sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Os Deuses vendem quando dão. - Campo das Quinas do Brasão, na Mensagem, de Fernando Pessoa

Mensagem, de Fernando Pessoa

Primeira Parte – Brasão

I – Os Campos

  




Segundo

O DAS QUINAS

 

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

 

8-12-1928

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1269

 



Linhas de leitura do poema “O das Quinas”, de Fernando Pessoa:

"Os Deuses vendem quando dão" é uma frase que remonta pelo menos à Grécia Clássica e que corresponde a uma visão mesquinha da divindade: os favores dos deuses pagam-se!

 

"Ai dos felizes porque são só o que passa"- a felicidade é transitória e os que se contentam em ser apenas felizes não têm consequência na História; "Baste a quem baste..."- a mesma noção referida: a quem basta o que tem, por esses limites se fica! "ter é tardar"- a posse do bastante adia os cometimentos.

 

"Foi com desgraça e..."- mas Deus tem outro ideal: concebeu o Cristo para ser infeliz e baixo (e, contra a natureza humana, para não desejar felicidade material ou posses) e, tendo-o assim determinado, sagrou-o como Filho, mostrando o Seu caminho (não material, mas espiritual). O campo das quinas simboliza, em geral, a espiritualidade em Portugal, o sonho. Em particular é um elogio ao sacrifício da felicidade material a altos ideais (que o poeta cria ser o seu próprio caso).

 

João Mimoso, Mensagem, de Fernando Pessoa. Lisboa, 29-08-2003 (revisto em 13-01-2004). Disponível em: https://www.inverso.pt/Mensagem/Brazao/quinas.htm

 

Simbologia das Quinas

Sobre a simbologia das quinas na Mensagem escreve Silva Carvalho (1981: 27):

[As] quinas das armas nacionais transportam desde a sua origem um significado próprio, fortemente coroado de cristianismo romano e oficial, isto é, milagreiro. Seja qual for a perspetiva simbólica que adotemos (as Chagas de Cristo, os cinco reis vencidos e os trinta dinheiros de Judas, etc.), as quinas remetem-nos sempre para o milagre de Ourique. Mas debalde o leitor procurará, na Mensagem, a mais leve referência à visão de D. Afonso Henriques.

Uma conclusão que nos parece oportuna, porque desencorajadora da tentação de ler os poemas consagrados às cinco figuras que representam as quinas à luz acrítica do simbolismo tradicional. A profunda religiosidade de um D. Duarte, autor do Leal Conselheiro, ou de um D. Fernando, que a posterioridade designou como o Infante Santo, poderiam facilmente conduzir o leitor desatento a ver nesses textos a intenção de reproduzir a simbologia oficial, de inspiração católica. Sem deixar de lá estar, essa simbologia é subvertida, como adiante se verá, porque transposta para outro plano da realidade - o do ser nacional.

Importa, pois, evitar o equívoco em que algumas leituras da obra têm incorrido. É o caso, por exemplo, de Agostinho da Silva (1959,18), que identifica o Campo das Quinas com «o das Chagas de Cristo», com «o campo próprio de Portugal» que, «expiando na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade [...] poderá salvar o mundo.» Ora, não só não é esse tipo de redenção cristã e católica que atravessa a Mensagem, como também não é a ideia de um império cristão que a obra persegue.

É verdade que versos como estes se referem ao Deus bíblico da tradição cristã:

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

(M,22)

mas têm o valor analógico do símbolo, não representam a adesão a um credo. O que lhes subjaz é a teoria do heroísmo, que é, tanto na Mensagem, «como n'Os Lusíadas [...], uma teoria do sacrifício» (cf. COELHO: 53). Constituem mais um argumento aduzido, através do recurso a um exemplo significativo, à primeira estrofe do poema, iniciada desta forma: «Os Deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça» (v. Campos).

«O das Quinas» é, isto sim, a chave que abre as portas à compreensão dos cinco poemas agrupados no cap. III de «O Brasão», cujos heróis, sagrados «em honra e em desgraça», partilham a grandeza de alma que os torna infelizes diante de um destino adverso:

- D. Duarte» cumpre contra o Destino o seu dever (M, 37);

- D. Fernando, consumido por uma «febre de Além» (M, 38) exemplifica o quanto «a vida é breve» e «a alma vasta»;

- D. Pedro», sem a guarida da Sorte, morre fiel à palavra dada e à ideia tida» (M, 40);

- D. João», recusando o estatuto dos «felizes» «porque são! Só que passa» (M, 22), exprime a ânsia de Absoluto do português: «O inteiro mar, ou orla vã desfeita - O todo, ou o seu nada.» (M,41);

- D. Sebastião, recusando o conformismo da «besta sadia», faz da loucura e do sonho de grandeza o móbil do seu agir que a Sorte contraria.

Voltando à simbologia tradicional das quinas, nota-se que os vinte e cinco besantes estão ausentes da Mensagem, como também o significado religioso que lhe está associado. As cinco Chagas de Cristo que a tradição consagra são, hereticamente, na obra, as chagas abertas no Ser nacional, i. e., reenviam para a «desgraça» e o sofrimento a pagar pelo alcance da glória, facto que a vida infeliz dos cinco heróis atrás referidos amplamente confirma. Vencidos, como os cinco reis da simbologia tradicional, só o são, no entanto, em sentido comum, pois deles o que morreu foi o «ser que houve, não o que há» (M, 42), ou seja, o que neles existia de mortal, não aquilo que neles é exemplo da essência do ser português: o sentido do dever e de missão a cumprir, na «fidelidade à palavra dada e à ideia tida» (M, 40), a fome de grandeza e a «febre do Além» que bebem a sua inspiração na loucura e no sonho, incompatíveis com o comodismo fácil, em suma, a incontornável e incansável sofreguidão de Absoluto: «O todo ou o seu nada» (M, 41). O que ressalta da loucura de D. Sebastião não é o desastre a que ela conduziu, mas o sonho «que nela ia», o que equivale a dizer que a vida desses heróis vale menos por aquilo que eles foram do que por aquilo que nebulosamente prenunciam.

Bibliografia: Carlos Castro da Silva Carvalho, «Aspectos formais do nacionalismo místico da Mensagem», in Colóquio/Letras, n.º 62, julho de 1981, p. 26; Agostinho da Silva, "Mensagem Um", in Um Fernando Pessoa, Lisboa, Guimarães Editores, 1959, pp. 10-23; Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Verbo, s.d., particularmente os capítulos «Fernando Pessoa autor da Mensagem» pp. 49-56 e «Notas à margem de alguns livros sobre Fernando Pessoa posteriores ao presente ensaio», pp. 222-226.

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 116-117

  


 

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Os Deuses vendem quando dão. -  Campo das Quinas do Brasão, na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 09-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-campo-das-quinas-do-brasao-mensagem.html


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