sexta-feira, 16 de setembro de 2022

A poesia na atualidade (1881), Antero de Quental

     “A poesia conservar-se-á (…), mas tendo perdido o antigo carácter de uma das grandes forças sociais e espirituais da Humanidade, de agente poderoso da civilização (…)”.

 

Antero de Quental, A poesia na actualidade - A propósito da "Lira íntima " do Sr. Joaquim de Araújo. Estudo crítico. Porto, Oficina Tipográfica de João Eduardo Alves, 1881. 20 p. 

 

          

A POESIA NA ATUALIDADE*


A fase poética da Humanidade pode dizer-se que está a terminar. Este século terá visto os últimos poetas, como viu os últimos crentes.

O espírito humano entrou decididamente numa fase de racionalismo, de análise e crítica, que parece dever ser definitiva.

A faculdade sintética, depois de ter criado as línguas, os mitos e as religiões, manteve-se ainda, durante largos séculos, no domínio da poesia. Mas ainda aí se terá estancado dentro em pouco. A análise ficará senhora absoluta de todo o terreno, gradualmente abandonado pela faculdade criadora.

Porque razão, tendo-se esta esgotado tão cedo no domínio da linguagem e do mito religioso, pôde manter-se, no da poesia, viva e ativa, ainda por tanto tempo, e atravessando uma sucessão notável de fases históricas?

É o que compreenderá facilmente quem considerar a natureza da poesia, natureza dupla, ao mesmo tempo intuitiva e analítica, filha da reflexão e da espontaneidade, em que o poder criador e sintético trabalha sobre elementos que lhe são estranhos, em vez de tirar de si e do seu próprio fundo a matéria sobre que se emprega a sua atividade.

Filha da pura intuição, por um processo espontâneo e verdadeiramente instintivo, a produção das línguas e dos mitos cessa no momento em que a primeira reflexão acorda no espírito humano, e é justamente nesse momento que a poesia aparece. Ela representa o período de transição entre a pura espontaneidade e a reflexão pura, entre o domínio absoluto da síntese e o domínio absoluto da análise.

A especulação metafísica, a teologia e a poesia caracterizam essa fase intermédia do desenvolvimento psicológico e racional da Humanidade.

Em todas três a matéria é já um produto do pensamento refletido, da análise mais ou menos consciente, senão intencional e sistemática: em todas três também é a síntese que dá a forma, é a intuição imediata que liga entre si e reduz a uma unidade concreta, por uma força plástica e como que orgânica, aqueles elementos de origem diversa.

É por isso – digamo-lo de passagem – que entre a poesia, a metafisica e a teologia há relações tão íntimas, há um ar de família tão característico, que imediatamente denuncia uma verdadeira comunidade de origem.

A poesia, tomada nos seus altos exemplares, nos Salmos hebreus, na Tragédia esquiliana, e ainda na de Sófocles e Eurípedes, em Hesíodo e Píndaro, em Virgílio e Lucrécio, em Dante e Calderón, participa da natureza da especulação metafísica e do dogmatismo teológico. E, por outro lado, o que são a metafísica e a teologia senão vastos poemas cosmogónicos e psicológicos, construídos com uma amálgama de símbolos e raciocínios, em que a imaginação, apesar duma subtileza silogística toda formal, domina e triunfa?

É por isso que o período clássico da poesia é também o do vigor e fecundidade do espírito especulativo à priori e do dogmatismo. É por isso ainda que os momentos do desenvolvimento histórico de qualquer destas manifestações psicológicas correspondem rigorosamente com os das outras duas. No fundo, não são mais do que três formas paralelas dum mesmo estado sentimental e mental.

Na nossa civilização ocidental, o período poético (melhor diríamos poético-metafisico-teológico) da Humanidade, o período de colaboração, ponderação e harmonia das faculdades analítica e sintética abrange um espaço de tempo de mais de dois mil anos, que vem desde Hesíodo - ou, se quiserem, desde Homero, ou, pelo menos, desde os hinos homéricos -·até ao primeiro quartel do século XIX.

Nos seus momentos essenciais, que são outras tantas revoluções profundas do espírito humano, coincide exatamente com as fases históricas da especulação metafisica e da teologia.

