Vladimir Volegov |
Naquele «pic-nic»
de burguesas,
Houve uma coisa
simplesmente bela,
E, que sem ter
história nem grandezas,
Em todo o caso
dava uma aguarela.
Foi quando tu,
descendo do burrico,
Foste colher, sem
imposturas tolas,
A um granzoal azul
de grão de bico
Um ramalhete rubro
de papoilas.
Pouco depois, em
cima duns penhascos,
Nós acampámos,
inda o Sol se via;
E houve talhadas
de melão, damascos,
E pão-de-ló
molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro,
a sair da renda
Dos teus dois
seios como duas rolas,
Era o supremo
encanto da merenda
O ramalhete rubro
das papoulas.
Cesário Verde, 1887
Notas
granzoal
(v. 7): campo semeado de grão-de-bico.
malvasia (v. 12): vinho licoroso.
Leitura orientada do poema "De tarde", de Cesário Verde.
Síntese do conteúdo de cada estrofe:
1.ª)
indício de algo singularmente belo ocorrido num piquenique.
2.ª)
relato da situação de uma mulher colhendo um ramo de papoilas.
3.ª)
descrição do piquenique/merenda.
4.ª)
o encanto provocado pelas papoilas colocadas no decote.
Divisão do poema em partes lógicas:
1.ª
parte (I): introdução, apresentando o texto como uma aguarela que representa um
piquenique passado, onde ocorreu um acontecimento singular.
2.ª
parte (II e III): descreve o piquenique com pormenorização de acções e cores.
3.ª
parte (IV): (reflexo que a «coisa
simplesmente bela» teve no interior do sujeito) a recordação que ficou desse
piquenique: o ramalhete de papoilas vermelhas a contrastar com a brancura dos
seios dessa mulher.
Presença do sujeito poético:
A
imagem concebida de «uma coisa bela» permite que o sujeito poético passe de simples
observador (do cenário dos movimentos) para elemento do grupo observado («nós
acampámos»), mas participante privilegiado do momento de encanto.
Relação entre o piquenique do poema e o estado de espírito do sujeito lírico:
O
piquenique em que o sujeito lírico participou (Nós acampámos,
v. 10) teve a característica de permanecer na sua lembrança, daí o assunto do
poema, devido a um acontecimento simples («sem ter história nem grandezas», v.
3) mas que o eu lírico destaca como algo singularmente belo («Houve uma coisa
simplesmente bela», v.2). Num misto de satisfação e saudade, o sujeito recorda
e relata com pormenor e vivacidade a situação de uma mulher a colher um ramo de
papoilas («Foi quando tu […] / Foste
colher […] / Um
ramalhete rubro de papoulas», vv. 5-8), bem como o contraste provocado pela cor
vermelha das papoilas junto da pele branca dessa mulher («[…] todo púrpuro,
a sair da renda / Dos teus dois seios como duas rolas, / […] / O ramalhete
rubro das papoulas», vv. 13-16). Tal lembrança pode funcionar como uma
tentativa de alimentar o ego do sujeito, já que recorda uma situação passada
(note-se o predomínio dos pretéritos perfeito e imperfeito), aparentemente
insignificante, mas que, pelos laivos de sensualidade e erotismo que deixa
transparecer, leva-nos a pensar se o que resta de uma relação ou o que ainda
acalenta o prazer do eu lírico.
Tema: a lembrança de um piquenique.
Assunto: recordação de um momento passado em que,
num piquenique, o apanhar de um ramo de papoilas e a sua colocação num decote
rendilhado o torna singular e inesquecível.
Poema narrativo / descritivo:
-
relato de um
episódio – acção sequencial;
-
enumeração
das cores e outros aspectos que compõem o cenário;
-
predomínio do
pretérito perfeito do indicativo que atribui à acção narrada um carácter
concluído e passado, uma acção localizada num determinado tempo mas sem
continuidade no presente;
-
pretérito
imperfeito do indicativo empresta à acção passada um certo cariz durativo
(«inda o sol se via», v. 10) ou conferindo-lhe uma tonalidade narrativa («Em
todo o caso dava uma aguarela», v.4; «Era o supremo encanto da merenda», v.
15);
-
expressões
temporais («Foi quando tu», v. 5; «Pouco depois», v. 9; «inda o sol se via», v.
10), conferindo assim dinamismo ao relato presente nas três estrofes
iniciais.
