Mensagem, de Fernando Pessoa
Terceira Parte: O Encoberto
Pax in excelsis
I - Os Símbolos
Quinto
O ENCOBERTO
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa.
Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed.
1972). - 87. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/102
ROSACRUZ |
«A Rosa é, simultaneamente, o Cristo e o Encoberto,
ambos são a Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação» (Silva Carvalho: 1981). Ou seja, a vida que, metade de nada, morre e se
regenera. (Veríssimo:
2000, 141)
Rosicrucismo
Do rosicrucismo pode ler,
numa enciclopédia ou num livro da especialidade, as suas remotas origens, os
seus fundadores, as sociedades secretas que inspirou, a sua pretensa ligação à
Maçonaria, aspetos que não cabem no âmbito deste estudo. O nosso propósito é bem
mais modesto: trata-se tão-só de saber qual o interesse que o tema tem para a
compreensão da Mensagem, designadamente do poema […] “O Encoberto” […].
Sobre o poema, ouçamos
Carlos Castro da Silva Carvalho (1981, 32):
«Que símbolo é esse?
Uma Rosa (A Vida, o Cristo, A Rosa do Encoberto) numa cruz (morta do
mundo, o Destino, morta e fatal), isto é, o símbolo da rosacruz: sobre uma
cruz, à volta do centro definido pelos dois madeiros, sete rosas, envolvendo
uma oitava, essa implícita, no centra; o todo inscrito numa estrela de cinco
pontas.
Este símbolo é, para os
rosacruzes, um símbolo de geração que ‘contém a chave da evolução passada, constituição
presente e desenvolvimento futuro do homem, além do método de realização desse
desenvolvimento’ [Silva Carvalho cita Max Heindel]; a cruz representa o homem: ‘O
madeiro maior representa o corpo, os dois horizontais, os dois braços, o madeiro
curto, superior, representa a cabeça…’ e a Rosa, essa, o Libertador, o Cristo,
o Cabeça Central, ‘… e a rosa está colocada no lugar da laringe’.»
[Outros autores situam esta rosa sobre o coração, símbolo
da alma e da faculdade do conhecimento, simbologia ligada à do Sol, presente no
poema.]
ROSACRUZ |
Note, também, que o
percurso seguido por Carlos Castro da Silva Carvalho lhe permite, com elevado
acerto, concluir, intersecionando a religiosidade da rosa cruz com o misticismo
nacionalista, que «a Rosa é simultaneamente o Cristo e o Encoberto, ambos são a
Vida - o Cristo é a Vida do Mundo e o Encoberto é a Vida da Nação.»
Não menos importante é
constatar, sem nos alongarmos na simbologia esotérica que atravessa o poema,
que a rosa é, na iconografia cristã, o símbolo das chagas de Cristo e do
sangue, que derramado, representa a redenção, a regeneração da vida, a
ressurreição, a imortalidade. A mesma simbologia é, hereticamente, atribuída ao
Encoberto no poema.
A estes elementos vem
juntar-se o facto de «O Encoberto» ser justamente o quinto dos símbolos que a Mensagem
inclui. Note que o número cinco é símbolo de um novo ciclo que começa,
denunciado também, no poema, no ciclo do sol, saído da noite (e da morte),
desde a «aurora ansiosa» ao despertar, passando pelo «dia já visto», onde a
Rosa surge, significativamente, com um símbolo fecundo, divino e final.
Pressupõe este novo ciclo
um recomeço, já anunciado nos «Símbolos» que, na Mensagem, precedem o
poema consagrado ao Encoberto. Trata-se do já profetizado regresso de D.
Sebastião, não do D. Sebastião «que houve» (M, 42), que este morreu em Alcácer,
mas do que com Deus se guardou, i. e., um D. Sebastião mítico,
sacralizado, profeta que, a si próprio, se anuncia como Messias. Note as
maiúsculas heréticas em «O» e «Esse»:
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
(M, 81)
Há de
regressar, com a legitimidade de quem é o Desejado, (e aqui o
rosicrucismo liga-se à simbologia da Demanda), «Galaaz com pátria»,
bramindo a «Excalibur do Fim», trazendo consigo o Quinto Império, a «Eucaristia
Nova» contra a apatia do presente. Um regresso tornado indispensável e do qual
se espera.
Que a sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Graal!
(M, 84)
Uma espera que vive na
ânsia e na impaciência do eu do poema que dá forma ao terceiro dos «avisos»:
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Bibl.: Carlos Castro da Silva Carvalho, «Aspectos
formais do nacionalismo místico da Mensagem», in Colóquio/Letras, n.º 62, julho
de 1981, p. 26
Artur Veríssimo,
Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 119-121
A trajetória do Cristo e a sustentação do discurso prospetivo
Como temos visto, os
poemas, tratando de um presente negativo, marcado pelo decaimento e pelo
ostracismo da nação portuguesa, voltam-se para um futuro em que se dará o
ressurgimento da proeminência de Portugal, principal tematização da última
parte da obra. Essa tematização de Mensagem se explica pela atualização
do ato preditivo próprio do discurso messiânico (..., então b), que
envolve uma necessária sustentação (se a, ...).
