Recônditas
palavras
Inquietam-me
as dedadas
de
deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio
da alma
na
balança, à cicatriz
azul
do céu sobre o destino.
O
mar pneumático, ao sabor
do
qual contra os sentidos se nos fazem
e
desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me
os sentidos, tenebrosas
crateras
escavadas
no
espírito e através
das
quais, incandescentes, as imagens
do
mundo sobre ele próprio se derramam
como
uma lava espessa, esses sentidos
que,
como aéreos
estigmas,
nos imprimem
na
carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira
de as imagens
do
mundo se guindarem
mais
alto do que a alma ou o alento
de
quem dentro de nós
aviva
a sua chama. O que nos sai
do
coração vem a ferver.
A
carne, ao rés
da
qual o céu se encurva, báscula
que
deus deixou nos arredores
dum
qualquer lugarejo
a
encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada,
combustível, com raiz
nas
mais profundas trevas, a carne âncora
submersa
no destino, ergue-se a pique
de
novo onde as lembranças
se
fazem e desfazem
com
todo o azul do céu
lá
dentro a procurar rompê-la.
Sentados
no convés, como se fosse
já
noite e nos soubesse
o
pão ao ranço da memória, contemplamos
os
rudes marinheiros.
Depois
que pela encosta procurámos
em
vão uma escada de que o último
degrau
fosse já dentro da memória,
suspenso
na memória,
desfaz-se-nos
dos ossos
a
carne, como seu quê de lírico e festivo,
em
áreas portuárias onde o mar
nos
sai do coração para galgar o molhe,
e,
agora que começam
os
anos a pesar
mais
para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas
palavras aos ouvidos:
«Fecharam-se-te
os olhos e eu fiquei de fora»,
«Nas tuas mãos começa o precipício»
Luís
Miguel Nava, Vulcão. Lisboa: Quetzal, 1994
Vulcão, Quetzal, 1994 |
Neste poema vê-se claramente a opacidade da
linguagem naviana. Seu fecho explicita bem a vertigem que um corpo pode causar
ao entrar em contato com outro.
Há a sugestão de que o sujeito poético sabe que será (des)governado, como se
caísse em um precipício. Nava cria outra imagem fantástica e extremamente plástica:
o mar a sair de um coração. A função do mar, ou das águas, como ensinou Bachelard
(1989), sexualiza a diegese do poema. O poema é por demais complexo e extenso
para uma análise depurada no espaço deste artigo, no entanto, pode-se notar já
nas primeiras leituras, a coesão desses versos com o que se pretende propor: o
corpo que se escreve e se expande para a construção de um imaginário específico
entre memória, sexo, amor; “estigmas, nos imprimem/ na carne a cicatriz do
céu”.
Danilo
Bueno “O corpo-escrito
de Luís Miguel Nava”, in Vivência n.º 36, 2011
Em “Recônditas Palavras” o poeta traça
finalmente esse sentimento existencial ambivalente e ambíguo: “Inquietam-me as
dedadas/ de deus rente à raiz da carne, ao indeciso/ equilíbrio da alma/ na
balança, à cicatriz/ azul do céu sobre o destino.” (Nava: 227). O lado mais
frívolo e também emotivo é evidenciado através dos órgãos internos – “de quem
dentro de nós/ aviva a sua chama. O que nos sai/ do coração vem a ferver"
– associando-se à imagem vulcânica representada no poema – “crateras escavadas/
no espírito e através/ das quais, incandescentes, as imagens/ do mundo sobre
ele próprio se derramam.” (Nava: 227) – mas também ao destino comprometido
pelos restos ou despojos da carne, que já se precipita em face do abismo: “A
carne, ao rés/ da qual o céu se encurva, báscula/ que deus deixou nos
arredores/ dum qualquer///a encher-se de ferrugem, cicatriz/ pesada,
combustível, com raiz/ nas mais profundas trevas, a carne âncora/ submersa no
destino, ergue-se a pique”.
O poeta encontra finalmente a sua causa
existencial e fica em face do dilema causado pelas memórias, desfazendo-se
essas lembranças com o tempo, o inevitável tempo que condiciona o próprio
destino, na versão do poeta: “desfaz-se-nos dos ossos/ a carne, com o seu quê
de lírico e festivo/ em áreas portuárias onde o mar/ nos sai do coração para
galgar o molhe.” (idem).