O primeiro, porventura o mais belo e grandioso, representa o acordar do pensamento refletido, ao emergir do sonambulismo do período instintivo, no meio das criações ao mesmo tempo enigmáticas e profundas da inconsciência, que por toda a parte o rodeiam, como um povo mudo de esfinges.

Há nas produções deste período uma grandeza e uma harmonia incomparáveis, um vigor juvenil, que galga sem esforço às eminências da beleza moral e humana. É que se a reflexão acordara, a imaginação intuitiva e plástica tinha ainda um poder e uma vida, que mais tarde haviam de cair, abandonando o terreno à reflexão sistemática.

É pois este o período poético por excelência, como é por excelência o período da especulação filosófica ou religiosa.

Desde Hesíodo e Píndaro até Lucrécio e Virgílio, a poesia desenvolve-se como um mundo, uma criação nova e maravilhosa - paralelamente com o movimento duplo da especulação, que, desde Pitágoras e Heraclito até Plotino e Proclo, fundava dum lado o idealismo racional e lançava, do outro, as bases sobre que se havia de erguer (sem lhe acrescentar nada de essencial) a teologia cristã.

O fundamento psicológico deste período é uma conceção idealista e transcendental do Universo, mas vazada por tal forma nos moldes simbólicos, e por todos os lados tão penetrada de humanismo espontâneo, que, apesar do seu fundamental transcendentalismo, tem toda a aparência da realidade, embora essa realidade seja no fundo fantástica.

Isto quer dizer que o elemento poesia é o dominante, ainda fora da sua esfera própria, e que a filosofia e a teologia se ressentem por tal forma deste influxo dominante que no fundo se reduzem, quanto lhes é possível, a conceções poéticas.

No segundo período encontramos invertida esta relação. O racionalismo (embora só formal) domina de tal modo na filosofia dum Abailard, dum Duns Scotto, dum Occam, e na teologia dum S. Tomás, dum S. Boaventura, dum S. Anselmo, que a própria poesia como que contrai os hábitos pedantescos da escola, especulando e dogmatizando como quem cursou regularmente o trivium e o quadrivium e meditou longamente, à sombra dos claustros ascéticos, sobre a trindade e a unidade, a graça e o livre arbítrio, o mistério da eucaristia e a imaculada conceição.

Os trovadores provençais, Dante, Petrarca, Calderon, ainda nos seus raptos mais líricos, na expressão dos sentimentos mais íntimos ou das relações humanas mais gerais, são argutos e sofísticos, suspendem-se a cada passo raciocinando e demonstrando, e por toda a parte substituem ao largo símbolo poético, simples e forte na sua espontaneidade, a alegoria artificial e complicada, onde como que se refletem as dificuldades pueris da escolástica e a hierarquia inextrincável do dogma cristão.

E, todavia, tudo isto, no fundo, é ainda poético - porque o racionalismo dominante é só formal. Debaixo da pesada e fria silogística, palpita intensa a vida sentimental: a imaginação reveste as formas da escola, mas é sempre imaginação; e todo o sistema, exteriormente geométrico e racional, tem por base a velha estrutura mítica, onde a intuição criadora amontoara outrora símbolos, lendas, sonhos, imagens, todo um mundo grandioso e extravagante de fantasmas espirituais.

Scotto e S. Tomás, S. Anselmo e Pedro Lombardo deliram gravemente, secundum artem: acumulam ergos e distinguos, dilemas e silogismos, mas só para introduzirem ordem e método no delírio - e outro tanto fazem Dante e os trovadores, indo através das ondas turvas dum oceano de subtilezas lógicas, buscar lá no fundo, a mil braças de profundidade, a pérola mística, a inspiradora dum sonho de fakirs, onde a alma se lhes abisma, aniquilada, na visão do infinito, da graça, da beatitude - amorosa ou celestial.

Tudo isto é ainda poesia. Esta poesia pressupõe um estado psicológico singular, em que o espírito, trabalho por uma necessidade imperiosa de lógica, de razão, se agita sem poder quebrar o antigo molde de conceção transcendente das coisas, e neste esforço desesperado consegue deturpá-la, revestindo-a com uma forma intelectual que não só lhe não é adequada, mas até lhe é contraditória e antipática.