Vasco Graça Moura, em Várias Vozes,
analisa «De Tarde», poema de Cesário Verde, como uma aguarela, o que pode ser
comparado «a um processo cinematográfico avant la lettre, um pouco como
um filme colorido cuja montagem possa ser feita pelo encaixar ou encadear
sucessivo de quatro secções de estrutura semelhante, em que se parte sempre do
mais para o menos, do todo que enche o campo visual para o pormenor nele
contido e posto em destaque, até a transição final do grande plano para a mancha
(de cor) pura e simples, havendo ainda a notar os contrastes de cor que se vão
sucedendo e ainda que até não falta o "genérico" inicial» (Moura
1987: 23).
Destacam-se
três quadros descritivos:
1.º)
Plano geral da mulher a descer do burro e a colher papoilas num granzoal (II).
2.º)
Plano geral de ambos em cima duns penhascos envoltos dos alimentos (III).
3.º)
Grande plano: dos seios e das papoilas. (IV).
Visão
plástica do poeta-pintor
conseguida pelo registo do pormenor de «uma coisa simplesmente bela» (v. 2),
digna de ser pintada:
-
o cenário do
campo: do granzoal (v.7) e dos penhascos (v.9), onde acampam para o piquenique
de burguesas (v.1);
-
o fim de
tarde («inda o Sol se via», v. 10);
-
os alimentos:
os frutos como o melão e os damascos; o pão-de-ló e o vinho malvasia;
-
as cores
fortes azul («[…] um granzoal azul
de grão-de-bico», v. 7) e vermelha («Um ramalhete rubro de papoulas»,
v.8), os tons de amarelo ou dourado («Sol», v. 10; «[…] talhadas de
melão, damascos, / E pão-de-ló molhado em malvasia», vv. 11-12), bem como a cor
branca da renda e dos seios («[…] como duas rolas», v. 14) emprestam a este
texto a coloração necessária para se estabelecer a analogia com uma aguarela,
como o próprio sujeito lírico anuncia no verso 4. São as cores que emprestam a
qualquer reprodução pictórica beleza, vivacidade, realismo, intemporalidade, as
protagonistas desta tela. Entre elas, sobressaem o azul e o vermelho que, pela
sua força característica, conferem lugar de destaque aos objectos que
caracterizam – o granzoal e o ramalhete. Contrastando com a sua intensidade,
está o branco da roupa interior e da pele da mulher. As restantes cores
presentes, mais homogéneas entre si, quer se refiram ao sol, ao melão, quer aos
damascos ou ao pão-de-ló, traduzem a visão atenta do sujeito, a intenção de não
deixar qualquer pormenor esquecido, qualquer ponto da tela sem cor.
Sensualidade
do quadro, com o
«ramalhete rubro das papoulas» a emergir dos dois seios da jovem. A imagem das
«duas rolas», a que compara os seios, associa-se fortemente a uma simbologia de
ternura e de relação sensual. Assim, a expressão «dos teus seios» é uma
sinédoque, ao permitir visualizar o corpo sensual da mulher.
Leitura comparativa dos versos 8 e 16:
O
verso que refere a realidade central do poema (ramo de papoilas) encontra-se em
posição central e final, para assim conseguir maior efeito e destaque, quer
pela reiteração, quer pelas posições que ocupa. Apenas há a distinguir nestas
duas ocorrências o determinante, que no verso 8 é o artigo indefinido e no verso
16 é o artigo indefinido. O primeiro tem como objectivo não concretizar, não
especificar, não atribuir especial importância
àquele ramalhete, já que se afirma sem grande emoção, objectivamente, o
facto de uma mulher ter ido apanhar um. O segundo pretende tirar do
abstracto, aquele ramo de papoilas, que, por ter provocado todas aquelas
sensações e recordações, merece ser individualizado como o ramalhete e
acrescentar-lhe uma exclamação como reforço de tais sentimentos.
(Fonte: adaptado de Sugestões de análise com propostas de resolução de textos líricos, Dulce Teixeira e Lurdes Trilho, Porto Ed., 1999 e Acesso ao ensino superior. Português 12.º ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora, 2000.)
Questionários sobre a leitura do poema "De tarde", de Cesário Verde.
Apresente, de forma bem
estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Explicite a
função da primeira quadra na estrutura do poema.
2. Indique três
traços caracterizadores do «tu», fundamentando a resposta em elementos do
texto.
3. Refira as
sensações representadas no poema, justificando a resposta com citações.