No messianismo português,
a crença numa condição de nação eleita é o que sustenta a previsão de retomada
de uma proeminência análoga à do passado. Em última análise, os poemas que
tematizam a constituição de Portugal (sobretudo na parte 1, Brasão) e
seus feitos gloriosos durante a expansão ultramarina (notadamente na parte 2, Mar
Português) constituem uma forma de busca de comunhão em torno da crença
nessa eleição.
Mais concretamente, porém,
há poemas que permitem observar uma sustentação do discurso preditivo na homologação
da história de Portugal com a do Cristo. Essa aproximação, que atravessa
diferentes poemas da obra, aparece no segundo poema, O das quinas, no
qual se apresenta a “verso-máxima”: “Compra-se a glória com desgraça”.
Ressalta-se aí o valor do sofrimento, tido como uma marca de eleição num
processo de espiritualização associado a Portugal, como se viu, por exemplo, no
poema “O Quinto Império”, já analisado. A confirmação dessa máxima se dá a
partir do exemplo prototípico do Cristo: “Foi com desgraça e com vileza / Que
deus ao Cristo definiu / Assim o opôs à Natureza / E Filho o ungiu”. Graças
a esse poema, a trajetória de sofrimento (e de posterior glória) do Cristo
associa-se à trajetória de Portugal, relação evocada em diferentes poemas de Mensagem.
Além do já analisado poema
(Terceiro) que identifica o retorno do Encoberto com a parousia do
Cristo, o poema D. Felipa de Lencastre (PESSOA, 2010, p. 30), por
exemplo, remete à homologação de que falamos. A personagem histórica,
chamada no poema de “Humano ventre do Império”, por ter sido mãe de
vários membros da corte portuguesa e mesmo de monarcas, é associada à Virgem
Maria (“Que arcanjo teus sonhos veio /Velar, maternos, um dia?”).
Já na parte 3 de Mensagem,
a relação volta no símbolo maior do messianismo português: a figura do Encoberto.
[…]
Nesse poema, a
identificação do Encoberto com o Cristo se dá graças à figura da Rosa, que, de
acordo com Quesado (1999, p. 148), é um símbolo esotérico para a vida. Com
efeito, vai-se da Vida que é Rosa, passa-se pela Rosa que é o Cristo e
chega-se à Rosa do Encoberto, numa espécie de transferência (doação do
objeto de valor vida, em termos narrativos) que sugere a ressurreição gloriosa
do Encoberto, como a do Cristo. A cruz parece ser utilizada, no
poema, como o símbolo ambíguo que é na simbologia cristã, indicando a morte
salvadora do Cristo e, ao mesmo tempo, seu martírio necessário (“Na Cruz, que é
o Destino/ A Rosa, que é o Cristo”).
Esses símbolos retomam,
assim, a história de sacrifício do Cristo, trazendo do passado (“Que símbolo
divino/ Traz o dia já visto?”) o exemplo que faz crer no ressurgimento de
Portugal pelas mãos do Encoberto. Aqui ecoa o verso-máxima do já citado poema O
das quinas: “compra-se a glória com desgraça”. A eleição implica, como no
caso do Cristo, o necessário sofrimento (o destino) que antecede e assegura a
vida gloriosa. Essa lógica é o que permite a geração do “símbolo final” (A
Rosa do Encoberto), que já é possível observar no presente (“mostra
o sol já desperto”), marcado, como no caso do Cristo, por um sofrimento
fatalista (Na Cruz morta e fatal).
A nosso ver, os poemas
analisados evidenciam que, de forma mais ampla, a crença numa eleição divina
para um destino que mescla desgraça e glória e, de forma mais restrita, a
homologação da história de Portugal à do Cristo são elementos que, retomados e
reelaborados poeticamente pelo enunciador, remetem a um argumento de base para
o discurso prospectivo. A explicitação da fórmula argumentativa resultaria num
encadeamento como: se somos eleitos como foi o Cristo, então, como o
Cristo, aguarda-nos uma ressurreição gloriosa, aqui atualizado num contexto
de adesão prévia, como é próprio do gênero epidítico.
Clebson Brito, A configuração do discurso messiânico numa perspectiva
semiótica e argumentativa. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG,
2015
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“O Encoberto ou o
Rosicrucismo na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 30-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-encoberto-ou-o-rosicrucismo-na.html
Sem comentários:
Enviar um comentário