Todos os bons críticos têm notado no Cristianismo o que quer que é contrafeito, violentado, doentio, que leva facilmente à extravagância ou ao idiotismo. É o efeito natural daquele estado de espírito, daquele ingrato esforço, sempre iludido, para unir o que a natureza separou, para introduzir a razão num mundo fantástico, criado pelo sonambulismo da imaginação.

Este modo de ser contrafeito e doentio da consciência cristã em parte alguma se torna tão sensível como na poesia da Idade Média.

Aqueles trovadores, que suspiram segundo a arte silogística, aquele Dante, que põe na boca dos condenados a argumentação dos doutores in utroque, aquele Calderon, que põe em cena as virtudes teologais e os pecados mortais, debatendo sabatinas escolásticas, representam-nos o desequilíbrio dum estado psicológico singular, melhor ainda do que Santa Isabel lambendo as chagas dos mendigos ou S. Bernardo perdendo o sentido do gosto à força de jejuns.

Veio a reação. Mas que reação? A da calma razão, cônscia e metódica? Não: a Renascença é outra coisa. É uma explosão de naturalismo, mas naturalismo idealista e poético, a tal ponto que pôde, sem esforço, aliar-se ao misticismo e produzir a Reforma.

A razão representava agora um grande papel - todavia papel ainda subordinado. Marsílio, Ficino, Giordano Bruno, Ramus, Rabelais estão ainda muito longe de Kant e podem dar facilmente a mão, como de facto dão, a Ariosto, a Shakespeare e a Camões. Lutero, que via o diabo, e Loyola, que via a Virgem, tocam-se por mais de um lado - e na caldeira ardente da Renascença, onde fervem tantos elementos que parecem contraditórios, fica, no fundo, um depósito comum: o naturalismo poético, uma conceção das coisas, que não reflete já as formas míticas da imaginação primitiva, nem também as abstrações duma reflexão ainda incerta, mas os sentimentos naturais do homem, dando ao naturalismo uma feição subjetiva, cuja verdadeira expressão é o humanismo.

Uma tal evolução psicológica, sendo essencialmente poética, devia produzir uma renovação e abrir uma terceira idade na história da poesia.

Assim foi. Dum lado, Shakespeare, o intérprete universal das paixões, do outro, Camões, Ariosto, Lope, Tasso, os poetas humanistas por excelência, do outro ainda, os líricos da renovação protestante, Lutero, Hans Sachs, Ulric de Hutten, Opitz, Simon Dach, Fleming, Paul Gerhardt, dão-se as mãos fraternalmente para representarem uma conceção das coisas puramente naturalista, mas sem sistema positivo e vaga bastante para que, na interpretação do símbolo comum, ficasse à imaginação a liberdade de o interpretar no sentido das tendências mais diversas da natureza humana - ardente, aqui, e desenfreado na explosão de paixões quase bestiais; ali, contido e moderado nos limites duma tradição renovada; mais além, concentrado num só sentimento profundo e religioso - mas por toda a parte livre na criação dum mundo interior, que só obedece às leis imanentes da própria expansão.

Na poesia da Renascença as faculdades de análise e síntese atingem o grau de mais perfeito equilíbrio - justamente na véspera do momento em que esse equilíbrio se ia romper para sempre, com o império decidido da análise, pela constituição das ciências e a correspondente organização dum ponto de vista racional, sistematicamente positivo.

Com efeito, para que o naturalismo vago da Renascença perdesse a sua plasticidade poética, bastava que viesse a receber uma organização positiva - e tal alteração era inevitável.

Era a última e a maior das revoluções do espírito humano. Entre os destroços do passado, com os deuses e as entidades metafisicas, ficaria bem soterrada a poesia.

Foram porém ainda necessários mais três séculos, para que tal resultado se manifestasse claramente.

O ciclo poético do fim do século passado e do primeiro quartel do atual é apenas um incidente, o rebento tardio da velha árvore, que, antes de morrer, concentrou nele um resto de seiva.

