Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga |
PROSPEÇÃO
Não são pepitas
de oiro que procuro.
Oiro dentro de
mim, terra singela!
Busco apenas
aquela
Universal
riqueza
Do homem que
revolve a solidão:
O tesoiro
sagrado
De nenhuma
certeza,
Soterrado
Por mil
certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a
fortuna
De me
encontrar.
Poeta antes dos
versos
E sede antes da
fonte.
Puro como um
deserto.
Inteiramente nu
e descoberto.
Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999
_________
Prospeção: pesquisa destinada a descobrir os filões ou
jazigos de uma mina.
Aluvião: depósito de materiais provenientes da destruição
das rochas e transportados pelas águas correntes.
Elabore um comentário do poema “Prospeção”, de Miguel Torga, que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- adequação do título ao sentido geral do texto;
- caracterização da figura do «eu»;
- recursos estilísticos mais importantes;
- integração no universo poético de Miguel Torga.
Explicitação de cenários de resposta
Adequação do título ao sentido geral do texto
«Prospeção», significando uma atividade de procura de minério no interior da terra, torna-se, enquanto metáfora, sinónimo de «introspeção».
O poema descreve a atividade de busca interior de um «tesoiro», que é, por sua vez, metáfora do processo de identificação de uma verdade subjetiva, num espaço de despojamento e de pureza; o «tesoiro» procurado pela «Prospeção», que começa por ser associado a uma atitude de suspensão de toda e qualquer «certeza» - isto é, a uma atitude de abertura ao desconhecido e ao improvável -, é, na segunda estrofe, associado ao ser «Poeta antes dos versos»; esse «tesoiro» é um «eu» profundo que os versos pressupõem e, portanto, indica de forma direta a atividade poética em geral.
Caracterização da figura do «eu»
O «eu» lírico começa por se apresentar como uma «terra singela», ou seja, um homem igual a todos os homens que a si mesmos se procuram, e que nem encerra nenhuma fortuna especial nem possui nenhum privilégio da sorte; o «eu» traça, então, o seu autorretrato com base no facto de não ter «nenhuma certeza».
O «eu» autodefine-se, na segunda estrofe, como «Poeta antes dos versos», alguém que é constituído essencialmente por uma vontade de ser poeta, ou que vive um estado poético anterior ao concreto exercício da escrita.
A associação estabelecida nos vv. 15-16 entre ser «Poeta» e ter «sede» - antes mesmo de escrever «versos» e de procurar a «fonte» - implica destacar a dimensão do desejo, da ânsia, a presença de uma força interior aberta e inocente (o estar «Puro» e «nu e descoberto»).
Recursos estilísticos mais importantes
Todo o poema pode ser definido como uma alegoria da procura («Prospeção») interior, encontrando-se ainda como recursos estilísticos principais:
- metáforas: «pepitas de oiro», «terra singela», «Universal riqueza», «Cavo», «Lavo», «Peneiro», «a fortuna/ De me encontrar», «Inteiramente nu e descoberto»;
- comparação: «Puro como um deserto»;
- imagem: «O tesoiro sagrado/ De nenhuma certeza,/ Soterrado/ Por mil certezas de aluvião»;
- pleonasmo: «nu e descoberto»;
- …
Integração no universo poético de Miguel Torga
Este poema é representativo do modo de escrita próprio do seu autor, pela importância que nele tomam:
- as imagens ligadas à terra, e sobretudo à «terra singela», com as suas conotações de rudeza, sobriedade, força e beleza;
- os gestos de trabalho prático e duro, de que a «Prospeção» é um exemplo;
- os temas da pureza e da ânsia interiores, associáveis à temática mais geral da sinceridade, própria também da geração da presença;
- o tema da nudez interior, associável à temática da autenticidade;
- a figuração de uma imagem heroica do poeta;
- …
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 134, 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada.
Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga |
Amar “o duro ofício de criar beleza”
A metáfora da busca da poesia enquanto
mineração, tanto em sentido metafísico como alquímico, encontra-se desenvolvida
no poema «Prospeção», inserto em Orfeu Rebelde.
A duplicidade da natureza do trabalho é
aqui evidente. Os sentidos inerentes ao uso das formas verbais
«Cavo/Lavro/Peneiro» sugerem tanto uma pesquisa interior quanto uma pesquisa
prática, organizadoras do trabalho poético.
Atrever-me-ia a afirmar, como Aníbal Pinto
Castro, que se trata de um constante «labor limae» (2005: 83) que se
consubstancia, segundo o mesmo autor, na preocupação em procurar atingir a
senda da perfeição, por exemplo, também, quando o poeta emenda,
compulsivamente, as versões manuscritas das suas obras.
O árduo labor sobre o verbo fica igualmente
bem vincado no poema «Profissão» incluído na obra supracitada, que me inspirou
o título para o item a que agora me dedico:
PROFISSÃO
Brilha
o poema como um novo astro
No
céu da eternidade…
Tenacidade
Humana!
Tanto
fiz
E
desfiz,
Que
ninguém diz
Que
já foi minha a luz que dele emana.
Amo
O
duro ofício de criar beleza,
Sina
igual à do ramo
Que
desprende de si o gosto do seu fruto.
E
lapido no torno da tristeza
As
lágrimas em bruto
Que
recolho dos olhos
Com
secreta
Ironia.
Transfiguro
o meu pranto, e sou poeta:
Começa
a noite em mim quando amanhece o dia.
Aqui, o ato criativo é entendido como
laboração e metamorfose da própria emoção. O sentimento é cavilha que modela
«as lágrimas em bruto». Dá-se então a epifania, a fulguração, a erosfania.
Torga é, pois, o poeta que, numa entrega
total, se dedica ao penoso ofício de criar beleza. Com rigor, mas também com
uma paixão incontestada, que enriquece sobremaneira o seu processo criativo.
Ana Ferrão, O Pulsar de Eros na Criação Poética de Miguel Torga: Um
Paradigma da Celebração da Vida, Universidade de Évora, 2010
Poderá também gostar de:
- “A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981), Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Prospeção, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 21-09-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/prospecao-miguel-torga.html
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