A sexualidade em Nava, ou se quisermos,
o reflexo da sua homossexualidade brevemente comentada na sua poesia, trazendo
nessa a confissão do amor naviano, é vastamente complexa e particular, através
de um modo quase desconhecido, onde há um destinatário anónimo, que não se tem
a certeza de quem é, porque não é dado a referência ao mesmo, pode-se ver ao
longo de toda a obra poética um típico poético fluido e inconstante. Trata-se
de um só destinatário ou de múltiplos destinatários? uma imagem masculina
singular ou pluralizada? Quem era de facto este “rapaz”, tantas vezes mencionado,
mas nunca evocado o seu nome? As indagações sugerem várias interpretações a
saber se de facto tal “rapaz”, ou seja o “tu” é um destinatário de carne e osso
ou, para além disso uma aparição poética, e quiçá somente esta última, que trouxesse
ao “eu” o desejo contínuo em recordá-lo, enaltecê-lo numa espécie de amor platónico.
Resta saber também, se é sempre o “rapaz”, enquanto o amado “tu”, o único destinatário
da poesia de Nava, e no poema “Nos teus ouvidos”, o primeiro poema de toda a
obra poética, é notório a invocação à mãe: “ que vai além desse, é a mãe, ou numa
outra perspetiva dois destinatários que confluem para o mesmo poema e campo de análise,
a mãe do poeta e o amado anónimo: “Nos teus ouvidos isto explode/ (…) na minha
mãe de outrora, nas crianças de água, nos/ pensamentos nenhuns” (Nava: 37). A quem
se dirige no fundo, Nava?
Na sequência da análise feita à poesia
naviana há a considerar um teor poético notoriamente erótico, mas todavia
fortemente existencial, qualquer poema de Nava que expressa o lado humano, é
vinculado a tudo o que não é humano, quer no aspeto concreto ou abstrato, a
tudo o que é matéria, cosmos, órgãos: a “pedra”, o “céu”, o “mar”, o “Sol”, as
“rochas” – que faz parte a matéria, o abstrato nas ideias ou palavras: “as
palavras que sufocam”. Não obstante, é uma poesia implícita, que procura
atingir a profundidade interna, o interior existencial, com o objetivo de
elevar este a qualquer aspeto categórico ou explícito.
Susana
Bravo, A Fala do Corpo em Luiza Neto Jorge e Luís Miguel Nava.
Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2012
Nava introduz um universo de desordem, onde deus
surge como elemento de desvio; o universo é desentranhado, escatológico, de
modo que as imagens remetem imediatamente a um dos cantos de Contos de
Moldoror, do Conde de Lautreamont, mais precisamente à cena em que um rapaz
é esfolado e penetrado por Deus em um prostíbulo (Canto 3, Estrofe 4).
Em “Recônditas palavras”, temos a metáfora da “carne
báscula”, isto é, a carne que à semelhança de uma ponte levadiça, tem um céu
que se encurva e a recobre. Lembrando-nos que um dos livros de Nava teve por
título O Céu sob as entranhas (1989), somos levados a pensar um
ato de penetração dessa carne que se põe em riste, tal qual a ponte que se
levanta, e é recoberta pelo céu que se encurva.
Na continuação da estrofe, a carne que penetra o
céu, se encurva no entorno dela e se enche de ferrugem. De todos os excretas,
sólidos e líquidos, do corpo humano, aquele que mais se assemelha à ferrugem
são as fezes. Disso, decorre a sugestão de uma cena de sexo em que há
penetração anal, como efeitos escatológicos, isto é, um corpo que sai das
entranhas do próprio sujeito. No entreato, a carne se ergue ao pique, numa
penetração “com raiz/ nas mais profunda trevas”.
Sinei Ferreira Sales, Desentranhando desejos e identidades: Uma leitura queer de Luís
Miguel Nava. Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, 2015. Disponível também em https://www.academia.edu/48897242/Desentranhando_desejos_e_identidades_uma_leitura_queer_de_Lu%C3%ADs_Miguel_Nava
Luís Miguel Nava com o namorado, Paulo Silveira, em Zagora, Marrocos, 1987 |
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- “Luís Miguel Nava (1957-1995)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2017-09-29 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/09/luis-miguel-nava-1957-1995.html>
CARREIRO, José. “Recônditas
palavras, Luís Miguel Nava”. Portugal, Folha de Poesia, 04-09-2022. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/reconditas-palavras-luis-miguel-nava.html
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