Essa poesia (sinal bem claro de enfraquecimento) é toda subjetiva. É o individualismo, o egotismo que a inspira nos seus grandes representantes, Byron, Shelley, Schiller, Heine, Lamartine, Hugo (onde é verdadeiramente Hugo), Miczkiewicz, Espronceda, Herculano, João de Deus (que, por vir tão tarde, não deixa por isso de pertencer a essa ilustre família), Leopardi, Foscolo. Eles não representam já a vida coletiva do espírito humano, a crença e as aspirações dum mundo, a apoteose gloriosa ou sombria da humanidade, que os tem por intérpretes: representam-se apenas a si, eles, os últimos duma raça condenada a desaparecer e que, sentindo a ferida interior por onde lhes foge a vida, interrogam inquietos o horizonte e, chorando ou rugindo, se sentam à beira da estrada para morrerem.

Este inevitável egotismo, este retirar-se da matéria poética objetiva da esfera da poesia, é a prova do seu fim próximo. Porque, na poesia do século, só essa, a pessoal, foi verdadeira e espontânea. A outra, cujo grande representante é Goethe, a que pretendeu abraçar a realidade e tornar-se objetiva, entrando na grande tradição, essa, quem bem a considerar verá quanto é forçada, estudada, intencional, quanto é coisa de escola e de sistema, alheia à comoção espontânea, e que a final se resume toda num sábio diletantismo, que em Goethe e em mais dois ou três chega a parecer grandioso, mas sem nos comover.

Como se da filosofia, da ciência e da história fosse possível extrair o que elas não contêm! como se a acumulação da análise pudesse produzir o contrário da análise, um símbolo plástico, uma intuição poética. Eu também acreditei nisso alguma hora, como acreditei em muitos outros dogmas da moderna superstição do Progresso. Mas um estudo mais profundo da filosofia da história, mostrando-me o verdadeiro processo da evolução psicológica da humanidade, fez-me abandonar esse com muitos outros erros vulgares. Toda a crítica da doutrina do Progresso (que, na sua forma vulgar, pouco mais significa do que uma espécie de idolatria intelectual) está neste dizer conceituoso de Saint-Simon, o socialista: «as faculdades sucedem-se, mas não se acumulam».

A tentativa do Goethe era vã. E se ele, um dos maiores espíritos do seu século e do nosso, o não conseguiu, loucura seria esperar ainda bom êxito duma empresa que o momento histórico condena.

Mas a própria poesia se encarregou do ofício cruel, ofício que seria ímpio se não fosse fatal, de se reduzir a si mesma ao absurdo, de contradizer o seu íntimo princípio, de se renegar.

Lastimoso espetáculo, mas instrutivo!

Enquanto o grande diletante alemão acumulava em vão, com as faculdades dum grande espírita, os recursos dum saber universal, para extrair a vida do que é inerte e criar com ciência, erudição e filosofia um vasto símbolo poético, uma epopeia moderna, e produzia, no fim de trinta anos, aquele frio e sábio pandemónio do Segundo Fausto - um outro alemão, com pouca bagagem científica (para quê?), mas dotado dos dons de espírito que fizeram outrora os vates de Israel, encarregava-se de mostrar, como poeta, que a poesia ia acabar. Heine, escarnecendo o que adorava, fazendo a sátira da própria comoção, elevando o ceticismo à categoria duma estética, chorando e rindo - rindo do próprio choro, chorando do próprio riso - desenhou a figura trágica da última Musa, aquela que, como o anjo do último dia, vinha entoar o consumatum est sobre os destroços do antigo sentimento poético e quem sabe se de todo o sentimento...

O riso cheio de fel e lágrimas de Heine foi o suor da agonia, o suor de sangue da poesia, que a prosa racional, decididamente e universalmente triunfante no mundo, ia pregar num madeiro, dizendo-lhe: «se és filha de Deus, livra-te a ti mesma!»