4. Identifique dois recursos estilísticos presentes no texto, analisando o efeito expressivo de cada um deles.
Explicitação de cenários de resposta
1. A primeira quadra tem a função
de apresentar, em traços genéricos, um determinado quadro social e de nele
inscrever uma ocorrência significativa («cousa simplesmente bela» – v. 2),
criando a expectativa de que tal ocorrência será o assunto do poema. Para
fundamentar esta resposta, podem ser referidos, entre outros, os seguintes
elementos dessa estrofe:
– é identificada uma situação – um «pic-nic» (v. 1);
– os intervenientes são apresentados como um grupo de «burguesas» (v.
1);
– é anunciada uma «cousa» caracterizada como «bela» (v. 2) e simples;
– essa «cousa» (v. 2) é apresentada como um motivo de «aguarela» (v.
4), induzindo a sua associação a valores pictóricos;
– ...
2. O «tu»
apresenta, entre outros, os seguintes traços caracterizadores:
– surge integrado no grupo de «burguesas» (v. 1)
referido na abertura do poema;
–
individualiza-se do grupo, ao descer do «burrico» (v. 5) para ir colher um
«ramalhete [...] de papoulas» (v. 8);
– distingue-se
pela ausência de pose, impondo-se pela simplicidade que marca uma atitude «sem imposturas
tolas» (v. 6);
– traz «renda»
(v. 13) a rematar o decote, o que sugere um modo de vestir próprio da elegância
citadina;
– age com
naturalidade, colocando o «ramalhete» de «papoulas» (vv. 8 e 16) entre «os
seios» (v. 14), a «sair da renda» (v. 13);
– ...
3.
Predominam as sensações (ou imagens) visuais, na descrição de três quadros
sucessivos – o tu» (v. 5) que desce do «burrico» (v. 5) e colhe o «ramalhete»
de «papoulas» (v. 8); o «pic-nic» (v. 1) em cima duns «penhascos» (v. 9), num
fim de tarde soalheiro; o ramo de «papoulas» entre os «seios», «a sair da
renda» (vv. 13-14) – e, igualmente, no destaque dado às cores – «azul»;
«rubro»; «púrpuro» – vv. 7, 8, 13 e 16.
Há também uma forte sugestão de sensações
gustativas no enumerar de elementos da «merenda» (v. 15): frutas doces e
frescas, «pão-de-ló» (v. 12), vinho licoroso.
Estes dois tipos de sensações comunicam ao
poema uma ambiência de viva representação sensorial e realista.
4.
Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:
– a adjetivação simples, em posposição
(«bela», «tolas», «azul», «rubro», «rubro» – v. 2, v. 6, v. 8 e v. 16) e em
anteposição («supremo»), salientando a expressividade sensorial do quadro representado;
– as aliterações em /r/ («ramalhete rubro»
– vv. 8 e 16) e em /z/ («granzoal azul» – v. 7), sublinhando as imagens
visuais;
– a anáfora («E houve […] / E pão-de-ló
[…]» – vv. 11-12), conjugada com a enumeração («talhadas de melão, damascos» –
v. 11), tanto reiterando e amplificando os elementos da «merenda» (v. 15) ao dispor
dos convivas, como criando uma forte sugestão de sensações gustativas;
– a comparação («Dos teus dois seios como
duas rolas» – v. 14), evidenciando, pela associação estabelecida entre «seios»
e «rolas» (v. 14), a atenção do olhar do «eu» dirigido à figura feminina;
– a repetição de versos (8 e 16), com uma
pequena variante: a substituição do artigo indefinido «Um» (v. 8) pelo artigo
definido «O» (v. 16), exprimindo a alteração do estatuto do «ramalhete rubro»,
que deixa de ser um qualquer e passa a ser algo singular, único, conotando a
sensualidade associada à figura feminina;
– o hipérbato, pondo em destaque, nos dois
últimos versos do poema, pela inversão da ordem natural do sujeito e do
predicado, o motivo central do poema («O ramalhete rubro das papoulas» – v.
16);
– …
(Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março) - Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 734 e respetivos
critérios de classificação - 11.º ou 12.º anos de
Escolaridade. Portugal, GAVE, 2010, 2.ª Fase)
***
1.
Divida o texto nas suas partes lógicas. justificando a resposta.
2.
Indique as imagens do poema que podem ser associadas a uma aguarela.
3.
Refira os traços principais que definem a figura feminina.
4.
Mostre de que modos o espaço e o tempo são representados.
5.
Identifique, no poema, dois traços característicos da poesia de Cesário Verde.
Explicitação
de cenários de resposta
1.
O poema pode dividir-se em duas partes lógicas: a primeira é constituída pelas
três primeiras quadras e a segunda, pela última.
