristo definiu / Assim o opôs à Natureza / E Filho o ungiu”. Graças a esse poema, a trajetória de sofrimento (e de posterior glória) do Cristo associa-se à trajetória de Portugal, relação evocada em diferentes poemas de Mensagem.

Além do já analisado poema (Terceiro) que identifica o retorno do Encoberto com a parousia do Cristo, o poema D. Felipa de Lencastre (PESSOA, 2010, p. 30), por exemplo, remete à homologação de que falamos. A personagem histórica, chamada no poema de “Humano ventre do Império”, por ter sido mãe de vários membros da corte portuguesa e mesmo de monarcas, é associada à Virgem Maria (“Que arcanjo teus sonhos veio /Velar, maternos, um dia?”).

Já na parte 3 de Mensagem, a relação volta no símbolo maior do messianismo português: a figura do Encoberto. […]

Nesse poema, a identificação do Encoberto com o Cristo se dá graças à figura da Rosa, que, de acordo com Quesado (1999, p. 148), é um símbolo esotérico para a vida. Com efeito, vai-se da Vida que é Rosa, passa-se pela Rosa que é o Cristo e chega-se à Rosa do Encoberto, numa espécie de transferência (doação do objeto de valor vida, em termos narrativos) que sugere a ressurreição gloriosa do Encoberto, como a do Cristo. A cruz parece ser utilizada, no poema, como o símbolo ambíguo que é na simbologia cristã, indicando a morte salvadora do Cristo e, ao mesmo tempo, seu martírio necessário (“Na Cruz, que é o Destino/ A Rosa, que é o Cristo”).

Esses símbolos retomam, assim, a história de sacrifício do Cristo, trazendo do passado (“Que símbolo divino/ Traz o dia já visto?”) o exemplo que faz crer no ressurgimento de Portugal pelas mãos do Encoberto. Aqui ecoa o verso-máxima do já citado poema O das quinas: “compra-se a glória com desgraça”. A eleição implica, como no caso do Cristo, o necessário sofrimento (o destino) que antecede e assegura a vida gloriosa. Essa lógica é o que permite a geração do “símbolo final” (A Rosa do Encoberto), que já é possível observar no presente (“mostra o sol já desperto”), marcado, como no caso do Cristo, por um sofrimento fatalista (Na Cruz morta e fatal).

A nosso ver, os poemas analisados evidenciam que, de forma mais ampla, a crença numa eleição divina para um destino que mescla desgraça e glória e, de forma mais restrita, a homologação da história de Portugal à do Cristo são elementos que, retomados e reelaborados poeticamente pelo enunciador, remetem a um argumento de base para o discurso prospectivo. A explicitação da fórmula argumentativa resultaria num encadeamento como: se somos eleitos como foi o Cristo, então, como o Cristo, aguarda-nos uma ressurreição gloriosa, aqui atualizado num contexto de adesão prévia, como é próprio do gênero epidítico.

Clebson Brito, A configuração do discurso messiânico numa perspectiva semiótica e argumentativa. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2015

 

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O Encoberto ou o Rosicrucismo na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 30-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-encoberto-ou-o-rosicrucismo-na.html



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