E àquela voz sarcasticamente desesperada respondiam outras: Baudelaire, em França, prostituindo a poesia, a antiga inspiradora da virtude e do heroísmo, e obrigando-a a respirar as pestíferas flores do mal e a cantar o vício incurável, a maldade impenitente, e, além dos mares, na América democrática e cientificamente brutal, Poe sentava o Desespero no solo sagrado, a repetir num sonambulismo de tédio incurável, de tédio infinito, o seu estribilho de morte:

«Never, oh, never more!»

Foi assim que a poesia, na segunda metade do século XIX, anunciou ao mundo, a seu modo, praticamente, poeticamente, a sua próxima extinção.

E o mundo ouviu e não compreendeu. - Mas passou e esqueceu: era o que bastava.

«Never, oh, never more!»

Outrora, em Israel, os poetas foram os pastores do Povo. Os vates sagrados, depois de criarem Deus, fizeram do Povo o primogénito desse Deus e o seu servo fiel no cativeiro do mundo. E, pelos seus poetas, impôs Israel a sua fé às nações, a fé que eles haviam criado.

- Um pouco mais tarde, em Atenas, a República erguia em face da Acrópole a estátua de bronze de Ésquilo, como um segundo génio tutelar da cidade: as representações das suas tragédias eram solenidades religiosas, faziam parte do culto público, e uma cópia autêntica conservava-se nos arquivos da República, entre os documentos dos tratados, das alianças, das fundações de colónias, como uma das bases da grandeza nacional - Mais tarde ainda, a Senhoria de Florença fazia explicar publicamente, na Igreja de Santa Maria, a Divina Comédia, como um quinto Evangelho, e encarregava esse ofício a Boccacio, o maior erudito da época. - Camões morreu na miséria: mas não serviu o seu livro de consolação ao seu povo decaído e cativo? não o uniu o povo no culto messiânico prestado ao Salvador encoberto? não lhe comentou as estrofes como texto de profecias de futura grandeza? não lhas contaram os últimos portugueses do Oriente, entre balas, no cerco de Columbo? Esta apoteose transformou num sólio, ou num altar, a lendária enxerga do hospital.

E o que é hoje poesia? o que é hoje o poeta? que diz ele hoje ao mundo, que valha a pena ao mundo parar para o escutar? Uma experiência de Berthelot ou de Virchow, uma descoberta de Darwin ou Haeckel, uma página histórica de Ranke ou Renan valem mais, dizem mais ao espírito do século, do que toda a Babel sonora das estrofes de Victor Hugo.

E o mundo, a ele, que lhe diz, que ele entenda e que o inspire? Que lhe podem dizer o determinismo, o transformismo, a coocorrência vital, a fatalidade da história? O mundo real, o mundo visto à luz da ciência, é uma coisa atroz - atroz e ao mesmo tempo inexpressiva. Despair and die!

O divórcio é completo. A poesia deixou de ter missão social. Os raros poetas, que ainda existem, são apenas os restos destroçados duma raça de outras idades e que breve terá desaparecido.

A poesia passou decididamente à categoria de literatura amena - ao lado da teologia, outra espécie também de literatura, com a diferença de ser mais enfadonha. Resquiescant in pace.

Quererá isto dizer que a poesia ou pelo menos o poetar, tenha de desaparecer completamente?

Não é esse o meu pensamento. Mas afigura-se-me que ficará reduzida à expressão de sentimentos muito pessoais e muito limitados, e cultivada e amada só por aquelas pessoas, que, ou permanentemente e por natureza, como as mulheres, ou temporariamente, como os rapazes muito moços e dotados dalguma fantasia, reagem contra a tirania da reflexão e tendem a isolar o seu mundo de sentimentos da influência mortal do espírito analítico e positivo.

A alta poesia, épica, trágica, lírica - essa irmã da metafísica e da religião - terá assim desaparecido, mas subsistirá a poesia subjetiva, familiar e pessoal, como expressão de estados de espírito, ou particulares, ou raros e passageiros.

A poesia conservar-se-á pois, mas tendo perdido o antigo carácter de uma das grandes forças sociais e espirituais da Humanidade, de agente poderoso da civilização. Ao som augusto da grande lira de Orfeu já se não erguerão cidades nem civilizarão povos. Essas cordas solenes e soberanas terão emudecido para sempre. Mas as mais ténues continuarão a ouvir-se, para gosto e consolo dalgumas almas ternas e juvenis.