Na primeira parte conta-se uma cena passada
no campo; na segunda mostra-se uma imagem única, que é dada como «supremo
encanto». A primeira parte é “narrativa", ao passo que a segunda é
"descritiva".
Nota -
Aceita-se, ainda, a seguinte divisão:
As duas primeiras quadras, por um lado, e a
terceira e a quarta, por outro.
A primeira parte está centrada numa parte do
passeio de burrico, aquela em que o «tu» vai colher as papoulas; a segunda tem
a ver com o «pic-nic», «em cima duns penhascos».
2.
São três as imagens que podem ser associadas a uma aguarela.
Uma é
a do «pic-nic» propriamente dito, em que aos tons magenta do crepúsculo («inda
o sol se via»), ou, pelo menos, aos tons mais doces do fim da tarde, se juntam
as cores claras das frutase do pão-de-ló.
As
outras duas estão relacionadas entra si: a primeira, a da uma dama que colha um
«ramalhete rubro» de papoulas num «granzoal azul»; a segunda, a desse «ramalhete
rubro» de papoulas visto, por assim dizer, em grande plano, no colo da figura
feminina.
3.
A figura feminina representada é uma dama da cidade, uma "burguesa". Destaca-se
das outras pelas suas maneiras simples, «sem imposturas tolas». Mostra-se
coquete no seu gesto de garridice, ao pôr entre os seios o «ramalhete rubro».
Revela uma afinidade certa com a natureza, pois é vista no campo a colher flores
e, depois, a confundi-las consigo, ou a juntar as flores à sua própria pele. Essa
afinidade com a natureza surge acentuada pela comparação dos seios com «duas
rolas».
É a figura feminina que centraliza toda a
representação que o poema propõe e que, primeiro vislumbrada ao longe, acaba
por ser vista em primeiro plano, e já com exclusão de todos os outros elementos
figurativos, na última quadra.
4. O
espaço é o campo que é atravessado num passeio de burrices, uma "burricada”
através do campo, do qual é dado a ver um «granzoal azul» com papoulas; depois,
é uma elevação de terreno (uns «penhascos») propícia à merenda.
O tempo é o de uma tarde que se escoa até
ao fim, o momento do crepúsculo ou muito próximo dele.
5.
Exemplos de traços característicos da poesia da Cesário:
-
descritivismo e visualismo;
-
simplicidade de processos estilísticos, ligada ao desejo de realismo;
-
presença da natureza, na sua direta relação com as figuras femininas (as «burguesas»,
citadinas que gostam do campo);
-
referência à oposição cidade/campo, evidente no relato de um passeio ao campo
de alguém que habita na cidade;
-
…
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. Cursos Complementares Noturnos
- Liceal e Técnicos. Prova escrita de Português n.º 537 (Índole Científica). Portugal,
1999, 2.ª fase)
***
1. "Naquele pic-nic de burguesas / [...]/ Em todo o caso dava uma aguarela." (vv. 1 a 4)
1.1. Explique o sentido da palavra "aguarela", identificando o elemento referido pelo poema, que a poderia "dar".
1.2. Explicite o que significa neste contexto a expressão "em todo o caso".
2. "Foi quando tu, descendo do burrico / [...]/ Um ramalhete rubro de papoulas." (vv. 5 a 8)
2.1. Identifique o recurso estilístico patente nos versos 7 e 8, comentando o seu efeito expressivo.
2.2. Saliente a importância do verso 8 no poema; compare-o com o verso 16 e interprete as diferenças existentes entre eles.
3. "Pouco depois, em cima duns penhascos, /[...]/ E pão-de-ló molhado em malvasia" (w. 9 a 12).
3.1. Demonstre a presença da sugestão de cor, interpretando o seu valor estético.
3.2. Refira duas das características gerais da poesia de Cesário Verde, patentes neste poema.
4. "Mas, todo púrpuro a sair da renda [ ... ] O ramalhete rubro das papoulas" (vv. 13 a 16).
4.1. Esclareça a função da conjunção "Mas".
4.2. Identifique o recurso estilístico presente no verso 14 e demonstre a sua expressividade.
4.3. Comente os sentimentos do sujeito lírico expressos na última estrofe do poema.
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337 - Formação Geral 11.º ano - Prova escrita de Português, 1997, 1.ª fase, 1.ª chamada)
Vladimir Volegov |
CARREIRO, José. “De
tarde, naquele «pic-nic» de burguesas, Cesário Verde”. Portugal, Folha
de Poesia, 08-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/de-tarde-cesario-verde.html
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