Mensagem, de
Fernando Pessoa
Primeira
Parte – Brasão
I – Os Campos
Segundo
O
DAS QUINAS
Os Deuses vendem quando
dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
8-12-1928
Mensagem.
Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
Disponível
em: http://arquivopessoa.net/textos/1269
Linhas de
leitura do poema “O das Quinas”, de Fernando Pessoa:
"Os Deuses vendem
quando dão" é uma frase que remonta pelo menos à Grécia Clássica e que
corresponde a uma visão mesquinha da divindade: os favores dos deuses pagam-se!
"Ai dos felizes
porque são só o que passa"- a felicidade é transitória e os que se contentam
em ser apenas felizes não têm consequência na História; "Baste a quem
baste..."- a mesma noção referida: a quem basta o que tem, por esses
limites se fica! "ter é tardar"- a posse do bastante adia os
cometimentos.
"Foi com desgraça
e..."- mas Deus tem outro ideal: concebeu o Cristo para ser infeliz e
baixo (e, contra a natureza humana, para não desejar felicidade material ou
posses) e, tendo-o assim determinado, sagrou-o como Filho, mostrando o Seu
caminho (não material, mas espiritual). O campo das quinas simboliza, em geral,
a espiritualidade em Portugal, o sonho. Em particular é um elogio ao sacrifício
da felicidade material a altos ideais (que o poeta cria ser o seu próprio
caso).
João
Mimoso, Mensagem, de Fernando Pessoa. Lisboa, 29-08-2003 (revisto em 13-01-2004).
Disponível em: https://www.inverso.pt/Mensagem/Brazao/quinas.htm
Simbologia das Quinas
Sobre
a simbologia das quinas na Mensagem escreve Silva Carvalho (1981: 27):
[As] quinas das armas nacionais transportam desde a sua origem um
significado próprio, fortemente coroado de cristianismo romano e oficial, isto
é, milagreiro. Seja qual for a perspetiva simbólica que adotemos (as Chagas de
Cristo, os cinco reis vencidos e os trinta dinheiros de Judas, etc.), as quinas
remetem-nos sempre para o milagre de Ourique. Mas debalde o leitor procurará,
na Mensagem, a mais leve referência à visão de D. Afonso Henriques.
Uma
conclusão que nos parece oportuna, porque desencorajadora da tentação de ler os
poemas consagrados às cinco figuras que representam as quinas à luz acrítica do
simbolismo tradicional. A profunda religiosidade de um D. Duarte, autor do Leal
Conselheiro, ou de um D. Fernando, que a posterioridade designou como o
Infante Santo, poderiam facilmente conduzir o leitor desatento a ver nesses textos
a intenção de reproduzir a simbologia oficial, de inspiração católica. Sem
deixar de lá estar, essa simbologia é subvertida, como adiante se verá, porque
transposta para outro plano da realidade - o do ser nacional.
Importa,
pois, evitar o equívoco em que algumas leituras da obra têm incorrido. É o
caso, por exemplo, de Agostinho da Silva (1959,18), que identifica o Campo das
Quinas com «o das Chagas de Cristo», com «o campo próprio de Portugal» que,
«expiando na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade [...] poderá
salvar o mundo.» Ora, não só não é esse tipo de redenção cristã e católica que
atravessa a Mensagem, como também não é a ideia de um império cristão
que a obra persegue.
É
verdade que versos como estes se referem ao Deus bíblico da tradição cristã:
Foi com desgraça
e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
(M,22)
mas têm o valor
analógico do símbolo, não representam a adesão a um credo. O que lhes subjaz é
a teoria do heroísmo, que é, tanto na Mensagem, «como n'Os Lusíadas
[...], uma teoria do sacrifício» (cf. COELHO: 53). Constituem mais um argumento
aduzido, através do recurso a um exemplo significativo, à primeira estrofe do
poema, iniciada desta forma: «Os Deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória
com desgraça» (v. Campos).
«O
das Quinas» é, isto sim, a chave que abre as portas à compreensão dos cinco
poemas agrupados no cap. III de «O Brasão», cujos heróis, sagrados «em honra e
em desgraça», partilham a grandeza de alma que os torna infelizes diante de um
destino adverso:
-
D. Duarte» cumpre contra o Destino o seu dever (M, 37);
-
D. Fernando, consumido por uma «febre de Além» (M, 38) exemplifica o
quanto «a vida é breve» e «a alma vasta»;
-
D. Pedro», sem a guarida da Sorte, morre fiel à palavra dada e à ideia tida» (M,
40);
-
D. João», recusando o estatuto dos «felizes» «porque são! Só que passa» (M,
22), exprime a ânsia de Absoluto do português: «O inteiro mar, ou orla vã
desfeita - O todo, ou o seu nada.» (M,41);
-
D. Sebastião, recusando o conformismo da «besta sadia», faz da loucura e do sonho
de grandeza o móbil do seu agir que a Sorte contraria.
Voltando
à simbologia tradicional das quinas, nota-se que os vinte e cinco besantes estão
ausentes da Mensagem, como também o significado religioso que lhe está
associado. As cinco Chagas de Cristo que a tradição consagra são,
hereticamente, na obra, as chagas abertas no Ser nacional, i. e., reenviam para
a «desgraça» e o sofrimento a pagar pelo alcance da glória, facto que a vida
infeliz dos cinco heróis atrás referidos amplamente confirma. Vencidos, como os
cinco reis da simbologia tradicional, só o são, no entanto, em sentido comum,
pois deles o que morreu foi o «ser que houve, não o que há» (M, 42), ou
seja, o que neles existia de mortal, não aquilo que neles é exemplo da essência
do ser português: o sentido do dever e de missão a cumprir, na «fidelidade à
palavra dada e à ideia tida» (M, 40), a fome de grandeza e a «febre do
Além» que bebem a sua inspiração na loucura e no sonho, incompatíveis com o comodismo
fácil, em suma, a incontornável e incansável sofreguidão de Absoluto: «O todo
ou o seu nada» (M, 41). O que ressalta da loucura de D. Sebastião não é
o desastre a que ela conduziu, mas o sonho «que nela ia», o que equivale a
dizer que a vida desses heróis vale menos por aquilo que eles foram do que por
aquilo que nebulosamente prenunciam.
Bibliografia: Carlos
Castro da Silva Carvalho, «Aspectos formais do nacionalismo místico da Mensagem»,
in Colóquio/Letras, n.º 62, julho de 1981, p. 26; Agostinho da Silva,
"Mensagem Um", in Um Fernando Pessoa, Lisboa, Guimarães
Editores, 1959, pp. 10-23; Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em
Fernando Pessoa, Lisboa, Verbo, s.d., particularmente os capítulos «Fernando
Pessoa autor da Mensagem» pp. 49-56 e «Notas à margem de alguns livros
sobre Fernando Pessoa posteriores ao presente ensaio», pp. 222-226.
Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto,
Areal Editores, 2000, pp. 116-117
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia,
17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Os Deuses vendem quando dão. - Campo das Quinas do Brasão, na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-campo-das-quinas-do-brasao-mensagem.html
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