[…] 

Ler mais: «A poesia na atualidade», Antero de Quental. Prosas (volume II), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, pp. 310-326.



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(*) “A poesia na atualidade (1881), Antero de Quental”, Folha de Poesia, 2022-09-16. Ortografia atualizada por José Carreiro, segundo o Acordo Ortográfico de 1990, a partir do segundo volume de Prosas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926. 

 

TEXTO DE APOIO

 

Historicidade, ocaso e morte da arte

[…] o ensaio intitulado A poesia na actualidade (1881) propõe uma filosofia da história da arte e da sua relação com as faculdades humanas, na qual se reconhece a inspiração das teses da Scienza Nuova de Vico48, ao mesmo tempo que procede a uma análise da situação contemporânea da poesia em alguns dos seus expoentes maiores: Heine, Baudelaire, Edgar Poe.

O ensaio abre com este duro prognóstico, verdadeira declaração de morte anunciada da arte e da poesia: "A fase poética da Humanidade pode dizer-se que está a terminar. Este século terá visto os últimos poetas, como viu os últimos crentes. O espírito humano entrou decididamente numa fase de racionalismo, de análise e crítica, que parece dever ser definitiva"49.

O filósofo da arte divide agora a história em duas fases: a fase poética e a fase positiva. A primeira é dominada por aquilo a que chama a "faculdade sintética" ou "faculdade criadora" ("poder criador e sintético"), a cujo trabalho atribui a origem das línguas, dos mitos, das religiões e da poesia50. A fase positiva é dominada pela faculdade analítica e crítica, ou seja, pela razão, e o seu produto é a ciência.

A poesia nasce quando à intuição, espontânea e instintiva quando cria as línguas e os mitos, se junta a reflexão. Por isso, a poesia representa a síntese entre a pura espontaneidade da intuição e a pura reflexão, o equilíbrio entre o domínio absoluto da síntese e o domínio absoluto da análise. Nessa posição intermédia tem por solidárias companheiras a metafísica e a teologia. Há entre elas um ar de família que indica a comum origem. A fase poética da humanidade pode, pois, chamar-se com mais propriedade o seu "período poético-metafísico-teológico". É um período caracterizado pela ponderação, colaboração e harmonia das faculdades analítica (razão) e sintética (intuição), e que historicamente se estende desde Homero ao primeiro quartel do século XIX.

Dentro desse período Antero distingue três momentos principais: o do idealismo poético transcendental dos gregos, todo vazado em moldes simbólicos e caracterizado por um humanismo espontâneo; o do racionalismo formal mas poético da Idade Média, onde o sentimento e o delírio se escondem sob as apertadas malhas do sistema escolástico; o naturalismo idealista, poético e místico, do Renascimento, onde os sentimentos naturais do homem se expõem livres e em toda a sua pujança.

Neste quadro, o romantismo não constitui propriamente um momento novo, mas é apenas um "rebento tardio", que, com o anúncio do seu fim próximo, anuncia também o fim do período poético da humanidade51.

Lançando o olhar à situação da poesia no seu tempo, Antero só via confirmado o veredicto de extinção e morte. Ela "deixou de ter missão social", perdeu o antigo carácter de grande força social e espiritual da humanidade. O que dela existe é relegado para a categoria da "literatura amena", ou da expressão isolada de sentimentos muito pessoais daqueles que "reagem contra a tirania da reflexão e tendem a isolar o seu mundo de sentimentos da influência mortal do espírito analítico e positivo"52. E que é ela, aliás, mesmo nos maiores representantes do século, num Heinrich Heine, num Baudelaire, num Edgar Poe? Em quadrantes diferentes, em modulações diversas, cada um deles proclama o fim da poesia e de tudo aquilo que ela significa na sua essência. Em Heine, é a sátira amarga, o sarcasmo, a ironia e o riso cético, em vez da crença; em Baudelaire, é a "prostituição" da poesia que, assim, escarnece da sua própria vocação moral; em Poe, é a poesia como a proclamação do desespero e do amargo ceticismo. "Foi assim - conclui Antero - que a poesia, na segunda metade do século XIX, anunciou ao mundo, a seu modo, praticamente, poeticamente, a sua próxima extinção"53.

