quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Prospeção, Miguel Torga

Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga

 

PROSPEÇÃO

 

Não são pepitas de oiro que procuro.

Oiro dentro de mim, terra singela!

Busco apenas aquela

Universal riqueza

Do homem que revolve a solidão:

O tesoiro sagrado

De nenhuma certeza,

Soterrado

Por mil certezas de aluvião.

 

Cavo,

Lavo,

Peneiro,

Mas só quero a fortuna

De me encontrar.

Poeta antes dos versos

E sede antes da fonte.

Puro como um deserto.

Inteiramente nu e descoberto.

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999

 

_________

Prospeção: pesquisa destinada a descobrir os filões ou jazigos de uma mina.

Aluvião: depósito de materiais provenientes da destruição das rochas e transportados pelas águas correntes.

 

 



 Elabore um comentário do poema “Prospeção”, de Miguel Torga, que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- adequação do título ao sentido geral do texto;

- caracterização da figura do «eu»;

- recursos estilísticos mais importantes;

- integração no universo poético de Miguel Torga.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

Adequação do título ao sentido geral do texto

«Prospeção», significando uma atividade de procura de minério no interior da terra, torna-se, enquanto metáfora, sinónimo de «introspeção».

O poema descreve a atividade de busca interior de um «tesoiro», que é, por sua vez, metáfora do processo de identificação de uma verdade subjetiva, num espaço de despojamento e de pureza; o «tesoiro» procurado pela «Prospeção», que começa por ser associado a uma atitude de suspensão de toda e qualquer «certeza» - isto é, a uma atitude de abertura ao desconhecido e ao improvável -, é, na segunda estrofe, associado ao ser «Poeta antes dos versos»; esse «tesoiro» é um «eu» profundo que os versos pressupõem e, portanto, indica de forma direta a atividade poética em geral.

 

Caracterização da figura do «eu»

O «eu» lírico começa por se apresentar como uma «terra singela», ou seja, um homem igual a todos os homens que a si mesmos se procuram, e que nem encerra nenhuma fortuna especial nem possui nenhum privilégio da sorte; o «eu» traça, então, o seu autorretrato com base no facto de não ter «nenhuma certeza».

O «eu» autodefine-se, na segunda estrofe, como «Poeta antes dos versos», alguém que é constituído essencialmente por uma vontade de ser poeta, ou que vive um estado poético anterior ao concreto exercício da escrita.

A associação estabelecida nos vv. 15-16 entre ser «Poeta» e ter «sede» - antes mesmo de escrever «versos» e de procurar a «fonte» - implica destacar a dimensão do desejo, da ânsia, a presença de uma força interior aberta e inocente (o estar «Puro» e «nu e descoberto»).

 

Recursos estilísticos mais importantes

Todo o poema pode ser definido como uma alegoria da procura («Prospeção») interior, encontrando-se ainda como recursos estilísticos principais:

- metáforas: «pepitas de oiro», «terra singela», «Universal riqueza», «Cavo», «Lavo», «Peneiro», «a fortuna/ De me encontrar», «Inteiramente nu e descoberto»;

- comparação: «Puro como um deserto»;

- imagem: «O tesoiro sagrado/ De nenhuma certeza,/ Soterrado/ Por mil certezas de aluvião»;

- pleonasmo: «nu e descoberto»;

- …

 

Integração no universo poético de Miguel Torga

Este poema é representativo do modo de escrita próprio do seu autor, pela importância que nele tomam:

- as imagens ligadas à terra, e sobretudo à «terra singela», com as suas conotações de rudeza, sobriedade, força e beleza;

- os gestos de trabalho prático e duro, de que a «Prospeção» é um exemplo;

- os temas da pureza e da ânsia interiores, associáveis à temática mais geral da sinceridade, própria também da geração da presença;

- o tema da nudez interior, associável à temática da autenticidade;

- a figuração de uma imagem heroica do poeta;

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 134, 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada.

 


Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga


Amar “o duro ofício de criar beleza” 

A metáfora da busca da poesia enquanto mineração, tanto em sentido metafísico como alquímico, encontra-se desenvolvida no poema «Prospeção», inserto em Orfeu Rebelde.

A duplicidade da natureza do trabalho é aqui evidente. Os sentidos inerentes ao uso das formas verbais «Cavo/Lavro/Peneiro» sugerem tanto uma pesquisa interior quanto uma pesquisa prática, organizadoras do trabalho poético.

Atrever-me-ia a afirmar, como Aníbal Pinto Castro, que se trata de um constante «labor limae» (2005: 83) que se consubstancia, segundo o mesmo autor, na preocupação em procurar atingir a senda da perfeição, por exemplo, também, quando o poeta emenda, compulsivamente, as versões manuscritas das suas obras.

O árduo labor sobre o verbo fica igualmente bem vincado no poema «Profissão» incluído na obra supracitada, que me inspirou o título para o item a que agora me dedico:

 

PROFISSÃO

 

Brilha o poema como um novo astro

No céu da eternidade…

Tenacidade

Humana!

Tanto fiz

E desfiz,

Que ninguém diz

Que já foi minha a luz que dele emana.

 

Amo

O duro ofício de criar beleza,

Sina igual à do ramo

Que desprende de si o gosto do seu fruto.

E lapido no torno da tristeza

As lágrimas em bruto

Que recolho dos olhos

Com secreta

Ironia.

Transfiguro o meu pranto, e sou poeta:

Começa a noite em mim quando amanhece o dia.

 

Aqui, o ato criativo é entendido como laboração e metamorfose da própria emoção. O sentimento é cavilha que modela «as lágrimas em bruto». Dá-se então a epifania, a fulguração, a erosfania.

Torga é, pois, o poeta que, numa entrega total, se dedica ao penoso ofício de criar beleza. Com rigor, mas também com uma paixão incontestada, que enriquece sobremaneira o seu processo criativo.

 

Ana Ferrão, O Pulsar de Eros na Criação Poética de Miguel Torga: Um Paradigma da Celebração da Vida, Universidade de Évora, 2010

 

Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 




CARREIRO, José. “Prospeção, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 21-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/prospecao-miguel-torga.html



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