Embora reconhecendo que nisso se cumpre o inexorável destino da história, é com indisfarçável nostalgia da época poética da humanidade (que, afinal, realizou a harmonia que a ciência não alcança), é com um profundo sentimento de melancolia que Antero exara a certidão de óbito da poesia e, como um naturalista, regista a extinção iminente da espécie dos poetas. Estes, os que ainda existem, "são apenas os restos destroçados duma raça de outras idades e que breve terá desaparecido"54.

Compreende-se melhor, neste contexto, aqui Io a que se tem chamado a "morte poética" de Antero55. No fundo, talvez não visse mais razões que valessem e urgissem a forma dum poema. Ou, então, reconhecia agora que "o que o mundo mais precisa, nesta fase de extraordinário obscurecimento da alma humana, é de ideias, é de filosofia - e a Poesia, voltando a adormecer nos recessos mais misteriosos do coração do homem, tem de ficar à espera até que o novo Símbolo se desvende e novos Ideais lhe forneçam um novo alimento, lhe insuflem nova vida (...) e então voltará a cantar". Porque "o mundo (este mundo) está velho: e a Poesia só está à vontade num mundo novo, jovem, energético"56. A morte do poeta representaria, neste caso, o despertar do filósofo que por longo tempo dormira em Antero e nele se exprimira sobretudo pelo canto do poeta.

[…]

Leonel Ribeiro dos Santos, “Antero e a arte”, Revista de História das Ideias, vol. 13. Coimbra, Faculdade de Letras - Instituto de História e Teoria das Ideias, 1991

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47 A poesia na actualidade. Prosas II, p. 318.

48 Vico defendera a existência de uma fase poética da humanidade, com autonomia e coerência próprias, com a sua metafísica, a sua lógica, a sua moral. Cf. Principi di Scienza Nuova (ed. 1744), Milano, Rizzoli Editore.

49 Prosas II, p. 310.

50 Esta ideia estava já indicada no ensaio Espontaneidade, Prosas da Época de Coimbra, p. 260.

51 A poesia na actualidade. Prosas II, pp. 317-318. As críticas de Antero ao romantismo não conseguem apagar o profundo traço romântico da sua poesia e personalidade. O próprio poeta confessava o fundo romântico da sua psicologia, ao dizer a Jaime de Magalhães Lima: "A natureza tinha-me talhado para romântico descabelado, pessimista, satânico, que sei eu? Mas tinha-me dado, ao mesmo tempo, por singular contradição, razão e sentimento moral para muito mais e melhor. Daí conflito, guerra civil, luta interior. Essa luta foi a minha vida, e é o que explica a aparente singularidade (que reconheço ser grande) e a esterilidade dela. O que venceu em mim foi a razão e o sentimento moral; mas a imaginação e a paixão, embora vencidas, não se submeteram. Ora não é a razão, mas a imaginação e a paixão que fazem o poeta. (...)

Um profundo suspiro, um suspiro de infinita doçura mas de infinita melancolia, eis todo o nosso canto.” (Carta de 13 de outubro de 1886, Cartas II, p. 792). A luta contra o romantismo é pois uma luta contra si próprio! Numa outra carta a João Lobo de Moura, de 22 de agosto de 1881, diz: "O romantismo, contrabalançado pelo misticismo, produz um fluxo, uma ação e reação, que julgo muito favorável à vida espiritual" (Cartas I, p. 569).

52 Prosas II, p. 322.

53 Ibidem, p. 320.

54 Ibidem, p. 321.

55 Cf. Cartas II, p. 872. Cf. José Alves, Antero de Quental. Les mortelles contradictions. Paris, F. C. Gulbenkian, 1982, p. XVII.

56 Carta a Carolina Michaelis de Vasconcelos, de 7 de Agosto de 1885, Cartas II, p. 749.

 


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CARREIRO, José. “A poesia na atualidade (1881), Antero de Quental”. Portugal, Folha de Poesia, 16-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/a-poesia-na-atualidade-1881-antero-de.html


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